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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Natal: Jesus, refúgio e a hospitalidade


Todos os anos, durante o período do Advento (as quatro semanas que antecedem o Natal, no calendário cristão), preparo-me para celebrar a data na qual comemoramos o nascimento de Jesus de Nazaré – aquele que a maioria dos cristãos prefere chamar de “Cristo”, e cujo nascimento celebra como aquele dum membro duma família real, com cânticos, árvores iluminadas com luzes coloridas, estrelas que simbolizam sua grandeza cósmica, jantares caros e trocas de presentes.

Apesar de eu gostar muito das tradições natalinas – especialmente das celebrações litúrgicas e das cantatas às quais estou acostumado –, o Natal, para mim, não é a celebração do nascimento dum membro da realeza celestial (ou terrestre). A data é, em minha vida, um memorial à experiência da busca de refúgio – um lembrete da experiência do “êxodo”, que, metaforicamente, pode tornar-se a experiência de toda a humanidade.

Se tivermos de entender a narrativa do “êxodo” de Jesus – em Mateus 2:13-23 – como factual, então a vida do menino começa como a vida dum refugiado em terra estrangeira. Não como a dum príncipe ou rei. É se refugiando em outra terra, para escapar daqueles que o perseguem, que Jesus inicia sua vida.

Isso pode parecer irrelevante para muitos, mas, para mim, é o que há de mais importante na narrativa natalina. E não importa o quão pouco factual seja a narrativa do êxodo de Jesus – considerando que a mesma pode ter sido construída apenas para transformar a figura de Jesus na dum novo Moisés –; o que realmente importa é que ela o proclama como igual às crianças, mulheres e homens que deixam seus lares em busca de segurança e de vida, nas mais diferentes regiões do mundo, sob os mais diversos contextos.

O Jesus que aguardo no Advento, e que celebro no Natal, é um Jesus que sofre e busca refúgio e que, assim, é dependente da hospitalidade e compaixão dos humanos. É o Jesus que diz que quando alimentamos, damos de beber, vestimos, visitamos, somos hospitaleiros com os estrangeiros, é a ele que fazemos essas coisas (Mateus 25:35-45).

Esse é o Jesus que aprendi a celebrar. É o Jesus com a face de Ada, Concepción, Ibrahim, Mahmood, Moji, Alejandro e tantos outros. Para mim, o Natal só é comemorado para que eu me lembre que era deles e delas que Jesus falava, que era eles e elas que deveriam ser “celebrados” em minha vida, nesta data. Só assim eu poderia realmente viver o que Jesus ensinou.

O Natal, para mim, é uma celebração do refúgio – do refúgio que os seres humanos devem encontrar nos braços, corações e casas de seus irmãos e irmãs.

Minha oração é que possamos estar abertos e prontos para receber esse Jesus – esse Jesus que se manifesta nas faces dos seres humanos – neste Natal.

Vem, Mestre galileu!

Feliz Natal!

+Gibson


sábado, 23 de setembro de 2017

Minha teontologia – ou, o que acredito sobre “Deus”


+Gibson da Costa


[…] Ele não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos […]” (Atos 17:27b-28a)

“Deus” frequentemente tem sido o assunto sobre o qual me escrevem de forma pouco compassiva. Enquanto, pessoalmente, me preocupo muito mais com o viver aquilo que chamo de “fé”, muitos de meus interlocutores se preocupam muito com declarações de crença que se encaixem em sua ortodoxia – seu conjunto de “crenças corretas” –, por isso, sempre me pedem que “defina” o que acredito sobre Deus, por exemplo.

Uma de minhas mais recorrentes provocações – e a mais atacada por leitores de outras tradições cristãs – é a de dizer que “não acredito em Deus”. Tenho repetidamente explicado que o verbo acreditar é muito limitado, pois coisifica Deus, tornando a Divindade um tipo de entidade pessoal que depende de meu esforço intelectual (a crença) para que seja “real”. Pessoalmente, também rejeito a noção de existência de Deus. Em minha experiência e compreensão, Deus não existe porque a existência é uma qualidade de objetos/entidades físico-espaciais. Prefiro falar em minha confiança em Deus, em vez de falar em crença em Deus – e mesmo “confiança”, assim como o próprio nome “Deus”, apresenta(m) limitações.

Não tenho absolutamente nenhum desejo em criar uma declaração teontológica própria. Minha compreensão sobre o Mistério Eterno é limitadíssima para que eu seja capaz de articular “definições” metafísicas a seu respeito. Deus, para mim, é inqualificável, já que “está” além de minhas limitações cognitivas e linguísticas. Toda e qualquer linguagem que use para referir-me à Divindade é apenas metafórica, simbólica, figurativa. E é assim que o que escrevo abaixo deve ser entendido:

  • Compreendo Deus como uma Unidade Absoluta. Por “Unidade”, refiro-me a um Mistério que está metaforicamente acima de tudo e de todos, para além de toda divisão, de toda compreensão, de toda classificação, de toda nomeação.
  • Compreendo Deus como absolutamente simples, sem nenhuma propriedade – incluindo personalidade, bondade, onipotência etc, – já que propriedades são atributos de seres espácio-temporais.
  • Compreendo Deus como absolutamente para além do tempo e do espaço e, como consequência, para além da própria existência.
  • Compreendo Deus como para além de causas e efeitos.
  • Compreendo Deus como para além de toda compreensão e imaginação humanas.

Assim, se e quando utilizo expressões como “Deus é amor”, “Deus é paz”, por exemplo, as tomo como uma linguagem metafórica, uma figura capaz de ser captada pela imaginação, e não como uma declaração que deva ser compreendida de forma literal.

Não tenho fé num Deus-Pessoa que espelha minhas próprias limitações humanas. Tenho esperança e interesse pelo Divino como “para além” do compreensível ao mesmo tempo em que “se manifesta” no comum. Os termos “para além” e “se manifesta” são a chave aqui: a preposição “para” indica um movimento; o termo “além” aponta para uma não-limitação; e “se manifesta” aponta para uma relação entre o Divino e o humano. Usá-los, ao falar da Divindade, é uma referência à “transcendência” e à “imanência” divinas: respectivamente, a alteridade e a proximidade desse Mistério que chamo de “Deus”.

