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sábado, 24 de dezembro de 2016

Um significado para a narrativa do Natal


Frequentemente, utilizo as palavras “metáfora” e “mito” para me referir às narrativas bíblicas. Por conta disso, já me acostumei às reações que muitas pessoas têm a esse uso. Muitos, por exemplo, podem não se sentir desconfortáveis com o termo “metáfora”, mas reagem negativamente ao termo “mito” por compreendê-lo erroneamente: entendem “mito” como sinônimo de “mentira”; assim como entendem “verdade” erroneamente como sinônimo, apenas, de “factualidade”. Eu, obviamente, continuarei a utilizar esses termos para tratar de três grandes “mitos” cristãos – as narrativas sobre o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré – e hoje, especificamente, gostaria de tratar acerca do mito do Natal de Jesus.

No estudo da religião e da teologia, um “mito” não é uma “mentira”. Mitos sagrados, como aqueles que encontramos na Bíblia, por exemplo, são narrativas simbólicas sobre a relação entre a dimensão sagrada e aquela de nossa experiência comum. Esses mitos são verdadeiros, mesmo que não sejam relatos factuais do que aconteceu na realidade humana. Sua verdade encontra-se além de sua (não) factualidade. Mesmo que a linguagem utilizada na Bíblia cristã para falar sobre o nascimento de Jesus – uma mãe virgem, três reis do Oriente, uma nova estrela, etc – não represente factualidades históricas, isto é, coisas que factualmente aconteceram no mundo físico, ela aponta para o significado que Jesus tem para a narrativa cristã. É nesse sentido que – acompanhando autores como Rudolf Otto, Mircea Eliade, William James e Marcus J. Borg – chamo esses relatos de “mitos”.

Obviamente, talvez a maioria dos cristãos abrace uma interpretação apresentada como “literal” (ou seja, o que “está escrito” deve ser compreendido exatamente como está expresso no texto) – apesar de que, se formos intelectualmente íntegros, deveremos reconhecer que absolutamente ninguém razoável interpreta o todo das Escrituras Sagradas de forma literal, já que toda interpretação é sempre seletiva (mesmo as mais aparentemente “literais”). Assim, muitos cristãos insistirão que não é possível “ser cristão” sem acreditar na literalidade das narrativas bíblicas sobre o nascimento de Jesus, por exemplo. Essa visão factualista das Escrituras tem uma origem moderna, mas foi naturalizada de tal forma, por tantos cristãos, que nossa cultura a vê como a norma, ignorando as diferentes tradições interpretativas da Igreja cristã.

A necessidade de certezas absolutas, para aqueles que compreendem a história como um conflito entre a “verdade” e a “mentira”, faz com que só possa haver duas possibilidades: ou o nascimento de Jesus se deu como dizem os diferentes relatos do Novo Testamento cristão ou esses relatos são mentirosos – o que muitas dessas pessoas não se dão conta é que todos os relatos nos Evangelhos canônicos são diferentes, por mais que mantenham elementos em comum. Assim, o que se perde – com essa ênfase factualista – é o poder da linguagem metafórica que enriquece os elementos factuais da narrativa natalina. A arte linguística da metáfora, presente naquelas narrativas bíblicas não exige nossa “crença”: exige, sim, nossa “visão”; ou como já escreveu o falecido professor Marcus J. Borg: “O ponto não é acreditar em uma metáfora, mas ver à luz dela” (2001: 41).

“Ver à luz” da metáfora natalina é, em minha experiência espiritual, ser circundado por uma melodia que me convida à dança divina – uma dança que honra minha própria humanidade ao despertar em mim um senso de dependência e de compaixão. Esse senso não significa que eu tenha, de alguma forma, me “aperfeiçoado”; significa, sim, que sou ajudado a reconhecer a necessidade de me aproximar do “divino” através da aproximação a outras pessoas e ao resto da Criação.

Assim, pensar na narrativa dum “príncipe da paz” que nasceu em condições de exclusão (Lucas 2:7) e sob a ameaça da violência e que, por isso, teve de se refugiar em terra estrangeira (Mateus 2:13-15) – independentemente da (não) factualidade do relato – me faz pensar naqueles seres humanos que, hoje, realmente passarão o Natal se refugiando da violência humana. Esses seres humanos, para mim, são também “Deus conosco”, já que são a presença divina testemunhando contra nosso pecado de violência e indiferença ao sofrimento humano. O relato mais que factual sobre o nascimento do menino chamado de o “príncipe da paz”, no meu “ver à luz” da metáfora, é um lembrete de que eu – enquanto discípulo professo daquele personagem – não posso aceitar que outros seres humanos sejam tratados indignamente. Afinal, como diriam as palavras atribuídas àquele mesmo menino, já como adulto, “todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram” (Mateus 25:40).

Assim, ser envolto pela melodia narrativa do Natal é ser relembrado da visão de “shalom”/”salam” presente nas Escrituras. A visão de um menino que vem à terra como o “Deus conosco” e mostra que todos os seus “irmãos” são também “Deus conosco”, e que devemos tratá-los como trataríamos aquele que chamamos de nosso “Salvador”.

As celebrações desta noite são, para mim, um lembrete desta tarefa sagrada que nos foi imposta por nosso Profeta, Mestre, Messias, Senhor – sim, Jesus de Nazaré, chamado de Cristo. Esse é um dos mais importantes sentidos que encontro na narrativa natalina: um convite à “divinização” de toda a vida, de toda a humanidade, de toda a Criação – um lembrete de que Deus se faz presente em minha vida por meio de outras pessoas, de que suas faces são um reflexo da Presença divina e daquele que seria chamado de “Filho do homem”.

Minha sincera oração é que todos nós que professamos ser discípulos de Jesus Cristo tenhamos a ousadia de fazer ao nosso próximo o que faríamos a ele próprio. Que nos levantemos contra a violência, o descaso, a indiferença, o egoísmo e entremos naquela dança divina à qual somos convidados pelos cânticos natalinos. Como dizem as palavras daquela Oração de Despedida:

Cristo nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão, reconciliação e compaixão. Cristo morre em nós quando nos rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino divino aqui mesmo neste mundo. […]”

Feliz Natal a todos. Que a metáfora da narrativa natalina possa ajudar-nos a abrirmos nossos corações e a caminharmos a senda de Jesus.

+Gibson


Referência:

BORG, Marcus J. Reading the Bible again for the first time. Nova York: HarperCollins, 2001.


sábado, 17 de dezembro de 2016

Confissão e oração de Advento


Amo o simbolismo do Natal, apesar de não compreender a narrativa natalina como um relato histórico factual. Obviamente, para mim, sua concepção não foi virginal e não houve, literalmente, uma estrela nova no céu anunciando o nascimento do menino Jesus. O bebê, plenamente humano, seria posteriormente mergulhado no mito que o deificaria como a encarnação literal de Deus; e ser cristão, para os novos “ortodoxos” – especialmente a partir do século XX –, seria sinônimo de acreditar naquela narrativa metafórica neotestamentária como se fora o relato de uma factualidade inquestionável.

As narrativas bíblicas são um misto de memória histórica e linguagem metafórica. E como um cristão liberal, preocupo-me muito mais com outros aspectos da memória histórica metaforizada pela linguagem dos autores dos Evangelhos do que aquela duma concepção sobrenatural e nascimento anunciado por anjos e estrela. Jesus como “mamzer”, como refugiado, como perdoador, como desafiador duma cultura androcêntrica ao incluir o mundo feminino em sua linguagem, como praticante de suas palavras: esse Jesus plenamente humano personifica o símbolo da Divindade e, assim, pode ser visto e sentido como “Deus conosco”. Mas essa personificação é uma metáfora – uma verdade que se encontra apenas além da factualidade.

É a humanidade de Jesus, mais do que a divindade do Cristo, o que continua a me alimentar espiritualmente na tradição cristã. O Nazareno, posso amar plenamente: afinal, ele é humano como eu. E, enquanto humano, personificou a presença divina para os seus seguidores. O Cristo etéreo dos cristãos helenistas – construído para conseguir o respeito de intelectuais gregos – não me interessa tanto. Prefiro o rabino galileu. Ele é mais desafiador. É o seu nascimento que celebro no Natal: o homem que me ensina a ser humano e, assim, a transformar o aqui e agora no “basileia tou theou” [o reino/domínio de Deus] dos Evangelhos.

Sim. Vem Jesus; vem Cristo: em minhas ações, em minhas palavras, na forma como vivo minha vida e em como me relaciono com as outras pessoas e com o resto da Criação. Vem na forma como trato os diferentes de mim e os mais fracos. Vem para que eu também saiba compartilhar o meu pão com os famintos. Vem em meu rosto e mãos para receber o forasteiro. É minha oração de Advento. Amém.

+Gibson

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Filosofia para as vítimas da antifilosofia



Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!



Referências

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Deus, criacionismo e outras polêmicas: uma resposta a provocações recentes – Parte 1



Pensar sobre Deus não é um substituto para a experiência com Deus, e falar sobre Deus não é um substituto para o oferecimento às pessoas de maneiras de experimentar Deus. (Matthew Fox)


Recentemente, tenho recebido, como resposta à prédica “Por que ‘Deus’ não é Deus?”, centenas de mensagens, tanto de pessoas que estavam presentes ao evento quanto de pessoas que simplesmente reagiram ao título (sem, de fato, terem ouvido uma única palavra do que disse). Aqui, tentarei responder, brevemente, a algumas daquelas provocações.