Não tenho absolutamente nenhuma necessidade de caracterizar esse Mistério como uma entidade antropomorfa – isto é, não preciso acreditar num Deus com características humanas. Compreendo a linguagem tradicional do Deus abraâmico – nas tradições judaicas, cristãs, muçulmanas, babistas etc – como um Deus pessoal apenas como uma metáfora. Usamos essas metáforas porque nossa imaginação é limitada, e não porque a Divindade assim seja – para mim, como disse, a Divindade sequer “é”, já que “ser” é uma característica de seres ou coisas físico-espaciais e, logo, limitadas.

Acredito que mais importante do que me preocupar com definições acerca de Deus é me preocupar com o ser humano. Como Deus está além de minha compreensão, e como, ao mesmo tempo, se manifesta no mundo na face das pessoas que me cercam, é amando-as e servindo-as que posso amar e servir a Deus. E conseguir fazer isso já representa um desafio suficientemente grande para mim!


terça-feira, 19 de setembro de 2017

Todas as pessoas

Ao longo de meu trabalho pastoral entre migrantes paralegais, desenvolvi um carinho especial pelas palavras das promessas que fazemos na Aliança Batismal. É verdade que aquelas palavras sempre foram muito importantes para minha espiritualidade, mas a convivência com a desumanidade da “fronteira” (um termo que uso com um sentido metafórico especial) as reveste dum significado renovado. Penso especialmente nas seguintes palavras:

[…]
Você buscará e servirá a Cristo em todas as pessoas, amando o seu próximo como a si mesmo?
Sim, com a ajuda de Deus.
Você trabalhará pela justiça e pela paz entre todas as pessoas, e respeitará a dignidade de todo ser humano?
Sim, com a ajuda de Deus.

Essas palavras exercem um poder convocatório sem igual. E, por serem parte da Aliança Batismal, carregam em si um senso de obrigatoriedade mais potente do que qualquer outra palavra sagrada em minha vida espiritual. Elas exigem, de mim, uma reflexão profunda sobre “todas as pessoas”, e sobre o que significa “servir”, “amar”, “trabalhar” e “respeitar” – os verbos que rezamos naquela Aliança.

O que fazemos daquelas palavras quando nos deparamos com os pecados etnocêntricos do tribalismo, do nacionalismo e do patriotismo? O que fazemos com aquelas promessas se e/ou quando decidimos fazer com que todos os povos se tornem discípulos de Cristo – o problemático convite feito pelo Cristo do Evangelho de Mateus 28:19-20? Até que ponto respeitamos “a dignidade de todo ser humano” quando esperamos que todos sejam como nós – ou quando supomos que Deus seja propriedade de nossa tradição religiosa?

Ou o que fazemos daquelas palavras quando nos calamos diante da injustiça e assistimos silenciosa e passivamente à violência perpetrada contra outros seres humanos, como o que ocorre contra grupos étnicos minoritários, refugiados e migrantes mundo afora? Ou quando nos calamos e não agimos quando atacam – em nome de qualquer Deus, homem ou nação – pessoas que abracem outras crenças religiosas, crença religiosa nenhuma ou certa ideologia política? Ou quando permitimos que, em nome de Deus ou da “nação”, pessoas tenham sua dignidade humana desrespeitada por qualquer motivo?

O que fazemos daquelas palavras quando sabemos que outras pessoas estão com fome na rua, e pensamos que não há nada de errado em comermos num restaurante caro, pois, afinal, isso é uma “questão de mérito”? Ou, ainda, o que fazemos daquelas palavras quando continuamos a votar em políticos corruptos que atentarão contra a “dignidade” humana dos demais membros de nossa sociedade ou de qualquer outra sociedade?

A verdade é que aquelas promessas são o maior desafio que nos podem ser feitos em nossa jornada espiritual. Elas são um testemunho de que a “fé cristã” exige ação no mundo: não ação para convencer ou converter pessoas, mas ação para curar e vivificar a vida humana.

+Gibson


sábado, 26 de agosto de 2017

Não à "tolerância"!



Você defenderá a justiça e a paz para todas as pessoas, e respeitará a dignidade de cada ser humano?
Sim, com a ajuda de Deus.
(Trecho da Aliança Batismal)


Como bem nos lembram as promessas que reafirmamos quando recitamos a Aliança Batismal, somos religiosamente educados para honrar a dignidade humana. O ser humano, nas tradições jordânicas – os judaísmos, os cristianismos, os islãs, os babismos etc –, é compreendido como tendo sido criado à “imagem de Deus”. Assim, respeitá-lo como uma criação divina e honrar sua dignidade e valor é indissociável das compreensões que nossas tradições têm do Divino.

Essa preocupação com o valor e a dignidade humana é, às vezes, rearticulado através daquela palavra tão repetida: “tolerância”. Assim, frequentemente, fala-se em “tolerar” outras pessoas, “tolerar” os que pensam diferentemente de nós, “tolerar” as outras tradições de fé (religiões), “tolerar”, “tolerar”.

Pessoalmente, tenho um enorme desconforto com a palavra “tolerância” e todos os verbos e adjetivos com os quais se relaciona. Mesmo compreendendo o sentido que muitos entre nós dão a esses termos, “tolerância”, “tolerar” e “tolerante” parecem ser exatamente o contrário do espírito que nossas tradições – e, mais especificamente, os cristianismos – nos convidam a materializar em nossas ações.

Afirmarmo-nos como “tolerantes”, para mim, seria o ápice da arrogância espiritual. Ora, ter “tolerância” por alguém é afirmar que me encontro numa posição mais elevada, mais avantajada do que ela, e que ofereço-a minha “misericórdia”. É dizer que sei mais do que ela e que, por isso, demonstro-lhe minha “piedade” para com seu estado de ignorância.

Isso, certamente, não é o que prometemos quando rezamos em comunidade nossa Aliança Batismal nas liturgias de Batismo e de Confirmação. O que prometemos é enxergar e servir a Deus uns nos outros e em todos os demais seres humanos, independentemente de quem sejam, de onde estejam em sua jornada espiritual e do que tenham feito na vida. E aquela promessa não nos exige “tolerância”: exige respeito, exige reconhecimento, exige apreciação, exige serviço, exige amor – não “tolerância”.