Deus” não é Deus

Tenho repetidamente dito que há, para mim, uma diferença entre a “realidade” e os conceitos que construímos ou abraçamos acerca dela. As generalizações que servem de base para a construção de nossos conceitos não dão conta do todo da realidade que observamos. Assim, quando identificamos uma pessoa, por exemplo, como “religiosa”, tendemos a atribuir a essa pessoa características gerais que imaginamos serem necessárias para que alguém seja “religiosa”. O termo “religiosa”, desta forma, se torna uma etiqueta que desconsidera as possibilidades de variação, que ignora a complexidade da experiência humana. A generalização é tornada um esteriótipo.

Nas teologias das diferentes tradições de fé, “Deus” é uma dessas generalizações. Especialmente no Cristianismo – assim como, talvez em menor grau, em outras tradições jordânicas, como o Judaísmo e o Islã –, há uma preocupação sistemática com a definição da deidade. Assim, no bojo da diversidade da teologia cristã, há diferentes visões teontológicas (i.e., sobre Deus) que, de acordo com o teólogo católico Peter C. Phan, giram em torno da doutrina da Trindade – algumas favoravelmente, outras contrariamente.

O ponto sobre o qual tenho sempre argumentado é que essas noções, doutrinas ou dogmas – ou seja lá como as chamemos – são construções históricas e, como tal, estão socioculturalmente condicionadas. Elas são diferentes da “realidade” que observamos. Assim, “Deus” enquanto noção teológica, enquanto nome, é diferente de Deus enquanto “Realidade”. É nesse sentido que “Deus” (noção) não é Deus (Realidade). O conceito não passa de uma redução instrumental. Ou, como escreveu Gregório de Nissa:


Qualquer um que tente descrever a Luz inefável com a língua é verdadeiramente um mentiroso; não porque odeie a verdade, mas por causa da inadequação de sua descrição.”


Nossas narrativas, metáforas e crenças religiosas são verdadeiras apenas por conta de sua historicidade. Ou seja, elas são verdadeiras apenas em relação às experiências que um indivíduo ou um grupo tem da/com a realidade. Por isso a “verdade” (enquanto conjunto de noções) é relativa: ela se relaciona com a forma como nos relacionamos com o mundo, e essa relação/experiência serve de filtro para a compreensão que construímos da realidade. Assim, nossas compreensões não são produto apenas de nossa razão, assim como também não são produto apenas de nossas experiências, elas resultam da interação entre ambos.

As compreensões que temos de Deus são moldadas conjuntamente pelas ideias que abraçamos e pelas experiências que temos. Mesmo quando alguém pensa que crê apenas no que as Escrituras de sua tradição ensinam, sua “leitura” (a compreensão que constrói) é condicionada por sua experiência de vida (seu background sociocultural, sua história familiar etc). É a isso que os termos “historicidade” e “relatividade” se referem, em meu discurso.

É isso que está “por trás” daquele título!


Os três Cs: Cristianismo, criacionismo, ciência

Nunca existiu e não existe um Cristianismo único, estático, a-histórico. Como bem escreveu o filósofo e historiador unitarista Arthur O. Lovejoy, “...pessoas que igualmente professaram o Cristianismo e chamaram a si mesmas de cristãs mantiveram, no curso da história, toda espécie de crenças distintas e conflitantes agrupadas sob esse nome...”. Assim, não é possível falar no Cristianismo como se fosse uma “verdade” unívoca e imutável. Ele não é, nunca foi e, provavelmente, nunca será.

O Cristianismo não é a religião professada por Jesus de Nazaré – ele era judeu! – e não é a religião de Deus! O Cristianismo é, antes, a resposta que nós cristãos damos à nossa experiência espiritual filtrada pela ótica de nossa herança sociocultural. Enquanto artefato humano, uma religião diz muito mais sobre seus adeptos do que sobre a divindade que dizem honrar. Não seria diferente com o Cristianismo! O Cristianismo somos nós que o professamos, e não Jesus ou Deus!

Não há nada de essencialmente anticientífico no Cristianismo. Também não há nada de científico na fé cristã. No mundo moderno, fé religiosa e ciência expressam preocupações para com dimensões distintas da realidade. A dimensão misteriosa – aquela que diz respeito àquilo que se encontra além do que pode ser objetivado, mensurado – é o objeto da fé religiosa. A dimensão objetiva – que diz respeito a tudo o que pode ser mensurado, analisado por meio de instrumentos científicos – é o objeto da ciência. O suposto conflito entre religião e ciência, enquanto tais, não passa de mito – mito que serve como instrumento para as intenções de certos indivíduos ou grupos.

O Cristianismo não prega o criacionismo. O Cristianismo ensina acerca da criação. Criação e criacionismo não são a mesma coisa. O criacionismo surgiu como uma tentativa, por parte de adeptos do fundamentalismo protestante, de cientificar uma crença tradicional pré-evolucionista.

Para responder diretamente a uma das questões que me foram feitas: Bíblia e Cristianismo não são a mesma coisa. Você teria de desconhecer a história do Cristianismo para imaginar que o mesmo se baseie unicamente nos textos da Bíblia. A maioria das tradições cristãs reconhecem que a própria Bíblia, originalmente, emergiu como um produto da “Tradição” (e não o contrário), e que essa Tradição foi posteriormente instruída pela autoridade bíblica.

Mas mesmo que se pense que a Bíblia seja a única fonte doutrinária cristã (o que não é o caso para as tradições católica romana, ortodoxa, anglicana, luterana, metodista, unitarista e outras), ela não ensina aquilo que ficou conhecido como “criacionismo”! A narrativa da criação, na Bíblia, não é uma teoria científica – até porque os autores daquela coleção de textos não expressavam a mesma preocupação com explicações objetivas das origens do Universo e da vida que nós temos atualmente.

As origens do criacionismo se encontram em outro lugar. Para compreendê-lo, temos de revisitar as origens do “Movimento Fundamentalista”. E faremos isso na segunda parte deste texto.

Até breve!

+Gibson da Costa

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A espiritualidade do encontro humano


...Ele não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos...
(Atos 17: 27-28)


Com frequência, alguns se surpreendem quando descobrem que, além de uma vida intelectual-profissional-social, mantenha uma “vida sacerdotal” – como a nomeia minha colega e amiga Christine. Talvez, a surpresa dessas pessoas se baseie numa construção equivocada do que seria uma pessoa religiosa. Para alguns deles, talvez, o sacerdócio/ministério signifique uma “santidade” que indique um desinteresse pelas coisas “mundanas”, incluindo o intelecto.

Não poderia haver um equívoco maior acerca da vida sacerdotal/ministerial, ao menos para mim.

A “santidade” sobre a qual alguns falam – termo esse, geralmente, que não se faz presente em meu próprio discurso sobre mim mesmo, por razões muito pragmáticas – tem, para mim, uma relação com aquilo que chamo de “espiritualidade” ou “reverência”. Pessoalmente, encontro minha espiritualidade na complexidade da existência. O sagrado, em minha compreensão e experiência, não se encontra exclusiva ou necessariamente numa entidade externa – em Deus. A sacralidade, a espiritualidade, a reverência e o próprio Deus se encontram em minhas relações com outros seres humanos e com o todo da criação.

Sim, como um devoto, encontro a Divindade em meus momentos de devoção silenciosa e solitária, em meus momentos ritualísticos com outros fiéis e em meus momentos de leitura e estudo das Escrituras Sagradas. Mas, como um humano, encontro o Divino, principalmente, em meu encontro com outros seres humanos – especialmente porque minha fé só pode ser praticada em comunidade.

Esse encontro com outros seres humanos se dá de várias maneiras. As artes sempre foram uma forma de encontro memorável: especialmente a música, a literatura e o cinema. A reflexão filosófica e teológica também. Pensar sobre o mundo, avaliar, criticar: todos são encontros sacramentais com o Divino. A emoção e a reflexão são, em união, um sacramento divino, um encontro com Deus.

É por essa razão que “acreditar em Deus” é dispensável. Os dois termos – “acreditar” e “Deus” – são, afinal, relativizáveis. O que significaria “acreditar”? E “Deus”? “Acreditar em Deus”, ao menos da forma como tantos utilizam a expressão, significa apenas conformar-se a uma visão que outra pessoa tem acerca da Divindade. Pessoalmente, prefiro experienciar a “Realidade” e a “Presença” que chamo de Deus.

Assim, posso experienciar essa “Realidade” e essa “Presença” quando ouço uma música que me faz lembrar que sou parte deste mundo “criado” por aquela Presença. Experiencio-as quando alguém responde ao meu cumprimento, ou mesmo quando não o faz. Experiencio-as quando dialogo com outra pessoa por meio da voz ou da escrita, quando a presença de outros me mostra que não estou sozinho num cenário de ilusão. Essa é a Presença, a Divindade, em sua forma mais humana, mais nítida.

É claro que Deus é real. Deus está presente em todos os momentos e em todos os lugares. Está presente quando amamos e quando somos amados, quando servimos e quando somos servidos, quando ouvimos e quando somos ouvidos, quando duvidamos e quando somos duvidados, quando cremos e quando descremos. Assim, não há contradição ou conflitos entre crer e criticar, entre o rito sacramental e o trabalho intelectual. Minha humanidade é a ponte entre os dois.

Não preciso dizer que acredito no que você acredita para me relacionar com o Divino. Sua própria voz é suficiente para me convencer que Deus fala comigo.