Respeitar, reconhecer, apreciar, servir, amar não equivalem a abandonarmos nossas crenças e princípios, a concordarmos com tudo o que os outros pensam. Equivale, sim, a aceitar que da mesma forma como temos o direito de buscar, de crer, de descrer, de ser, outras pessoas – especialmente aquelas de quem discordamos – também têm. E fazê-lo é reconhecer que nossa compreensão do Divino e de nós mesmos é limitada, e que Deus não é nossa propriedade. Demonstrar “tolerância”, por outro lado, é negar essa limitação à qual todos estamos sujeitos(as).

Não à "tolerância"! Deus nos livre da “tolerância”!

+Gibson


sábado, 29 de julho de 2017

Um cristão agnóstico?: Uma resposta às provocações de Soraya Pontes



[Sobre o texto “Um cristão agnóstico?”, de minha autoria – publicado neste blog em 8 de setembro de 2010.]

Escrevi aquele texto há cerca de sete (7) anos. Ao longo desse tempo, obviamente, mudei intelectual e espiritualmente. Reformulei algumas de minhas compreensões. Tive novas experiências de vida que me fizeram compreender a Realidade que chamo “Deus” a partir de outras perspectivas. Mas continuo a rejeitar o dogmatismo quando penso, falo ou escrevo sobre Deus.

Deus é Real. Mas não é uma coisa ou uma entidade. Assim, não uso o verbo “existir” para me referir a Deus. Não posso quantificar Deus como o faria ao ar, à água, ao computador diante do qual me sento agora ou a mim mesmo. Essa é uma questão muito mais profunda do que você imagina. Compreendo a razão pela qual isso lhe parece uma “ignorância”, Soraya: para você é assim porque você lê o mundo com lentes diferentes daquelas que uso; assim, não consegue compreender a relevância da linguagem para discussões teológicas. Isso não a torna menos certa do que eu – apenas torna sua perspectiva diferente da minha; e vice-versa.

Tenho a impressão de que você não tenha compreendido que aquele texto é uma provocação. O uso do termo “agnóstico” é proposital. Acaso não percebeu o uso duma interrogação ao fim do título? O próprio texto pode esclarecer, para qualquer leitor atento, o que quis dizer com aquelas palavras.

Deus, para mim, é uma Realidade que está além de qualquer formulação dogmática de qualquer tradição religiosa. Assim, Deus não é judeu, não é cristão, não é muçulmano, não é budista, não é xintoísta, não é hindu, nem mesmo ateu. Deus não é propriedade de qualquer religião, filosofia, credo, ou grupo exclusivista. Deus é o nome que muitos de nós damos àquela Realidade que está além de nossa compreensão. Porque não a compreendemos, utilizamos figuras metafóricas próximas às nossas experiências culturais para nos referirmos a ela. Assim, muitos chamam essa Realidade de Deus, de Pai, de Mãe, de Grande Espírito, de Poder, de Hashem, de Allah, ou de qualquer outro nome que possa exprimir – mesmo que imperfeitamente – aquilo que sentem.

Atribuir um nome a essa Realidade, contudo, não significa necessariamente abraçar uma noção dogmática sobre quem ou o quê seja “Deus” – isto é, não significa pensar que possamos saber, humanos como somos, tudo o que se possa saber sobre “aquele” que já foi chamado de “Mistério”. Foi isso que quis dizer com aquele texto provocativo.

Se aquelas palavras me tornam um “ignorante” ou menos “cristão” que você... bem, não me preocupo. Em minha tradição religiosa, questionar, perguntar, duvidar é sempre um caminho para construir pontes de compreensão, sempre um caminho para se chegar a Deus. Não tenho interesse algum pelo conforto do dogma inquestionável e petrificado – prefiro o caos do serviço e do discipulado, que é onde encontro a Deus.

Que bom que você já está tão além de minha compreensão sobre Deus e já consegue compreender o Mistério Divino com tamanha segurança, a ponto de não questionar os verbos, substantivos e adjetivos que utiliza. Eu ainda não cheguei a este ponto – na verdade, como escrevi antes, não tenho, hoje, interesse em fazê-lo. Mas fico feliz que você possa fazê-lo.

Paz!

+Gibson


terça-feira, 4 de julho de 2017

Por que não faço vídeos para este blog?


Alguns dos leitores deste blog já me pediram, várias vezes – e por motivos variados –, que eu fizesse vídeos para postar aqui, em vez de escrever textos (que, na opinião de alguns, são frequentemente “muito longos”). Hoje, gostaria de responder às suas provocações e enumerar algumas razões pelas quais tenho me recusado, até aqui, a fazer vídeos para este espaço.

  1. Não quero me tornar um vlogueiro. Não tenho talento para isso, nem tenho interesse em me preocupar com aparência e voz, com iluminação e cenário, etc. Prefiro que meu tempo “livre” seja gasto com o pensar sobre aquilo acerca do qual escrevo – escrever, afinal, exige a reflexão da parte de quem escreve. Escrevendo, eu mesmo aprendo muito mais do que seria capaz de “ensinar” a quem quer que seja.

  2. Apesar de não ser inimigo da tecnologia – o que se evidencia pelo meu uso deste espaço –, tenho uma imensa antipatia pelas respostas fáceis e irrefletidas. Os vídeos online tendem a levar a esse tipo de comportamento – considerando que o ouvinte, e muitas vezes o próprio vlogueiro, não têm tempo suficiente para parar e refletir sobre o que ouviram/disseram, como teriam se estivessem lendo/escrevendo.

  3. Quando escrevo, o faço para um “público” específico. O que espero desse “público” é que, pelo menos, esteja disposto a ler – disposto a parar diante da tela ou do papel e ler o que escrevi, independentemente de sua reação ao texto. Assim, o simples fato de produzir textos escritos (ou seriam “digitados”?) funciona como um processo de filtragem de interesses para ambos os lados: eu seleciono com quem dialogo, e os meus leitores decidem se o que tenho a dizer lhes interessa ou não.

  4. Não estou aqui para me promover como a uma mercadoria. Explico-me: Quando escrevo, o faço para compartilhar ou discutir ideias, para provocar outras pessoas de forma respeitável, e não para me oferecer como “a resposta”. Não sou um candidato a cargo eletivo. Não sou um artista. Não estou oferecendo, aqui, absolutamente nada em troca de dinheiro ou ganhos materiais. (Percebeu que não há anúncios de produtos neste blog?! Eu poderia adicioná-los aqui se quisesse ganhar dinheiro.) Meu interesse é com o conteúdo e com as pessoas que o receberão: o conteúdo duma perspectiva da fé cristã e aquelas pessoas que queiram refletir sobre a fé de forma aberta. Para isso, você não precisa de minha voz ou de minha imagem – além daquela que pode encontrar no perfil desta página.