+Gibson


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sola caritas e o dom de comunidade


O dom da comunidade consiste na absolvição que recebemos pelo pecado de fingir que somos completos sozinhos. Esse fingimento de “autocompletude” é um peso que nossa cultura nos impõe; um fingimento que limita nossa humanidade plena, fazendo-nos tolamente crer que possamos ser plenamente humanos sozinhos.

Na verdade, não podemos.

A plenitude de nossas existências só pode ser realmente realizada quando partilhamos o peso de nossa humanidade com outras pessoas. Esse é o dom e a benção da comunidade. Na linguagem cristã, é o dom e a benção de sermos “igreja” – uma comunidade que se engaja no amor e serviço mútuo, entre seus membros e, consequentemente – e eu diria, metaforicamente –, entre esses e Deus.

Frequentemente me lembro das inúmeras vezes em que esse dom se manifestou de forma explícita em minha vida. Das vezes em que, como forasteiro, fui recebido por comunidades que me ofereceram um lar, tanto físico quanto espiritual. Das vezes em que, como ofensor, fui perdoado pela compaixão ofertada por aqueles que formam e complementam minha humanidade, e que, como eu, embarcam num caminho de descoberta e oferecimento da Presença divina.

Não poderia ter iniciado minha formação humana sem comunidade. Primeiro, minha comunidade familiar. Depois, todas as outras que se juntaram a ela em minha formação como humano: a comunidade de fé, a comunidade de amigos, a comunidade profissional etc. Todas elas sempre foram e sempre serão cúmplices do Mistério na criação inacabada de minha humanidade. Criação que, segundo a tradição cristã, se completa apenas quando “retornamos” àquela Presença que chamamos de Deus – ou seja, quando nos juntamos em comunidade ao Divino, apesar de raramente ser essa a linguagem utilizada para se referir a esse processo “soteriológico”.

Não podemos ser humanos plenos sem comunidade. Mas também não podemos ser cristãos plenos sem comunidade. E isso porque a raiz de ser “cristão” está na ação de ser a materialização da Presença Divina – isto é, ser cristão é ser a face de Deus para os outros humanos e para o resto da Criação, e é ver a face de Deus em todos eles. O autor da carta de Paulo aos romanos, por exemplo, diz:

Abençoem os que perseguem vocês; abençoem e não amaldiçoem. Alegrem-se com os que se alegram, e chorem com os que choram. Vivam em harmonia uns com os outros. Não se deixem levar pela mania de grandeza, mas se afeiçoem às coisas modestas. Não se considerem sábios. Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos os homens. Se for possível, no que depende de vocês, vivam em paz com todos. […] Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem.” (Romanos 12:14-18, 21)

São nossas ações, mais do que nossas declarações de crença, que representam nossa fé – para nós mesmos, para nosso próximo, e para Deus.

Comunidade, amor, serviço. Se pudesse redigir uma declaração de minha fé, essas seriam as palavras. Elas não representam o que sou, mas o que tenho recebido de outros e o que almejo praticar em minha vida.

Sola caritas. Só o amor salva. E o amor só pode ser alcançado em comunidade.

+Gibson


quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Manifesto opaco dum não-conformista apátrida

As duas primeiras décadas do século XXI correm o risco de futuramente serem conhecidas, ao menos em algumas partes do mundo, como a “Era da Estupidez em Massa”. Sim, porque a tecnologia sobre a qual nosso dia a dia está atualmente assentado amplia, assustadoramente, o barulho da ignorância coletiva acerca da humanidade – aquilo que caracteriza-nos como seres pensantes.

Em nossos dias, os ignorantes e os doutos encontram canais relativamente livres e gratuitos para gritarem insanidades e se sujarem com a imoralidade apologética – política, religiosa, cultural ou qualquer que seja. Assim, torna-se mais fácil, para uma geração estúpida e irascível como a nossa, a massificação do não-saber voluntário, da apologética cartilhesca, da má vontade para com os demais, do preconceito pelo preconceito.

Se anteriormente se estampavam nas publicações impressas que se liam por preço ou empréstimo, hoje se encontram nos perfis virtuais de usuários semialfabetizados ou doutores. Se antes, para expor preleções intelectuais, o orador submetia-se à liturgia acadêmica ou profissional, hoje necessita apenas criar um canal em sítio de transmissões audiovisuais.

Democrático, é verdade. Mas também disseminador da estupidez, da ignorância e do preconceito.

Hoje, mais do que nunca, a violência, o preconceito, a intolerância, a insensatez e a desonestidade se revestem de roupagens intelectuais e se vendem facilmente como soluções finais para problemas semi-existentes. Mais do que nunca, ouvem-se vozes carregadas de crueldade, desonestidade e estupidez.

Mas essas vozes não são as únicas que falam. E, definitivamente, não devem ser as vozes às quais dar atenção.

Onde estão as vozes proclamadoras da paz e da concórdia? Onde estão as anunciadoras da boa vontade e da apreciação? Onde estão as vozes reconciliadoras e confortadoras? E onde estará o silêncio necessário para a reflexão – o freio que controla impulsos insanos para respostas irrefletidas?

Que vozes escolheremos ouvir nesta segunda metade da segunda década do século XXI? Escolheremos as vozes proclamadoras do ódio, do rancor, da discórdia? Escolheremos as falantes da linguagem ensurdecedora do mal? Ou ousaremos nos afirmar como humanos – como entes pensantes, racionais, culturais, espiritualizados? Mataremos o que o século XX não conseguiu extinguir por completo ou nos ergueremos contra a anti-humanidade?

A estupidez coletiva do século XXI, exposta nas rotas da selva eletrônica pelos profetas e filósofos do não-saber, é a não-humanidade quase-materializada. E ela deve ser rejeitada com todo o vigor de nosso espírito humano, e com toda a beleza de nossa capacidade racional.

Não à estupidez coletiva!

+Gibson

sábado, 30 de julho de 2016

Uma breve e respeitável crítica aos “neocatólicos”: resposta a um leitor católico do Ceará


Tenho acompanhado o que alguns sacerdotes e leigos católicos romanos autoidentificados como “conservadores” – seja lá o que essa adjetivação signifique na nova linguagem da teologia política católica da atualidade – têm escrito a respeito de seu líder máximo, o Bispo de Roma – o Papa Francisco –, e confesso que nunca li ou ouvi tantas incoerências. Inúmeras vezes, tenho recebido mensagens de alguns desses “neocatólicos” (sim, o termo é de minha própria autoria e o explicarei em seguida), e sinto-me forçado a dizer-lhes que conhecem muito pouco da tradição que dizem estar defendendo.

Muitos não compreendem o uso que faço dos termos “católico” e “neocatólico” que tenho feito em algumas publicações, discursos e sermões, e por isso vale a pena explicá-los aqui. Como sempre digo, considero-me um “católico” ao mesmo tempo que um “protestante”. “Católico”, assim, possui um sentido aproximado àquele que minhas tradições unitarista, anglicana e luterana o atribuem, e não o sentido que a maioria dos leigos lhe concederia. Em meu caso, chamar-me de “católico” não é o mesmo que dizer que me encontre em comunhão com a Igreja Romana e, consequentemente, com o Bispo de Roma. Quando me identifico como “católico”, quero dizer que subscrevo à da Igreja “católica” (com “c” minúsculo = “universal”, “global”), que compartilho a fé de todos os cristãos de todas as épocas e lugares – note que me referi à “fé”, não necessariamente aos dogmas ou às teologias. É uma declaração pública de meu espírito e intenções ecumênicos.

Já o termo “neocatólico”, utilizo para me referir especialmente àqueles leigos que recentemente se reaproximaram do ou se converteram ao Catolicismo Romano, trazendo consigo uma ideologia política dita “conservadora”. No caso brasileiro, isso parece ser consequência duma (re)descoberta de certos tipos de teorias políticas, envoltas num discurso nacionalista que incentiva o Catolicismo Romano não como uma fé em si, mas, antes, como uma forma de identidade nacional. Como na mentalidade desses neocatólicos o Catolicismo Romano brasileiro teria sido tomado por “comunistas”, para salvá-lo seria necessário um retorno a formas pré-Vaticano II do Catolicismo. Esses neocatólicos contam, muitas vezes, com o direcionamento “espiritual” e “teológico” de sacerdotes cuja reputação nem sempre seria vista com bons olhos pela alta hierarquia da Igreja Romana.

O problema com todos os argumentos desses indivíduos e grupos neocatólicos aos quais tenho tido acesso é o de sua contradição com a base doutrinária do Catolicismo – a base da autoridade da Igreja, cujo líder máximo seria o sumo pontífice, o Papa Francisco. Como esses indivíduos e grupos podem estar “defendendo” – note a escolha de expressões bélicas no vocabulário desse tipo de movimento (defesa, guerra, batalha, luta etc) – o Catolicismo e a Igreja Católica quando incentivam a rebelião e desafiam a autoridade da Igreja na pessoa do Papa? A eles, aparentemente, falta um conhecimento básico de sua própria religião, ou, talvez, falte coragem para fazer o que parecem querer fazer: fundar ou juntar-se a uma Igreja católica independente, e finalmente romperem sua comunhão com o Bispo de Roma!

Permita-me tomar a liberdade aqui para citar um trecho do Catecismo da Igreja Católica, que, de acordo com a Constituição Apostólica Fidei depositum, “é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica”:

882: O Papa, Bispo de Roma e sucessor de S. Pedro, é o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade, quer dos Bispos quer da multidão dos fieis. Com efeito, o Pontífice Romano, em virtude do seu múnus de Vigário de Cristo e de Pastor de toda a Igreja, possui na Igreja poder pleno, supremo e universal. E ele pode sempre livremente exercer este seu poder.
[…]
891: Goza desta infalibilidade o Pontífice Romano, chefe do colégio dos Bispos, por força do seu cargo quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fieis, e encarregado de confirmar seus irmãos na fé, proclama, por um ato definitivo, um ponto de doutrina que concerne à fé e aos costumes... A infalibilidade prometida à Igreja reside também no corpo episcopal quando este exerce seu magistério supremo em união com o sucessor de Pedro, sobretudo em um Concílio Ecumênico. Quando, pelo seu Magistério supremo, a Igreja propõe alguma coisa a crer como sendo revelada por Deus e como ensinamento de Cristo, é preciso aderir na obediência da fé a tais definições. Esta infalibilidade tem a mesma extensão que o próprio depósito da Revelação divina.

Assim, olhando para esses trechos, que citam documentos do Vaticano I que tratavam da infalibilidade papal, e que reforçavam a compreensão de autoridade hierárquica da Igreja Romana, e lendo sua reafirmação nesse Catecismo pós-Vaticano II, fica fácil compreender que há algo errado com o discurso desses indivíduos e grupos – considerando que eles dizem estar “defendendo” a fé romana! Se é claro mesmo para mim, que não sou um católico romano, deveria ser óbvio para todos aqueles que o são.

Será que o “erro” estará realmente com o Papa, ou os seus críticos, na própria Igreja Romana, é que estão contradizendo a fé católica e violando a tradição?... Bem, como não sou um sacerdote católico, deixo isso para você decidir. Mas, para refletir a respeito da doutrina católica, considere os documentos da própria Igreja Romana, e converse com seu sacerdote. Se precisar, escreva ao seu Bispo. Tenho certeza que eles estarão dispostos a ajudá-lo com algumas de suas questões.

Grande abraço!

+Gibson

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Quem nos salvará do Império da Ignorância?!


A receita nunca falha, independentemente da época, independentemente da cultura, independentemente da língua, independentemente do lugar. Adicione hipocrisia a uma forma de autoritarismo, ao iletramento religioso e à ignorância histórica: o resultado é sempre o discurso da vitimização com base no medo, regendo a retórica do ódio e intolerância com vistas a uma idealizada retomada dum “estado” que nunca existiu.

A Igreja latina usou essa receita contra a Igreja grega e as Igrejas orientais ao longo de sua história. A Igreja grega e as Igrejas orientais usaram essa mesma receita contra a Igreja latina e umas contra as outras. Os católicos romanos usaram essa receita contra os diferentes grupos protestantes no início da Reforma. Diferentes grupos protestantes usaram essa mesma receita contra os católicos e uns contra os outros, posteriormente. Os muçulmanos sunitas usaram a receita contra os xiitas e outros grupos. Os xiitas e outros grupos usaram-na contra os sunitas. Cristãos usaram a velha receita contra judeus e muçulmanos. Judeus e muçulmanos usaram-na contra cristãos. Judeus das mais diferentes tradições usaram-na uns contra os outros. E a história continua.

Até que uma legião de hipócritas, autoritários, iletrados em religião e ignorantes em história religiosa conseguem meios gratuitos para manifestarem sua ignorância aos quatro ventos... e voilà: pode-se ler as manifestações mais assustadoramente vergonhosas nas “redes sociais” eletrônicas!

Abaixo, minha resposta a algumas dessas manifestações:

Não, “cristãos” não estão sendo “perseguidos” por “muçulmanos” no Ocidente. Um sacerdote francês foi brutalmente morto por assassinos que agiram – em parte, por conta de sua hipocrisia, seu autoritarismo, seu iletramento religioso e sua ignorância histórica –, usando sua professa religião como desculpa.

Não, “muçulmanos” não estão sendo “perseguidos” por “cristãos” no Ocidente. Os cristãos que manifestam intolerância aos muçulmanos – usando sua professa religião como desculpa –, o fazem, em parte, por conta de sua hipocrisia, seu autoritarismo, seu iletramento religioso e sua ignorância histórica.

Esses professos muçulmanos e cristãos não representam todos os demais muçulmanos e cristãos. E nenhum deles representa, em princípio, uma ameaça à “harmonia original” de uma tradição ou outra. Até porque nunca houve uma “harmonia original”!

Um pouco de estudo histórico mostraria, por exemplo, que os governos “cristãos” do passado agiram por muito mais tempo de forma intolerante e sanguinária contra judeus, muçulmanos e quaisquer outras minorias do que os governos “muçulmanos”. E que os mesmos governos “muçulmanos” do passado demonstraram uma tolerância e proteção a judeus e cristãos incompreensível aos olhos dos cristãos.

Enquanto os governos “cristãos” europeus torturavam, matavam e expulsavam judeus de seus territórios, os “califados muçulmanos” permitiram que uma influente comunidade judaica florescesse em seu meio. E isso ao longo de séculos!

As coisas só mudaram quando a Europa foi laicizada, secularizada. Interessante, não?! Foi justamente o afastamento – mesmo que apenas formal – da religião do poder do Estado que fez com que os crentes/praticantes de outras religiões não fossem mais assassinados ou punidos por conta de sua fé.

Nos países de maioria muçulmana onde se desenvolvem ideias “islamistas jihadistas” – a propósito, “islã” é o nome da religião, “movimento islamista” (ou “islamita”) é um conjunto de movimentos fundamentados numa ideologia política frequentemente chamada de “Islã político”, e “jihadismo” é uma ideologia revolucionária islamista frequentemente belicista, nenhum desses termos é necessariamente sinônimo um do outro –, ideias abraçadas por muitos dos “revolucionários” tornados terroristas, há exatamente o mesmo tipo de reacionarismo contra a secularização e a mesma intolerância a outras tradições religiosas divulgada por grupos cristãos ditos (equivocadamente) “conservadores” no Ocidente. As maiores vítimas desses grupos islamistas jihadistas não são os cristãos, são, na verdade, outros muçulmanos – que são a maioria – que não pensam nem agem como eles.

Atribuir ao Islã e a todos os muçulmanos os crimes praticados por terroristas jihadistas é como imputar os crimes dos terroristas do Exército Republicano Irlandês ao Catolicismo Romano e a todos os católicos do mundo. Só um autoritário, iletrado religioso e ignorante da história o faria.

Quem, afinal, nos salvará do Império da Ignorância?!

+Gibson da Costa

domingo, 17 de julho de 2016

Os “falsos profetas” da Política cristianizada ou do Cristianismo politizado brasileiro

Este é mais um ano de eleições no Brasil. Na verdade, é um ano no qual as disputas políticas se acirraram de maneira tal que ninguém mais parece saber em quem confiar para ocupar um posto eletivo. Afinal, o país se encontra no meio dum furacão político no nível federal, cujos efeitos se fazem sentir nos cenários estaduais e municipais. E toda essa convulsão política tem efeitos na vida moral da sociedade, inclusive, infelizmente, nas compreensões teológicas que se desenvolvem no seio das comunidades cristãs brasileiras.

Muitos dos chamados “evangélicos” brasileiros – e devo enfatizar que, em meu uso, “evangélico” e “protestante” não são necessariamente sinônimos – importaram a teologia e a política belicistas de certos grupos ligados à chamada “direita cristã” dos Estados Unidos, querendo aplicar ao Brasil uma ideologia desenvolvida para o cenário rural, racista e isolacionista do chamado “cinturão da Bíblia” americano. Eles têm, no Congresso Nacional brasileiro, até um nome autoritário para seu grupo político (nome que se repete, com variações, nas Assembleias Legislativas de alguns Estados e nas Câmaras de muitos municípios): “Frente Parlamentar Evangélica” – e chamo de “autoritário” porque se impõem, publicamente, como representantes de todos os “evangélicos” brasileiros (algo que, em si, já deveria tornar-se um motivo de indignação por parte das comunidades evangélicas e protestantes Brasil afora).

Esses senhores e senhoras senadores, deputados e vereadores – muitos dos quais são acusados e/ou processados por corrupção, entre outros crimes – se vendem não apenas como representantes de seus eleitores, mas como representantes de Deus, de Cristo e da família. Seu charlatanismo chega a ser tão explícito que se apresentam como “apóstolos”, “pastores” e “missionários”, e não como simples representantes eleitos por uma parcela do “povo”. E isso porque, assim, podem impor ao seu trabalho legislativo uma imagem de santidade que não poderiam vender se fossem apenas senadores, deputados ou vereadores – seriam representantes da Divindade nos meios legislativos.

A arma utilizada por esses grupos é antiga e bem conhecida: a instrumentalização do medo. Assim, criam em seus eleitores, em seus discípulos, em seus seguidores, em seus fieis o medo de tudo aquilo que possa parecer diferente. O que é diferente é uma ameaça. O que é uma ameaça é um inimigo. E o inimigo deve ser combatido até que não haja mais ameaças. E como a ameaça só existe se houver inimigo, então... bem, faça as contas e entenderá qual seria a solução!

O que essas pessoas fazem vai muito além de apenas criar o medo em seus eleitores para, assim, conseguirem seus votos em épocas eleitorais. Eles deturpam o Evangelho de Cristo, violentam a dignidade da fé e saqueiam a racionalidade teológica para conseguirem o poder para si. Sua imoralidade é tamanha que conseguem transformar, na mentalidade e prática de seus seguidores, o “Príncipe da Paz” em “senhor da guerra”, o Jesus do amor e perdão em defensor do “direito ao porte de armas”.