  5. A decisão de não utilizar as linguagens audiovisuais, aqui, não é definitiva; é, antes, utilitária: por enquanto, atende aos meus anseios e necessidades e àqueles da maioria, talvez, de meus leitores. Se, no futuro, perceber que seria mais proveitoso utilizá-las, poderei fazê-lo. Por enquanto, contudo, não tenho essa intenção.


Paz a todas e todos!

+Gibson

domingo, 21 de maio de 2017

E o Império do czar Putin persegue mais um grupo: as Testemunhas de Jeová na Rússia


Em 20 de abril último, a Suprema Corte da Rússia decidiu favoravelmente à ação aberta pelo Ministério da Justiça contra a organização das Testemunhas de Jeová no país. Desde então, a denominação é considerada um “grupo extremista” no país, o que tem piorado e legitimado a perseguição que o grupo já sofria na Federação Russa. De acordo com relatos da própria Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados da Pensilvânia (a principal organização das Testemunhas de Jeová no mundo), membros da denominação têm sido atacados na rua, suas contas bancárias têm sido bloqueadas e seus salões de culto têm sido dessacralizados.

A acusação contra as Testemunhas de Jeová é a de que quebraram uma lei de 2002, frequentemente usada contra grupos que o governo encara como inimigos. A lei proíbe que grupos religiosos – com exceção da Igreja Ortodoxa Russa – afirmem pregar a única verdade (o que fazem as testemunhas de Jeová, e muitos outros). Além disso, o pacifismo e não envolvimento com a vida eleitoral ensinados pelo grupo é a razão para que seja classificado como “extremista”. Assim, as testemunhas de Jeová estão na mesma classificação da al-Qa'ida e do Estado Islâmico, por exemplo!

Não sou um Testemunha de Jeová e, pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por suas crenças, mas seria inaceitável me calar diante de tamanha violação aos seus direitos humanos básicos. A acusação e a pena contra as Testemunhas de Jeová na Rússia é uma afronta à humanidade de todos nós – assim como o é a perseguição sofrida por todos os grupos religiosos dissidentes na Rússia e em todas as outras partes do mundo, apenas por suas práticas pacíficas e de não participação com a vida “secular” serem percebidas como um desafio ao cetro do poder estabelecido.

O direito humano de acreditar no que quer e de expressar essa crença de forma não violenta é mais importante do que qualquer lei que o subtraia. Essa é a base de minha fé religiosa e de meu credo político. E realmente não importa o quanto eu discorde das ideias defendidas pelos demais: se eles têm seu direito violado, o meu próprio se foi com eles. É uma vergonha que isso ocorra em pleno século XXI.

+Gibson


domingo, 30 de abril de 2017

Continuemos como “shalomistas”!




O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. (Isaías 58:6-7)


Não nos considero pacifistas, mas “shalomistas”. E isso porque a paz não se limita apenas à renúncia da guerra e da violência, mas, antes, compreende a promoção e a associação àquilo que fomenta um mundo construído sobre aquilo que nossa tradição de fé chama de “shalom” divina: o domínio de honra ao valor e dignidade da humanidade e de toda a Criação.

Esse “shalom” implica comida para os famintos, água para os sedentos, lar para os desabrigados, vestimenta para o desnudo, companhia para os solitários, alívio para os que sofrem, ajuda para os mais fracos, perdão para os que erraram, justiça para os desprotegidos. Implica ação consciente contra aquilo que se opõe ao valor e dignidade do ser humano e da Criação. Implica desafiar os Impérios deste mundo, o ódio, a violência, a guerra, as armas, a corrupção. Exige uma mudança em nós mesmos.

Nossa objeção consciente à guerra, à violência, às armas e à colaboração com a guerra, com a violência e com as armas é uma forma de nos abstermos da participação nos Impérios deste mundo, e de nos juntarmos ao “domínio de Deus”. Nossa tradição religiosa nos ensina que quando matamos ou destruímos outros seres humanos, estamos matando e destruindo um reflexo de Deus. E nossa escolha do caminho de “shalom” se baseia nisso.

Essa é uma escolha impopular neste mundo. No mundo dos jogos violentos, no mundo dos filmes de “ação”, no mundo das armas, no mundo onde ser homem é se divertir machucando outros homens, no mundo onde odiar outras pessoas por conta de suas visões políticas ou religiosas é a norma, renunciar o caminho da violência para se relacionar com Deus e com outros seres humanos é estupidez ou sinal de fraqueza. E por isso, talvez, escolher o “shalom” seja o caminho menos popular, mesmo entre muitas pessoas religiosas. Mas este é o único caminho que nos salvará da conformidade com os Impérios do mundo.

Pretender ser um “shalomista” é difícil porque é radical. Às vezes, é deveras solitário, porque é impopular. E, mais do que frequentemente, é um desafio porque, aparentemente, não é natural – isto é, exige esforço, exige humildade, exige reconhecimento de minhas próprias incoerências. Mas é possível porque tantas outras pessoas o fizeram – Jesus o fez, e tantas e tantos de seus seguidores o fizeram.

Assim, conscientemente escolhamos continuar a seguir este caminho de “shalom”, o “shalom de Deus”. Com certeza, continuaremos a tropeçar inúmeras vezes, mas com a ajuda de outras e outros “shalomistas”, poderemos nos reerguer e voltar ao caminho.

+Gibson


quarta-feira, 26 de abril de 2017

Economia de mercado e reforma trabalhista: notas soltas dum liberal impaciente


Sempre compreendi que uma “economia livre” – isto é, aquela abstração ideológica que se refere a um sistema econômico no qual os consumidores podem escolher livremente de quem obter produtos e serviços, e no qual os produtores/provedores podem concorrer pela venda de seus produtos/serviços – seja a mais eficiente maneira de oferecer as melhores oportunidades e mais liberdade democrática aos cidadãos. Ainda estou convencido disso.