Pode parecer injusto de minha parte, mas não me sinto nem um pouco culpado ou envergonhado por chamar os membros desse movimento imoral de “falsos profetas” e “enganadores”. Minha generalização impiedosa é mais do que necessária. É muito mais vergonhoso que qualquer pessoa que se identifique como discípulo de Jesus (seja evangélico, protestante, católico ou adepto de qualquer outra forma de Cristianismo) não se sinta nem um pouco incomodada em haver grupos como esses se vendendo como seus representantes políticos.

Esses representantes de si mesmos, em seu esforço para se tornarem porta-vozes duma “Política cristianizada” – ou seria “Cristianismo politizado”? – identificam a mensagem de paz do Evangelho, o ensinamento cristão do cuidado para com o mais fraco e o faminto, a atenção para com a viúva e o órfão, etc, como mensagem “comunista” ou “marxista”. Assim, esses iletrados na religião cristã, mas também em filosofia política, promovem uma política anti-Jesus em defesa de sua visão dum “novo” velho mundo: um mundo no qual o homem-senhor reina sobre “sua mulher” e filhos, com a Bíblia numa mão e a chibata na outra; um mundo no qual armas são essenciais para a “paz”; um mundo no qual o “cristianismo” é tão frágil que é ameaçado por qualquer crença não “evangelical” (eles não sabem que o Cristianismo não se limita ao Evangelicalismo!).

Quão patológico não é o falso “evangelho” anunciado por esses “profetas” da política brasileira?! E o pior é que seus discípulos, que, em sua maioria, são pessoas honestas e sinceras que apenas caíram nas velhas redes do medo, não percebem isso! Se percebessem, tenho certeza, pensariam dez vezes antes de votar naqueles senhores ou senhoras.

Não, esses falsos profetas no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais e nas Câmaras municipais não representam a maioria dos evangélicos brasileiros. E por essa razão, não deveriam ser eleitos como seus representantes e não deveriam ser retratados como porta-vozes dos evangélicos ou dos protestantes do Brasil!

+Gibson

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Seção 165 de Doutrina e Convênios - Comunidade de Cristo


Na Conferência Geral de junho de 2016, da Comunidade de Cristo, foi aprovada a inclusão das Palavras de Conselho – apresentadas pelo Presidente Stephen M. Veazey à igreja, na Conferência Geral de 2013 – em Doutrina e Convênios, como seção 165. Como uma seção de Doutrina e Convênios, aqueles conselhos do Presidente Veazey passam a ser aceitos como parte das Escrituras canônicas na Comunidade de Cristo. Abaixo, ofereço uma tradução livre e não autorizada ao português da (nova) seção 165 de Doutrina e Convênios, da Comunidade de Cristo – é importante ressaltar, especialmente para meus amigos de outros grupos da “Restauração”, que trata-se da versão de Doutrina e Convênios da Comunidade de Cristo, sediada em Independence (não se refere a “A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, cujos membros são conhecidos como “mórmons”).

+Gibson


Doutrina e Convênios 165

Durante três anos a igreja estudou, em espírito de oração, as palavras de conselho dadas em 2013. O Espírito Santo confirma que a igreja seria abençoada ao considerar este conselho para sua inclusão em Doutrina e Pactos. Este documento é humildemente oferecido para esse propósito como expressão de nosso apreciado princípio de Revelação Contínua.

Enquanto preparava o documento final, me mantive aberto a mais direcionamento divino que pudesse melhorar a compreensão da igreja agora ou no futuro. O direcionamento aperfeiçoou algumas frases. Em vários casos, também adicionou conteúdos por razões conhecidas por Deus.
Também considerei, em espírito de oração, que porções das palavras de conselho se aplicavam especificamente a quando foram dadas e que não necessariamente precisavam estar em Doutrinas e Convênios.

O testemunho que ofereço é a certeza de que Deus, o Eterno, amorosa e pacientemente guia a igreja de acordo com os propósitos divinos. Sejamos gratos for seu direcionamento. Que possa servir como uma senda de luz e de esperança para todos os que buscam seguir a vontade de Deus.



Aos conselhos, quóruns e ordens, à Conferência Mundial, e à igreja:

1 a. Comunidade de Cristo, uma visão divina é posta diante de vocês. Apresentada ao longo dos anos por meio de várias frases e símbolos inspirados, é expressa agora através de iniciativas em harmonia com a missão de Jesus Cristo.
b. Como um empreendimento espiritual, sigam audazmente as iniciativas rumo ao cerne da visão de Deus para a igreja e para a criação. Então, em resposta à percepção cada vez maior sobre a natureza e a vontade de Deus, continuem a moldar comunidades que vivem o amor e a missão de Cristo.
c. Amorosamente convidem outros a experienciarem as boas novas de nova vida em comunidade com Cristo. As oportunidades abundam em suas vidas cotidianas, se vocês escolherem vê-las.
d. Empreendam ações compassivas e justas para abolir a pobreza e terminar com o sofrimento desnecessário. Busquem a paz na e para a Terra.
e. Não permitam que nada lhes separe dessa missão. Ela revela a intenção divina para a salvação pessoal, social e ambiental; uma plenitude de testemunho do evangelho para a restauração da criação.
f. Continuem a aliar suas prioridades aos esforços locais e mundiais da igreja para impulsionar as iniciativas. Abordagens inovadoras adicionais para coordenar a vida congregacional e para apoiar grupos de discípulos e buscadores são necessárias para lidar com oportunidades de missão num mundo de mudanças.

2 a. Liberem a plena capacidade da missão de Cristo por meio da generosidade que imita a generosidade de Deus.
b. Escutem os testemunhos daqueles que respondem generosamente. Sigam o anelo de sua alma para retornar à graça e generosidade de Deus. Deixem que a gratidão lhes mostre o caminho.
c. Lembrem-se, um princípio básico do discipulado é cultivar a missão de Cristo por meio dos dízimos para a missão local e mundial de acordo com a capacidade real. Doar a outras organizações meritosas, mesmo sendo uma parte importante de Uma Resposta Generosa do Discípulo, não deve diminuir ou substituir os dízimos de missão.
d. Dizimar é uma prática espiritual que demonstra o desejo de oferecer cada dimensão de sua vida a Deus. Quando definida pela fé, pelo amor e pelo planejamento esperançoso, incluindo a resolução do endividamento imprudente, a capacidade para responder torna-se muito maior do que se supunha inicialmente.
e. A mordomia como resposta ao ministério de Cristo é mais do que a doação individual. Inclui a generosidade de congregações e jurisdições que doam aos ministérios mundiais da igreja para fortalecer a comunidade em Cristo, em todas as nações.
f. Compartilhar para o bem comum é o espírito de Sião.

3 a. Encarnem mais plenamente sua unidade e igualdade em Jesus Cristo. A unidade e a igualdade em Jesus Cristo são alcançadas por meio das águas do batismo, da confirmação pelo Espírito Santo, e são sustentadas através do sacramento da Comunhão. Abracem o significado pleno desses sacramentos e estejam espiritualmente unidos em Cristo como nunca antes.
b. Entretanto, não é correto professar unidade e igualdade em Cristo através das alianças sacramentais e, então, negá-las por meio de palavras ou ações. Tal comportamento fere o corpo de Cristo e nega o que eternamente se resolve na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
c. Vocês não entendem plenamente muitos processos inter-relacionados da criação humana. Através de sua maravilhosa complexidade, a criação produz diversidade e ordem.
d. Não se consumam com preocupação sobre a variedade em tipos e características humanos ao vê-los. Estejam apaixonadamente preocupados com a formação de comunidades inclusivas de amor, unidade e igualdade que revelem a natureza divina.
e. Unidade e igualdade em Cristo não significam uniformidade. Significam Unidade na Diversidade e relacionar-se em amor como o de Cristo às circunstâncias dos outros como se fossem as suas próprias. Também significam uma oportunidade plena para as pessoas experienciarem o valor humano e direitos relacionados, incluindo a expressão dos dons dados por Deus na igreja e na sociedade.

4 a. Sobre o sacerdócio, Deus chama a quem Deus chama dentre discípulos comprometidos, de acordo com seus dons, para servir e alcançar a toda a humanidade.
b. As políticas do sacerdócio desenvolvidas através de sabedoria e inspiração proporcionam uma maneira clara para que os discípulos respondam ao chamado. Também definem a diferença entre a percepção dum chamado potencial e a necessidade de alinhar a própria vida aos princípios de comportamento e relacionamentos morais que promovam o bem-estar da comunidade da igreja.

5 a. Crescimento e orientação espirituais enriquecem o envolvimento na missão de Cristo. O evangelista presidente e a Ordem dos Evangelistas, com seus colegas no ministério, devem concentrar-se na formação espiritual de comunidades de discípulos e buscadores que vivem, profunda e generosamente, no Espírito de Cristo.
b. Deem o sacramento da benção evangelista não apenas a indivíduos e congregações, mas a famílias, lares e grupos em busca de orientação espiritual para darem-se mais completamente à missão de Cristo. Nada nestas instruções deve ser interpretado como uma diminuição da importância do sacramento da benção evangelista para os indivíduos.

6 a. Amada Comunidade de Cristo, não apenas falem e cantem de Sião. Vivam, amem e partilhem como Sião: aqueles que se esforçam para ser visivelmente um em Cristo, entre os quais não há pobres nem oprimidos.
b. Como corpo de Cristo, carreguem amorosa e pacientemente o peso da crítica daqueles que hesitam em responder à visão divina de valor e igualdade humana em Cristo. Este peso e benção é de vocês por propósitos divinos.
c. E, sempre se lembrem, o caminho do amor sofredor que leva à cruz também leva à ressurreição e vida eterna na comunidade eterna de unidade e paz de Cristo. Confiem nesta promessa.

Stephen M. Veazey
Presidente da Igreja

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Cristianismo e violência homofóbica: respondendo a algumas provocações



“… se aperfeiçoem na prática da hospitalidade.” (Romanos 12:13)


Serei duro em minha resposta a algumas provocações que tenho recebido. Em hipótese nenhuma é minha intenção ferir qualquer um de meus leitores ou leitoras. Mas, a honestidade, às vezes, exige um tanto de rigidez.

Sim, é verdade que há muita falta de compaixão por parte de algumas igrejas e alguns fiéis cristãos para com diferentes grupos ou indivíduos que não se encaixem em suas expectativas. Essa falta de compaixão é, em minha compreensão teológica, pecaminosa, já que trai o espírito da mensagem do Evangelho.

Sim, é verdade que muitos indivíduos LGBT se sentem excluídos da comunidade cristã por conta da falta de compaixão de alguns que se declaram cristãos. Isso, para mim, é triste e inaceitável. Não acredito que pessoas tenham de mudar sua personalidade para sentirem-se respeitadas e protegidas enquanto seres humanos. Isso é algo que elas merecem pelo simples fato de serem humanas e de, na tradicional linguagem cristã, serem filhos e filhas de Deus.

Crer nisso, proclamar isso e viver isso, entretanto, não significa dizer que comunidades de fé (igrejas) não possam fazer exigências comportamentais de seus adeptos. Elas têm esse direito. A vida em comunidade só é possível sob acordos entre seus membros e, no caso de comunidades de fé, esses acordos baseiam-se sobre uma tradição teológica comum – partilhada se não por todos, pelo menos pela maioria.

Quando uma comunidade de fé, de qualquer tradição, acredita e ensina uma certa compreensão da sexualidade humana e das relações maritais que declare práticas homoafetivas como “pecaminosas”, ela não está, com base apenas nisso, sendo “homofóbica” ou cúmplice de “homofobia”. Está, apenas, vivendo suas próprias regras.

Em minha compreensão – e todos vocês sabem a partir de que posição falo nesse conflito –, e na compreensão da lei, a vida religiosa baseia-se, dentre tantas outras coisas, na voluntariedade. Em outras palavras, você só faz parte duma comunidade de fé à qual você queira se juntar. E essa – seja lá qual for – só recebe aqueles a quem queira receber. Uma igreja não é uma loja que venda “Deus” ou a “salvação – ou, pelo menos, não deveria ser –, é, antes, uma comunidade de fiéis.

Assim, mesmo eu sendo quem sou, e mesmo eu crendo no que creio no tocante ao valor e à dignidade humanos, não posso aceitar acusações generalizantes e falsas acerca de pessoas que não pensam como eu. Apesar de, para mim e para minha tradição de fé, a homossexualidade não ser um “pecado”, como o ensinam tantos outros cristãos, dizer que seja e exigir um comportamento “moral” que se afaste de “desejos e práticas homossexuais” não é sinônimo de “homofobia” – é, no máximo, sinônimo de ignorância e preconceito; mas se vamos falar sobre “ignorância” e “preconceito”, também deveremos falar sobre esses dois elementos na visão, declarações e comportamentos de certos ativistas.

Não é verdade que “todas as igrejas cristãs condenam a população LGBT ao inferno”. Na verdade, nem todas as igrejas cristãs pregam sobre o mito do “inferno” – algumas estão ocupadas demais pregando as boas novas de Jesus para se preocuparem com “o diabo”. Para nós, Deus é suficiente; não precisamos do diabo ou do inferno para nos preocuparmos com o serviço ao próximo e com a construção do Reino de Deus aqui e agora.

Sim, é verdade que as igrejas e movimentos mais belicosos no tocante a temas “delicados” como esse são as que têm maior audiência nos meios de comunicação. São elas que aparecem nos noticiários, que têm programas de TV, que vendem revistas nas bancas, e que elegem os tipos de legisladores de certas “bancadas” do Congresso. Elas, contudo, não são “o Cristianismo” – elas são uma parte apenas (a mais poderosa no Brasil atual, mas apenas uma parte).

O Cristianismo é multiforme e polifônico, assim, é injusto acusar-nos todos como coparticipantes duma visão teológica específica. Fazê-lo é não apenas reflexo de desinformação deliberada: é uma desonestidade imoral.

Aos que acreditam na retórica da não compaixão absoluta da Igreja cristã para com qualquer tipo de pessoa, convido-os a procurar com mais cuidado e atenção. Se de fato quiserem ser parte duma comunidade de fé onde possam se sentir bem-vindos, tenho certeza que encontrarão esse lugar. Só não se esqueçam de que da mesma forma como querem ser livres e ser respeitados, outras pessoas que, talvez, pensam de forma diferente da sua também o querem. É uma via de mão dupla! É o preço de construir comunidade!

Se precisar de ajuda em sua busca, ficarei feliz em ajudá-lo(a)!

Sinceramente,

Rev. Gibson da Costa

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Minha resposta ao “Unitarista Mineiro”


Caro “Unitarista Mineiro”,

Li o que você escreveu e confesso que não sabia exatamente por onde começar. Decidi, então, iniciar minhas observações por definições simples – como se deveria fazer em qualquer debate de ideias.

É importantíssimo deixar claro que a razão para a sua suposta “confusão”, em minha opinião, é possuirmos um background religioso/intelectual/sociocultural bem diferente – o que faz com que mesmo que utilizemos os mesmos termos, atribuamo-lhes sentidos muito distintos.

Você me acusa, por exemplo, de rejeitar “a verdade” sobre Deus, citando alguns textos publicados aqui e em um de meus livros. Mas o que lhe pergunto é: você realmente leu minhas perspectivas sobre “verdade” e sobre “Deus”? Os argumentos que você utiliza como apoio às suas observações sugerem que você não tenha lido atentamente aqueles textos – parece, na verdade, ter apenas lido alguns comentários feitos por outros acerca do que eu supostamente penso (comentários esses que se tornaram comuns em alguns meios ditos “evangélicos”). Para mim, seria muito mais interessante dialogar sobre o que escrevi com alguém que tenha, de fato, lido o que escrevi.

Muitas vezes não escrevo de forma tão direta ou objetiva quanto alguns querem pelo simples fato de Deus e fé, por exemplo, não serem temas objetivos, quantificáveis, metrificáveis. Não acredito num Deus que possa ser pesado, metrificado, analisado sob as lentes dum microscópio, já que Deus não é – em minha experiência e compreensão – um objeto! Se uso uma linguagem provocadora é porque, no meu meio religioso e sociocultural, essa é mais compreensível – além de a mesma ser uma marca de minha personalidade. Por isso posso dizer que “não posso acreditar em Deus” – porque a maioria de meus leitores, provavelmente, compreendem minha escolha da metáfora como instrumento para falar sobre certos conceitos teológicos. Quando digo isso, eles entendem que estou fazendo uma crítica ao uso de certos conceitos acerca de Deus com os quais não concordo plenamente.

Sua tática de atacar minha vida pessoal é a menos merecedora de comentários, mas a comentarei assim mesmo. Não o conheço pessoalmente, o que implica que você também não me conhece pessoalmente – se alguma vez, mesmo que improvavelmente, tenhamos estado fisicamente no mesmo local, isso não significaria que você me conheça. Posso citar exatamente as fontes de seus comentários, onde estão e quem os fez originalmente (pessoas, a propósito, que também não me conhecem e que encontraram em teorias da conspiração uma forma infeliz de lidar com a pluralidade religiosa no mundo!).

O joguete de deslegitimar a opinião dum “oponente” com base em acusações contra sua vida pessoal – em meu caso explícito, com base em minha vida eclesiástica – é tão antigo quanto imoral. Foi usado no meio político romano; foi usado nos primórdios da Igreja cristã; foi usado ao longo das eras; e é, infelizmente, ainda usado em nossas sociedades ditas pós-modernas. Meu apelo é à civilidade: se você discorda de minhas ideias ou das ideias teológicas que defendo, ataque-as e não a mim – é isso que faço e que continuarei a fazer, se discordo de algo ou de alguém (deixo os ataques pessoais para as crianças que ainda estão aprendendo a viver em sociedade, e para aqueles que não se esforçam em percorrer a trilha da compaixão).

Sua mensagem é tão incoerente em termos conceituais que não consegui entender se você tenta se identificar como um “unitarista bíblico” ou como um “unitário-universalista”. Esses dois conceitos são contraditórios, mas você defende a ambos simultaneamente! Eu, pessoalmente, não me identifico como nenhum dos dois! Sou, eclesiasticamente, um unitarista – o que identifico, em minha experiência de fé e prática, como um “cristão liberal” herdeiro da tradição unitarista anglófona. Não tenho o mínimo interesse em definir o que isso seja para qualquer outra pessoa – seja membro de minha própria comunidade de fé, seja para alguém de fora. Assim, se você se diz um “unitarista”, mesmo que seu discurso esteja muito alheio à minha tradição e mesmo que você se mostre desinformado quanto à mesma, esse é seu direito – o que eu teria a ver com isso?… Mas, se você escreve para um Ministro de uma igreja unitarista, tentando ensinar-lhe sobre a tradição que você aparentemente desconhece, então você tem de estar preparado para uma resposta que talvez não lhe agrade muito!