Entretanto, devo deixar claro que não compreendo a noção de “economia livre” como sinônimo necessário de “economia de mercado”. Essa segunda expressão me parece muito mais conectada à abstração de “mercado” como uma força a-histórica que regeria as relações sociais – e essa ideia me soa muito mais como um discurso ideológico dogmático do que como um retrato da realidade. Mais do que acreditar no “mercado” e defendê-lo, acredito no ser humano e defendo a sua liberdade e os seus interesses – e o “mercado” mais do que frequentemente não representa os interesses do ser humano e não corresponde à sua liberdade.

Lendo e ouvindo os argumentos a favor do tal projeto de reforma trabalhista em curso no Congresso brasileiro – imposto por um Executivo moralmente ilegítimo que abertamente tenta controlar o já desmoralizado Legislativo federal –, reconheço os traços dogmáticos da religião econômica neoliberal: para a qual o deus “mercado” é o senhor de tudo e de todos.

Os apóstolos da tal divindade insistem que “reformar” as leis trabalhistas – assim como as previdenciárias – é oferecer mais “liberdade” ao trabalhador. Abolir as leis antiquadas – e, sim, elas são até certo ponto deveras antiquadas (mas não são justamente os “conservadores” que pregam que o “antiquado” é o melhor?!) –, para eles, seria abrir novas oportunidades econômicas!… Minha pergunta é: Para quem, afinal?!

O “mercado” – o que é ele, afinal? –, em si, não é capaz de proteger os interesses dos consumidores, muito menos dos trabalhadores. É só olhar para as investigações da “Operação Lava Jato”. Não é justamente o “mercado” – nesse caso específico representado pelas grandes empreiteiras/construtoras brasileiras – que está sendo acusado pelo financiamento da corrupção política brasileira (e internacional)? Os discípulos crédulos das cartilhas econômicas de think tanks “direitistas” americanos – e, no Brasil, elas viraram moda entre um certo grupo de pessoas que tenta compensar seu parco poder socioeconômico com um ar de superioridade ideológica – dirão que isso não é o “mercado”, porque o “mercado” é “racional”; e, em resposta, direi: olhem ao seu redor!

Pense num/a trabalhador/a qualquer que não aceite as “propostas” (imposições) da empresa onde trabalha, de acordo com as regras trabalhistas agora em votação. O que aconteceria com ele/a se não as aceitasse e não tivesse as proteções da lei?... Ora, sofreria as consequências do “mercado”: se não quer as condições “propostas” (leia-se “impostas”), há muitos/as outros/as que as querem!

O fato é que, para que uma economia seja relativamente livre – especialmente no contexto brasileiro –, é indispensável haver leis de proteção ao trabalhador (e ao consumidor). O “mercado” sozinho é incapaz de proteger os interesses dos mais fracos (a saber, os trabalhadores e os consumidores), e isso é claramente demonstrável na história econômica do mundo contemporâneo – até porque o “mercado” não é uma entidade, é, antes, um artefacto humano.

É também verdade que os pequenos empreendedores sofrem como consequência duma burocratização excessiva, mas isso não pode ser desculpa para que o trabalhador comum perca certas proteções. O que seria desse trabalhador ou trabalhadora se não houvesse limites à exploração de seu labor por aquele que o/a emprega?... Estão os brasileiros prontos para viver como os trabalhadores americanos – em geral com pouquíssima proteção, com quase nenhum direito?... Pois é exatamente isso que o Executivo moralmente ilegítimo agora propõe: uma “americanização” (ou seria “americanalhação”, na linguagem do finado Paulo Francis) das relações de trabalho no Brasil – em outras palavras: se o trabalhador não aceita o que o empregador impõe, há outros que o aceitarão!

É isso, a propósito, o que pregam as cartilhas dos chamados “conservadores” americanos. E aqueles brasileiros que citei anteriormente recitam essas cartilhas como jovens recém-conversos recitam os livros sagrados de sua mais nova religião. O deus “mercado”, assim, se torna mais importante do que o ser humano e a sua condição!

É importante reconhecer que as leis trabalhistas são, sim, anacrônicas, e precisam ter certos aspectos atualizados. Mas não é interessante que os políticos brasileiros pensem no anacronismo das leis trabalhistas, mas não no anacronismo, por exemplo, das leis que regulam a vida eleitoral?... Esse, a propósito, é o perfil do político padrão brasileiro (e dos do resto do mundo): os princípios que valem para seus interesses não podem ser aplicados aos interesses da maioria dos cidadãos!

Resta-nos ver, nos dias que seguem, o que será do trabalhador brasileiro no império do “mercado”, no processo de “americanalhação” do ator mais fraco no cenário das relações de trabalho. Restarão os subempregos a la americana?! É esperar e ver!

+Gibson

sexta-feira, 14 de abril de 2017

A Páscoa e o Caminho de Jesus: o caminho do amor, da justiça, do serviço, do perdão, da compaixão, da paz


Como um cristão, partilho com outros cristãos a centralidade de Jesus para minha compreensão da dimensão espiritual da existência e de minha relação com Deus. Como um cristão liberal, contudo, enfatizo outros aspectos da narrativa cristã acerca da vida de Jesus de Nazaré: para mim, Jesus é Salvador por conta de seus ensinamentos, de seus exemplos e de sua convocação para vivermos uma vida de compaixão, serviço, amor e paz radicais – ou seja, ele é meu Salvador por causa de sua vida, e não por causa de sua morte. É vivendo como ele – independentemente de os relatos a seu respeito serem factuais ou não – que somos salvos, e não apenas fazendo um esforço intelectual para acreditar em certas coisas a seu respeito.

Somos ensinados a encontrar Jesus e servir a Deus no mundo. Esse ensinamento é repetido todas as vezes em que saímos das celebrações da Eucaristia, quando recitamos aquela benção final – que, pessoalmente, levo muito a sério:


Cristo nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão, da reconciliação e da compaixão. Cristo morre em nós quando nos rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte espiritual para se juntarem à comunidade de amor, para entrarem no reino divino no meio do mundo. Saiamos em paz. Amém.