Nunca menti sobre [ou omiti] minha história eclesiástica aos meus leitores (nem, muito menos, aos meus paroquianos!). Sempre deixei claro que tenho uma múltipla herança religiosa, já que venho de família multirreligiosa. Sou um unitarista-anglicano, com ligações também às tradições luterana, congregacional, restauracionista e quaker. Além de herdeiro do Judaísmo Reconstrucionista.

É óbvio que alguém com minha experiência religiosa e minha formação teológica não poderia pensar como você pensa acerca da Divindade. Em nenhuma das tradições que me formaram como ser religioso há o predomínio duma visão de Deus, da Bíblia, de Jesus como a que você afirma ser “a verdadeira”. Logo, eu estou sendo “verdadeiro” e “honesto” para com minha própria tradição de fé – que é, em si mesma, polifônica.

Não direi a você no que deve acreditar. Direi, sim, no que acredito eu. Acredito e confio na Realidade de Deus. Sobre essa Realidade, é dito nas Escrituras que é amor. Quando enfatizo essa definição de Deus, alguns insistem que com isso queira dizer que não há “certo” ou “errado”: estão errados – quando digo isso, apenas enfatizo minha compreensão das Escrituras e tradições judaico-cristãs que apontam Deus como cerne da compaixão capaz de nos tornar “humanos”, como “elemento” indispensável na construção das relações entre os seres humanos (os “filhos/as de Deus”). Meus leitores e ouvintes, incluindo você, podem construir suas próprias interpretações de minhas palavras para si, mas – com todo respeito – não podem querer dizer a mim o que minhas palavras devam significar!

Apesar de nossas discordâncias, continuarei a mantê-lo em minhas orações e, humildemente, peço o mesmo de você.

Respeitosamente,

Rev. Gibson da Costa

sábado, 9 de abril de 2016

Esta manhã, bebi água de coco com Deus


Mais uma vez, me perguntam se creio em Deus. Mais uma vez, lhes digo que não sei o que querem dizer. O que significa dizer “Creio em Deus”? Quando alguém diz que crê em Deus, não me diz nada sobre a Realidade Divina, me diz apenas sobre si próprio(a). Ele(a) me diz sobre o que faz, e não sobre a Realidade na qual “crê”.

Ultimamente têm me perguntado em que “Deus” creio: se meu “Deus” era o mesmo da Bíblia; se o meu “Deus” era o mesmo de Joseph Smith; se o meu “Deus” era o mesmo do Corão; ou se era ateu. A verdade é que alguns leitores parecem ter uma obsessão com minha “falta de claridade em definir” minha crença. E eu que sempre imaginei que o que escrevo aqui e que a forma como discuto minha fé – aqui, no púlpito ou em outros espaços – fossem suficientemente claros ou, pelo menos, sugestivos de minha visão teológica (e teontológica)!

Como já escrevi inúmeras vezes, a forma como encaramos questões sobre aquilo que chamo de “aspecto misterioso” da realidade é condicionada pela forma como compreendemos o resto da realidade. Se alguém se preocupa tanto em querer uma definição objetiva sobre quem ou o quê seja o Divino, ao menos em minha visão, é porque tem uma compreensão de “verdade” diferente daquela que abraço.

Para que eu fosse capaz de definir Deus nos termos utilizados por alguns daqueles que me fazem aquele tipo de pergunta, teria de compreender a Divindade como uma entidade objetiva, mensurável, antropomorfa. Essa, entretanto, não é a forma como compreendo “Deus”; é a forma como compreendo você e eu, mas não a Divindade. Logo, aquela pergunta não faz sentido pleno para mim.

Mas se querem tanto saber quem é Deus, para mim, posso lhes garantir que somos relativamente próximos. Na verdade, nos sentamos esta manhã à bancada dum quiosque no calçadão da praia e tomamos uma água de coco gelada, enquanto falávamos sobre sua vida. Como ele estava cansado, ofereci-me para acompanhá-lo até seu edifício, dois quarteirões dali. Ele está, afinal, com quase oitenta anos!... Naquele momento, Deus era, para mim, um homem idoso que me contou suas memórias sobre a exploração imobiliária em seu bairro, e sobre como sua vida estava após a morte de sua esposa (com quem fora casado por cinquenta anos). Conversar com aquele homem foi sentir Aquela Presença que chamo de Deus.

Essa é uma das formas como compreendo “Deus”. Minha fé exige que eu enxergue o Divino em outras pessoas, e que aja para com elas como se elas fossem o “próprio Deus” – algo que parece bem mais difícil do que “acreditar” numa ideia específica do que ou quem seja Deus.

Como a metáfora bíblica do homem ter sido criado “à imagem e semelhança” de Deus é essencial para minha compreensão teológica, amar o ser humano é amar a Deus, e ser violento para com o ser humano é negar o próprio Divino. Assim, para mim, nossa fé em Deus define-se, na verdade, através da forma como nos relacionamos com “sua imagem e semelhança” entre nós: o que inclui as outras pessoas e nós mesmos, além do resto da Criação.

Há variadas formas de compreender o Divino, e todas elas podem ser úteis em diferentes contextos. Mas, na maioria das vezes, Divindade, Presença e Realidade são minhas metáforas favoritas para falar acerca de [daquela outra metáfora] “Deus”.

+Gibson

domingo, 27 de março de 2016

O Jesus que salva: notas sobre temas pascais, dum ministro unitarista


A Paixão comercializada

Como muitos sabem, sou um cinéfilo e, como tal, tendo a não apenas assistir a muitos filmes assim como também a me envolver em conversas sobre eles com meus amigos. Hoje, lembrei-me das acirradas discussões que tivemos, em 2004, acerca do filme A Paixão de Cristo [The Passion of the Christ], de Mel Gibson. Lembro-me que quando o filme foi lançado nos Estados Unidos, centenas e centenas de igrejas cristãs das mais diferentes tradições organizavam idas coletivas ao cinema para assisti-lo. Para muitas daquelas pessoas aquele parecia ser um exercício espiritual, uma forma de experiência sacramental na qual se efetuava um encontro com Cristo. Eu, contrariamente, senti-me majoritariamente ofendido tanto pelo filme quanto pelo que percebi como uma comercialização explícita da fé. [De certa forma, não tão diferente do que ocorre hoje, no Brasil, com o filme Os Dez Mandamentos, de Alexandre Avancini, e não tão diferente do que ocorre com a Paixão de Cristo, de Nova Jerusalém, em Pernambuco.]

As críticas que fiz em 2004, em conversas informais e no púlpito, ainda são válidas. Quando a fé cede à força do consumismo, corre-se o risco de abrir mão do que há de mais belo na tradição, e de deixar de encontrar novos sentidos para o encontro com o Divino. Transformar as narrativas das tradições sagradas em mercadoria que possa ser vendida e comprada, num entretenimento fomentador duma “religiosidade” imediatista, é baratear a experiência com o Divino e, portanto, consigo mesmo – e para mim, como um unitarista, tal tipo de experiência (com o Divino e/ou consigo mesmo) deve envolver tanto as emoções quanto a razão.

Será, então, que filmes, a seleção de astros e estrelas do cinema ou da TV, e o merchandising produzido para acompanhá-los, são realmente feitos com a finalidade primordial de servirem de testemunho religioso e para a “edificação espiritual” dos espectadores?... Eu, com todo respeito às experiências de outras pessoas – e mesmo acreditando firmemente que toda e qualquer experiência possa ser espiritual –, duvido disso! Por mais que as obras possam, sim, ser utilizadas como instrumentos pedagógicos para a espiritualidade de alguém, e por mais que o trabalho dos participantes seja belo, agradável, inspirador e merecedor de reconhecimento, a forma como essas obras muitas vezes são promovidas pode contribuir para a espetacularização duma compreensão literalista da tradição cristã – se foram divulgadas, como muitas vezes o são, como expressão da “verdade da fé”.


A diversidade do Cristo

A observação aparentemente incompassiva que faço sobre esses tipos de entretenimento relaciona-se com as diferentes compreensões que os diferentes cristãos abraçam acerca de sua própria fé. Ela não reflete uma verdade inquestionável; reflete, antes, minhas percepções particulares. E as cito aqui por terem sido tema de conversas que mantive esta semana com amigos e paroquianos. Tenho sempre dito que a diversidade de compreensões na grande tenda da tradição cristã é o que a torna fascinantemente bela para mim. Essa diversidade é o que faz com que me refira a “Cristianismos”, no plural, em vez de “Cristianismo”, no singular. As diferentes tradições teológicas cristãs oferecem as mais variadas compreensões acerca dos mais variados temas, incluindo os concernentes à vida, ensinamentos, morte e ressurreição de Jesus – temas tão importantes para as diferentes celebrações do calendário da Igreja cristã, como a Páscoa.

Apesar de ser um cristão unitarista – e, por isso, poder ser visto pela maioria como um “heteredoxo” ou “herege” – e, assim, não poder concordar com aqueles meus irmãos cristãos que chamam Jesus Cristo de “Deus”, concordo com o que eles possivelmente queiram dizer quando o identificam dessa forma. Como afirmado pelo unitarista Rev. James Freeman Clarke, em 1841, em Jesus também identifico uma manifestação de Deus. Nele encontro Deus reconciliando o mundo a Si. Em Jesus encontro uma imagem do Deus invisível que não encontro de forma tão explícita em ninguém ou nada mais. Desta forma, as palavras, atos e caráter atribuídos a Jesus Cristo são as palavras, atos e caráter [que atribuo à minha compreensão] de Deus. Como um cristão, posso dizer que ver o Jesus retratado pela Tradição é ver Deus [¹]. Nesse aspecto, pelo menos, como um unitarista, compartilho da fé professada por cristãos de outras expressões – mesmo aqueles que me acusam de heresia e/ou apostasia.

É minha convicção que todas as nossas compreensões da Divindade só podem ser parciais. Nossas ideias sobre Deus e sua relação com a criação – o que inclui nossas ideias sobre Jesus – são contextuais e relativas; isto é, dependem de quem somos e de nossos contextos pessoais e/ou comunitários, sincrônica e diacronicamente considerados [*]. Assim, se você tiver mais de 35 anos, como eu, já deve ter percebido que suas compreensões acerca da Divindade – para não citar aquelas acerca do mundo ao seu redor – mudaram ao longo do tempo. Essas compreensões provavelmente emergiram do encontro entre suas experiências com o Divino e as coisas que você aprendeu sobre o mundo, das ideias teológicas/filosóficas/políticas/científicas às quais foi exposto(a), das comunidades de fé às quais se juntou, dos livros que leu, das pessoas com as quais conviveu ou conheceu, dos desafios que enfrentou, enfim, das suas experiências de vida. Por mais imutáveis que possam parecer nossas diferentes formas de fé religiosa, elas, na verdade, não o são.

Além dessa mutabilidade característica de nossas ideias pessoais, também não se pode desconsiderar a mutabilidade das ideias ensinadas pelas diferentes tradições de fé – o que inclui as diferentes comunhões/denominações cristãs ao redor do mundo e ao longo do tempo, em comparação com as demais e com as diferentes expressões em seu próprio interior. Assim, nunca poderemos conhecer plenamente todas as compreensões cristãs possíveis acerca da própria tradição cristã – a não ser, obviamente, que sejamos suficientemente arrogantes para supor que nossa expressão de fé seja a única “verdadeira”, que apenas a nossa tradição seja “a verdade” de Deus. Nós unitaristas tradicionalmente rejeitamos a essa visão – e eu, pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia para com qualquer dogmatismo exclusivista, seja relativo ao(s) próprio(s) Cristianismo(s), seja no que tange à sua relação com outras tradições religiosas.


Jesus vive e salva

No(s) Cristianismo(s), a ideia de “salvação” relaciona-se diretamente à pessoa de Jesus Cristo. Dependendo da compreensão que se tenha sobre a identidade de Jesus e do sentido de sua morte e ressurreição, se professará uma compreensão soteriológica – isto é, de como ocorre/opera-se a “salvação”. Assim, não há uma visão única do sentido da Páscoa cristã, como, por exemplo, o filme de Mel Gibson ou as diferentes representações populares da “Paixão” Brasil afora poderiam sugerir; há diferentes formas legítimas de compreender Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, a Páscoa, a salvação etc.

O falecido teólogo e professor Marcus J. Borg, sob quem tive o privilégio de estudar e aprender muitíssimo, discute, num de seus mais populares livros [²], três das grandes tradições teológicas cristãs acerca da morte e ressurreição de Cristo – discutidas pelo teólogo e bispo luterano sueco Gustaf Aulen, num livro publicado em 1931 [**]. A primeira dessas compreensões, chamada, em latim, de Christus Victor [Cristo Vitorioso], mantém uma relação com a narrativa bíblica do êxodo e aponta como a mais importante obra de Cristo sua vitória sobre aquilo que escraviza a humanidade, incluindo o pecado, a morte e o “diabo”. A segunda é chamada de substitutiva ou objetiva, para a qual a morte de Cristo é um sacrifício que possibilita o perdão de Deus, e na qual essa morte é enxergada através da narrativa sacerdotal/sacrificial. A terceira, correlacionada à narrativa do exílio, retrata a Jesus nem como alguém que triunfe sobre o que nos escraviza nem como um sacrifício pelos nossos pecados, mas como um revelador da verdade [***] – isto é, como revelador de Deus, como luz que nos salva da escuridão do exílio, de sua morte e ressurreição como uma revelação do caminho de retorno, como uma revelação do “processo espiritual interno que nos traz a uma relação experiencial com o Espírito de Deus”; ou seja, Jesus é compreendido como a encarnação do caminho de retorno do exílio. [³]

Não é necessário um grande conhecimento de História da Igreja para perceber qual conjunto de compreensões acima parece ser dominante tanto no meio cristão quanto na compreensão que a sociedade como um todo tem do(s) Cristianismo(s). A narrativa sacerdotal – aquela que vê a morte de Cristo como um sacrifício necessário ao perdão da humanidade por Deus, de forma substitutiva (em lugar de outros), isto é, que Jesus teria carregado sobre si a culpa dos pecadores e sofrido a pena que mereciam (a morte) – está explícita na maioria das representações da morte de Jesus (nos hinos, nas declarações de fé, nos sermões, nos filmes, nas peças teatrais etc). Apesar de essa linguagem sacerdotal/sacrificial já estar presente no próprio Novo Testamento, essa compreensão só se tornou dominante na Igreja ocidental a partir duma obra escrita por Anselmo, Cur Deus Homo?, de 1097. Ela resgata e cristianiza não apenas as antigas ideias sacrificiais de tradições religiosas mais antigas, mas também as ideias e linguagem do Direito Romano.

Obviamente, a linguagem sacrificial e legalista utilizada para se referir ao Divino em sua relação com a Criação – quando, por exemplo, se afirma que Deus exigiria a morte dum inocente para que sua ira não se voltasse contra a humanidade pecadora – é uma compreensão legítima da fé cristã. Essa é, também, a compreensão oficial da maioria das tradições cristãs ocidentais. Mas isso não muda o fato de que, para mim, é uma compreensão repulsiva. Pessoalmente, me recusaria a adorar uma deidade que expressasse “seu amor” através da exigência de sacrifícios de sangue – e isso porque, se esse fosse o caso, eu seria mais compassivo que essa deidade. Logo, a linguagem metafórica do “sacrifício” e do “sangue” não apela à minha espiritualidade nem à minha integridade intelectual – independentemente de onde se encontre e de quem a tenha utilizado. Tenho de utilizar outras imagens para me referir ao meu encontro com o Divino.

Como a metáfora do exílio é cara à minha compreensão do Divino – porque apela às minhas próprias experiências de vida –, você pode imaginar qual daqueles conjuntos de compreensões molda minha visão daquilo que é celebrado na Páscoa. Como tenho afirmado muitas vezes, compreender a fé cristã como uma Jornada ou um Caminho é muito importante para a forma como compreendo e falo sobre minha fé. Jesus, em minha compreensão, me salva não por ter sido imolado como sacrifício por meus pecados, mas porque os ensinamentos e as ações que lhes foram atribuídos me mostram o Caminho para Deus, e guiam minha Jornada.

Esse Jesus humano, que possivelmente experienciou muitas das limitações e desafios que eu mesmo experiencio – independentemente de quão factuais ou não factuais sejam os relatos a seu respeito –, é meu Salvador por ser minha janela para a “face de Deus” e minha porta para sua presença. É por isso que sou um cristão, é por isso que celebro a Páscoa. Jesus é meu Salvador porque a tradição a seu respeito faz com que queira abandonar minha indiferença ao sofrimento de migrantes paralegais e refugiados. Ele é meu Salvador porque as narrativas a seu respeito me fazem querer ser mais preocupado com os que sofrem rejeição por não corresponderem às minhas próprias expectativas. Ele é meu Salvador porque o que se diz a seu respeito me faz crer que tenha materializado o amor à humanidade de forma plena – e, assim, me ensina que essa é a única forma de “amar” o Eterno.

Hoje celebro a salvação oferecida pela companhia do homem Jesus em minha Jornada rumo a Deus. Jesus, refugiado, pobre, rabino compassivo e não sofisticado, profeta rejeitado, filho de Deus, Salvador de minha fé e de minha relação com a humanidade.

Ele verdadeiramente vive. Aleluia!

Cristo nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão, reconciliação e compaixão. Cristo morre em nós quando nos rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino divino aqui mesmo neste mundo. Saiamos em paz. Amém.”



Notas:

[*] Considerar algo de forma sincrônica significa considerá-lo(a) através de seus diferentes aspectos. Considerar algo de forma diacrônica significa vislumbrá-lo(a) através do seu desenvolvimento ao longo do tempo.

[**] A tradução em inglês é referenciada pelo próprio Borg: AULEN, Gustaf. Christus Victor. Tradução ao inglês de A. G. Hebert. Nova York, EUA: Macmillan, 1969. [Originalmente publicado em 1931.]

[***] Aulen a chamara de subjetiva, mas Borg não concordava com a forma como o teólogo sueco a descrevera.


Referências

[1] CLARKE, James Freeman. The Well-Instructed Scribe, or, Reform and Conservatism: A Sermon Preached at the Installation of Rev. George F. Simmons, and Rev. Samuel Ripley, as Pastor and Associate Pastor Over The Union Congregational Society in Waltham, Mass. October 27, 1841. Boston, EUA: Benjamin H. Greene, 1841. p.11.

[2] BORG, Marcus J. Meeting Jesus Again for the First Time: the Historical Jesus & the Heart of Contemporary Faith. Nova York, EUA: HarperCollins, 1994.

[3] Ibid., p.128.