Essas palavras sempre tiveram um poder incrível para me fazer refletir sobre o sentido de minha fé. Elas me relembram que minha fé deve ser expressa por meio de minhas ações, em minha vida com outras pessoas. Elas refletem aqueles dois pequenos trechos da Carta de Tiago, que aprendi a amar ainda na adolescência:


Se alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo. (Tiago 1:26-27)

Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. (Tiago 2:17)


A fé dos seguidores de Jesus, o Cristo, é a fé que deve se materializar no mundo real, dentre outros seres humanos e com toda a Criação. Se é verdade que os seres humanos são “imagem” de Deus, então não há como servirmos a Deus sem servirmos aos outros seres humanos; se os seres humanos foram feitos “à imagem e semelhança” de Deus, então não há como amarmos ao Deus invisível sem amarmos aos seres visíveis, como bem nos ensina aquele trecho neotestamentário:


Se alguém diz: “Eu amo a Deus”, e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. E este é justamente o mandamento que dele recebemos: quem ama a Deus, ame também o seu irmão. (1 João 4:20-21)


Apesar disso parecer uma simplificação do que é ser um discípulo de Jesus, posso afirmar – por experiência própria – que é o maior desafio que se pode enfrentar. Ser seguidor de Jesus significa, nesse contexto, tomar o seu “hodos” – o seu “caminho”, a sua “via” (em grego). Significa rejeitar tudo e todos os que oferecem um caminho paralelo que nos afaste desse “hodos” de Jesus.

Assim, nossa liturgia, novamente nos mostra que caminho é esse que nos comprometemos a trilhar quando nos tornamos parte da comunidade cristã – a Igreja. As promessas que fazemos na Aliança Batismal rezam:


Você permanecerá nos ensinamentos dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações?
Sim, com a ajuda de Deus.

Você perseverará na resistência ao mal e, sempre que pecar, se arrependerá e retornará ao Senhor?
Sim, com a ajuda de Deus.

Você proclamará, por meio de palavras e exemplo, as Boas Novas de Deus em Cristo?
Sim, com a ajuda de Deus.

Você buscará e servirá Cristo em todas as pessoas, amando o seu próximo como a si mesmo?
Sim, com a ajuda de Deus.

Você defenderá a justiça e a paz para todas as pessoas, e respeitará a dignidade de cada ser humano?
Sim, com a ajuda de Deus.


Com essas palavras, nos comprometemos a seguir o caminho de Jesus, ao mesmo tempo em que reconhecemos que não somos capazes de fazê-lo sozinhos. Afirmar que o faremos “com a ajuda de Deus” é afirmar que essa ajuda nos é concedida em comunidade, na “comunhão” da comunidade de fé – mas também na comunhão de todas aquelas pessoas que igualmente se comprometem a servir, a cuidar e a defender outros seres humanos.

E o que isso significa, no mundo real? Significa muitas coisas. Se olharmos para o mundo ao nosso redor, e nos lembrarmos das promessas que fizemos quando fomos batizados ou confirmados, e que reafirmamos todas as vezes que partilhamos da Eucaristia/Santa Comunhão, saberemos o que devemos escolher.

Será que virar as costas aos desempregados e mais pobres, supostamente em defesa da economia de mercado, está plenamente de acordo com as promessas que fizemos na Aliança Batismal ou com as passagens das Escrituras que falam sobre o amor e o cuidado para com o próximo?

Será que defender o direito ao porte de armas, apoiar guerras, expor ideias racialistas/racistas, fechar as fronteiras aos mais fracos, submeter-se a ideologias nacionalistas, dar voz à xenofobia, manifestar homofobia, ou discriminar pessoas por quaisquer outras razões está de acordo com os ensinamentos de nossa fé e com a Aliança que fizemos com Deus e com nossa comunidade de fé?

A única resposta que posso encontrar para essas perguntas é um retumbante “Não!”. Nenhuma ideologia política, nenhuma nação, nenhum partido, nenhuma organização (incluindo a própria igreja institucional), nenhuma religião, nenhuma etnia, nenhuma cor de pele, nenhuma orientação emotivossexual, nenhum sistema econômico, nenhum interesse corporativista, etc, é mais importante do que o ser humano e a Criação – que são a “imagem” de Deus.

Se isso soa político demais ao seu ouvido, resta-me reafirmar que a fé cristã é uma fé política. Ela só pode ser praticada em comunidade. Por isso ela é política. Os ensinamentos sobre amar ao próximo só podem ser materializados em nossas relações, na Igreja e no mundo. E todos os que ensinam algo que contradiz esse ensinamento básico da fé cristã, de amor e serviço ao próximo, só podem estar errados – ou, do contrário, eles estão certos e as Escrituras e a tradição cristã estão erradas!

Minha oração é que nesta Páscoa nos lembremos do “caminho” de Jesus. Que nos recordemos das promessas que fazemos na Aliança Batismal. Que nos lembremos que não podemos, coerentemente, “servir a dois senhores” opostos.

Deus nos ajude a seguirmos o caminho do Nazareno: o caminho do amor, da justiça, do serviço, do perdão, da compaixão, da paz.

Feliz Páscoa e bençãos a todas e todos!

+Gibson


sábado, 18 de março de 2017

Pela Resistência da Compaixão: um convite aos meus irmãos e irmãs judeus, cristãos e muçulmanos

Nossa época evidencia o quanto nossas tradições de fé têm sido sequestradas pela retórica do medo, da desconfiança, da intolerância, do fanatismo e do ódio. Outro dia, por exemplo, ouvi um pregador falar tão entusiasticamente da “ira de deus” que suas palavras me causaram náusea. Ele proclamava um suposto ódio de seu “deus” a todos aqueles que não abraçavam sua visão teológica – e o mais assustador é que se tratava de um pregador duma tradicional igreja cristã.

A retórica daquele cristão, infelizmente, é compartilhada por muitos outros cristãos, judeus e muçulmanos – além de irmãs e irmãos de outras tradições de fé. O Deus que nossas tradições proclamam como “amor” é substituído por um deus faccioso de ódio, violência e vingança. Abandonamos o Deus do Universo e nos apegamos ao deus nacional; trocamos o Deus do amor e da paz pelo deus das metralhadoras e da guerra.

Como sempre repito, rejeito a ligação entre Igreja/Religião e Estado – justamente porque essa ligação subentende uma deidade e uma fé nacionais, tribalistas. Isso, contudo, não equivale a dizer que minha fé não seja política. Tudo o que se estabelece na convivência entre seres humanos é político – e isso inclui, necessariamente, tanto nossas comunidades de fé quanto as convicções e práticas que os membros dessas comunidades partilham entre si.

Já imaginaram o quão político é o mandamento judaico, cristão e muçulmano de amar e cuidar dos demais humanos? E ele é “político” principalmente porque só pode ser cumprido através de nossa relação com outras pessoas. É convivendo com elas e nos portando de certa maneira para com elas que podemos cumprir o espírito de nossa fé. Essa é uma exigência das tradições de fé judaicas, cristãs e muçulmanas.

Nas Escrituras dessas três tradições, encontramos exemplos claros desses mandamentos. Quando nos voltamos à Bíblia Hebraica, por exemplo, encontramos:

Não explore o imigrante nem o oprima… Não maltrate a viúva nem o órfão… Se você emprestar dinheiro a alguém do meu povo, a um pobre que vive ao seu lado, você não se comportará como agiota: vocês não devem cobrar juros. (Êxodo 22:20-24)

Não faça declarações falsas e não entre em acordo com o culpado para testemunhar em favor de uma injustiça. Não tome o partido dos poderosos para fazer o mal. E, num processo, não preste depoimento inclinando-se em favor dos poderosos, a fim de torcer o direito; nem favoreça o poderoso em seu processo. Se você encontrar, extraviados, o boi ou jumento de seu adversário, leve-os ao dono. … (Êxodo 23:1-4)

No Novo Testamento cristão, encontramos:

Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: 'Olho por olho e dente por dente!' Eu porém lhes digo: não se vinguem de quem faz mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado. (Mateus 5:38-42)

Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos. Se for possível, no que depende de vocês, vivam em paz com todos. … se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber… Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem. (Romanos 12:17-21)

Se alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo. (Tiago 1:26-27)

E se formos até o texto do Alcorão, lemos:

Em nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso. (1:1)

Piedoso é aquele … que dá dos seus pertences... aos parentes, aos órfãos, aos necessitados, aos viajantes, aos mendigos; é aquele que resgata os cativos, que faz suas orações e que paga a contribuição destinada aos pobres, que cumpre com suas obrigações e é resistente nas dificuldades, no infortúnio e no perigo. Esses é que são os crentes e os piedosos. (2:177)

E Deus ordena a justiça, o fazer o bem aos outros e a generosidade para com os parentes; e proíbe a indecência, o ilícito e a opressão. E Ele ordena que vocês se lembrem disso! (16:90)

Deus está com os piedosos e com os que fazem o bem. (16:128)

É hora de nos voltarmos àquela fé proclamada em nossos textos sagrados. A fé do serviço, do amor, da reconciliação, da paz, da compaixão. Essa fé é incompatível com a retórica de ódio e violência que tem se tornado a linguagem política e religiosa mais ouvida nos meios de comunicação. É uma questão de sobrevivência para nossa dignidade comunal.

Se nos calarmos diante do que acontece, nos tornamos cúmplices da insanidade e da imoralidade política deste mundo. Voltar as costas a quem sofre, fechar as portas aos desabrigados e famintos, se aliar aos poderosos, clamar por armas, apoiar guerras e cultuar o poder do dinheiro e das corporações é rejeitar tudo o que nossas tradições nos ensinam sobre o Divino e sobre a compaixão.

É hora de escolhermos que caminho seguiremos: o caminho da paz ou das armas? Do perdão ou da vingança? Da compaixão ou do ódio?

+Gibson


sábado, 4 de março de 2017

Cristianismo e masculinidade: uma brevíssima resposta


Não, o Jesus das Escrituras não convida os homens a serem mais “masculinos”, nem as mulheres a serem mais “femininas” – seja lá o que esses termos signifiquem nas teologias daqueles que defendem essa visão –; antes, ele convida homens e mulheres a serem como ele. Assim, esse Jesus exige que seus seguidores – homens e mulheres – sejam mansos, gentis, humildes, compassivos, caridosos, corajosos, justos, humanos. Isso é completamente diferente desse discurso centrado no binômio masculino-feminino, que tem dominado a mentalidade bélica dessa pobre teologia política (agora na moda), herdeira da “Guerra Fria”.

+Gibson

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O pecado patriótico

Hmmm... Para mim, o patriotismo e o nacionalismo são pecados: eles colocam o Estado-nação à frente do ser humano e, assim, a criação do homem se torna mais digna e mais valorosa do que a "criação divina".

Deus nos salve do patriotismo e do nacionalismo!

+Gibson

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Novamente, a verdade


Para responder, de forma muito breve, a uma pergunta que me foi feita:

Como alguém que trabalha nos campos da História, da Teologia e da Filosofia, realmente não acredito que a História, a Teologia ou a Filosofia nos ajudem a encontrar a “verdade”. O que elas podem fazer é nos ajudar a compreender a “mudança” e a elaborar e organizar “conceitos”. Mas nem a “mudança” nem os “conceitos” são “a verdade”. Se é “a verdade” que buscamos, é muito mais provável que a encontremos na poesia, na ficção, nas artes em geral e nas relações com outros seres humanos (que chamo de “espiritualidade”) – expressões essas que transcendem as limitações de nossa humanidade. A “verdade” sobre a dimensão misteriosa de nossa existência, sobre o Sagrado, assim, não se encontra nos conceitos humanos – nesses conceitos encontramos apenas pistas que apontam para um caminho, e não a “verdade” em si.

+Gibson

domingo, 22 de janeiro de 2017

Professando minha "fé"


Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. […] Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé.” (Tiago 2:17-18)

Frequentemente, as pessoas demonstram uma enorme preocupação com a “crença” enquanto cerne da fé religiosa. Para eles, a “” consiste numa função intelectual de aceitação duma formulação de crença correta (a “ortodoxia”). Sua “fé” define-se pelas coisas nas quais declaram acreditar – e mesmo que não tenham consciência disso, enfatizam aquele aspecto da fé chamado em latim, na tradição teológica luterana, de “assensus” (que se refere ao ato de assentir, concordar, aprovar). Isso é demonstrável, por exemplo, nas inúmeras vezes que outras pessoas me perguntam no que creio. Elas esperam que eu professe uma lista de declarações fixas sobre diferentes aspectos teológicos, para que, assim, possam avaliar minha “fé” como “ortodoxa” ou “herética”.

Esperar que eu professe uma compreensão intelectual acabada da Realidade de Deus, da dimensão misteriosa ou dum porvir eterno não funciona para minha fé pessoal. Sou um cristão moldado por diferentes tradições cristãs, ordenado ao sacerdócio/ministério de cinco diferentes comunhões cristãs, e minha teologia pessoal é cada vez mais abençoada pela influência de outras tradições – cristãs ou não. Minha relação com amigos de outras tradições religiosas me ensina o quanto temos em comum e me faz compreender a “verdade” religiosa como algo que se encontra além de qualquer função intelectual.

Gosto de pensar que minha fé é multitradicional, isto é, bebe duma catolicidade mais extensa do que os limites de qualquer comunhão denominacional. Assim, meu unitarismo se entrelaça ao meu anglicanismo que aprende com meu luteranismo que se ilumina com meu restauracionismo que se pacifica com meu quakerismo que se integram à minha herança judaica liberal. De todos eles, e de minha herança cultural, emerge minha compreensão do Sagrado – que inclui não apenas Deus, mas também a humanidade e o todo da criação. Assim, o aspecto intelectual de minha fé não pode ser descrito como algo acabado, imutável; minha compreensão de fé, minha teologia, é, antes, um processo, um caminho, uma via.

Acredito em revelação, que “Deus ainda está falando”, como diz o slogan de uma de minhas denominações. Só que isso pode significar algo totalmente diferente do que alguns poderiam pensar. Nunca ouvi, literalmente, a “voz de Deus” – ou seja, nunca ouvi uma voz mensurável falando comigo, vinda do céu. Mas, ainda assim, julgo ouvir a voz divina: a ouço quando me sinto compelido a ouvir alguém que precisa ser ouvida(o); a ouço quando escuto uma música que me inspira ou consola; a ouço quando sou inspirado por alguém a fazer o que certo; a ouço quando alguém me oferece o consolo que eu preciso. Esse tipo de audição é o que chamo de “influência divina” ou “presença do Espírito Santo”. Essa Presença divina é aquela influência que me convida a participar do “Tikkun olam” (a restauração, reparo, cura do mundo), ensinado por minha herança judaica liberal, ou da construção de “Sião” (comunidade de compaixão, solidariedade e honra do valor e dignidade de todas as pessoas), como ensina minha tradição cristã restauracionista.

É isso que prefiro enxergar como minha fé. Menos uma crença, e mais uma esperança que me compele a tornar o aqui e agora no templo para a habitação do Divino. Menos uma lista de declarações sobre o desconhecido, e mais um desafio para tornar toda a minha vida uma manifestação de minha “fé”. E confesso publicamente, aqui, que essa é a coisa mais difícil que se pode tentar – mas é um desafio transformador!

Como um unitarista, é óbvio que me ocupo da intelectualização de minha “fé”. Essa é também, a propósito, parte de minha ocupação no ministério religioso e no ensino teológico. Mas me preocupo muito mais em viver minha “fé” do que em articulá-la intelectualmente. Em minha tradição anglicana, temos uma expressão para isso: “lex orandi lex credendi” – a lei da oração [é] a lei da crença – ou seja, é na oração que expressamos nossa crença; e como nossa própria vida deve ser uma oração, é na forma como vivemos nossas vidas que expressamos nossa crença teológica (como bem afirma o autor da Carta de Tiago).

+Gibson

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Jesus, Cristianismo e Política: um protesto


Eu confesso que cada vez mais me escandalizo com a incoerência e irrelevância do “testemunho” explicitado por aqueles que se apresentam como “verdadeiros cristãos”, “crentes bíblicos”, “católicos devotos” nas redes sociais. Essa legião de gritadores de refrões políticos – com máscaras de devoção religiosa – sequestram o vocabulário cristão a fim de legitimar seu fanatismo político reacionário, e acabam fazendo o contrário do que dizem defender: transformam seu suposto Deus, seu suposto Cristo e sua suposta fé num artefato de violência, de egoísmo, de maldade e de subserviência aos “poderes deste mundo”.

Isso fica claro, por exemplo, no caso da bajulação patética à figura do novo Presidente eleito dos Estados Unidos por parte desses tolos brasileiros. Os autoproclamados “servos de Deus” defendem a figura de Donald Trump – o grande idiota que utiliza impropérios e agressividade contra a dignidade humana como baluarte padrão de sua relação com o público – como se fora um novo messias enviado para salvá-los dos anjos do mal. Da mesma maneira, defendem o idiota nacional da mesma estirpe (i)moral, Jair Bolsonaro, como se o mesmo fosse uma espécie de retorno a uma “moralidade” que nunca existiu.

É vergonhoso! Faz-me pensar nas palavras atribuídas a Jesus, pelos autores do Evangelho de Mateus: “[...] Pois eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do Céu.” (Mateus 21:31b)

O que teria a mensagem atribuída a Jesus de Nazaré pelos autores dos Evangelhos a ver com as mensagens de Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Ou melhor ainda, o que teria o Jesus daqueles textos a ver com qualquer um dos políticos do mundo?

O que Jesus tem a ver com pena de morte e posse de armas? Sim, aquele Jesus que supostamente ensinou que deveríamos amar aos nossos inimigos; o mesmo Jesus que ensinou que seu reino não era deste mundo.

Querem defender suas ideias de reação à cultura liberal? Façam-no explicitando que suas ideias saem de seus próprios medos e preconceitos, dos manuais políticos dos séculos XVIII e XIX que acabaram de descobrir, dos ideários de simpatizantes da ditadura pelos quais nutrem simpatia, dos vídeos de pseudofilósofos emigrados e dos blogs de gente que lê pouco. Não falsifiquem sua proclamada fé – ao fazê-lo, vocês, além de desqualificarem sua visão política, sabotam a mensagem política da tradição cristã.

O Jesus refugiado, que exaltou “estrangeiros” em sua prédica; o Jesus que quebrou uma tradição androcêntrica ao mencionar o mundo e as relações femininas em seus ensinamentos; o Jesus que, como judeu, preocupa-se em seus ensinamentos com o pobre, o fraco e o oprimido; o Jesus que transforma a criança no símbolo daquilo que seus seguidores devem ser; o Jesus que rejeita a revolução sanguinolenta, a violência e os poderes deste mundo. Esta é a figura “política” que se pode extrair das narrativas sobre Jesus: não a imagem de alguém que defende o capitalismo ou o socialismo; a homofobia ou o movimento LGBT; o machismo ou o feminismo. As palavras atribuídas a Jesus proclamam o amor à humanidade e a Deus: não o amor ao capital, ao ódio e às armas!

+Gibson