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domingo, 5 de julho de 2015

Unitaristas, Bíblia e Doutrinas: Resposta a João Pedro


Caro João Pedro,

Obrigado pelo seu e-mail. Desde já desculpo-me por haver demorado em respondê-lo. Você me fez muitas perguntas interessantes, e, aqui, tentarei respondê-las de forma breve, considerando que você pode encontrar – ao longo deste blog – respostas para todas essas suas questões em postagens mais antigas.

Em um trecho de sua mensagem, você escreveu:

- Bom, o unitarismo vê a Bíblia de forma bem diferente da qual fui ensinado, eu queria saber da visão que você tem sobre a Bíblia, das passagens que costuma-se relacionar com assuntos que a tua opinião diverge como, por exemplo, a conversa de Cristo na cruz com os outros dois condenados. Aproveito para perguntar a tua opinião e a visão unitarista sobre demônios, e se possível exemplificar a pergunta anterior sobre o uso da Bíblia com esse assunto.
"Marcos, 5:12 - Rogaram-lhe, pois, os demônios, dizendo: Manda-nos para aqueles porcos, para que entremos neles.
Marcos, 5:13 - E ele lho permitiu. Saindo, então, os espíritos imundos, entraram nos porcos; e precipitou-se a manada, que era de uns dois mil, pelo despenhadeiro no mar, onde todos se afogaram."
- Quanto a crença de o encontro com Deus, após a morte, ser universal, como o unitarismo lida com esta situação de "salvação" como os evangélicos dizem?
- Onde está a base no unitarismo levando em conta que, por exemplo, a base do catolicismo está na Bíblia?

Para respondê-lo, permita-me organizar minha resposta em tópicos numerados, seguindo a ordem que você mesmo utilizou.

1) BÍBLIA:

De fato, o Cristianismo Unitarista – mas também as outras tradições cristãs que me formaram conjuntamente, como a ala liberal do Episcopalismo/Anglicanismo, por exemplo – compreende a Bíblia de formas bem diversas daquelas associadas à tradição na qual você cresceu (a tradição teológica da Assembleia de Deus). Para a maioria de nós, a Bíblia é uma coleção de textos que se tornaram sagrados a partir de um processo de canonização – essa compreensão é também partilhada, por exemplo, pelas tradições católicas, reformadas, luteranas, e anglicanas. Nos textos bíblicos podemos encontrar a “Palavra de Deus” não porque, em sua origem, eles sejam divinos, mas porque aqueles textos apontam para a experiência que outros seres humanos como nós tiveram com o Divino. Assim, talvez seja seguro afirmar que não buscamos 100% de compatibilidade entre o que dizem os textos bíblicos e aquilo que entendemos hoje sobre a realidade física ou espiritual – buscamos, sim, “pistas” que nos apontem para aquele Mistério que chamamos de “Deus”.

Pessoalmente, não leio os textos bíblicos isolados uns dos outros, nem isolados das tradições das quais emergiram (a israelita, a dos primeiros seguidores de Jesus, e a da tradição da Igreja cristã). É por isso que, para mim – mas também para a maioria daqueles que compartilham comigo minha tradição de fé –, uma leitura histórico-metafórica das Escrituras é indispensável. Assim, para ler aqueles textos aos quais você se refere, não consigo desassociá-los dos contextos nos quais estão inseridos – ou seja, o que aquelas pessoas acreditavam sobre a relação existente entre o mundo físico e uma suposta realidade espiritual, a dualidade ou divisão do universo entre bem e mal, e, especialmente, os conceitos de “satanás”, “diabo” e “demônio” que abraçavam. Também não posso desassociar minha interpretação do conhecimento contemporâneo no qual fui formado enquanto cristão: hoje, por exemplo, tenho acesso a conhecimentos que os autores dos relatos dos Evangelhos não tinham; eu sei de onde vêm muitos dos conceitos que eles utilizaram em seus relatos, e sei que muitas vezes sua visão entra em conflito com os relatos e conceitos bíblicos mais antigos; eles, entretanto, não sabiam disso! Penso que os autores dos Evangelhos, por exemplo, e eu partilhamos a influência do mesmo Espírito divino guiando nossa fé, mas nem sempre isso significa que partilharíamos a mesma compreensão intelectual se pudéssemos conversar sobre o que eles escreveram. Levando isso em consideração, é relativamente fácil conciliar as Escrituras com minhas compreensões teológicas.

Ou seja, respondendo à sua questão sobre aquelas passagens de forma mais objetiva, posso dizer que não nos preocupamos em oferecer uma interpretação única, válida para todas as pessoas em todos os tempos, sobre o que elas significam. Diferentes pessoas podem compreendê-las de forma diversa. Os unitaristas e outros cristãos liberais respeitam o princípio de que diferentes cristãos, em diferentes contextos, construirão diferentes interpretações sobre um mesmo texto bíblico ou sobre um ponto teológico específico. Entre nós não há uma lista impositiva de crenças ou doutrinas que deva ser inteiramente aceita para que alguém se torne parte da comunidade. Isso é parte do que entendemos ser nossa liberdade de consciência – ou a liberdade do fiel –, o que está ligado à nossa compreensão de que Deus continua a se revelar à mente e ao coração humano – seja por meio do conhecimento “espiritual”, seja por meio do conhecimento “secular”.


2) SALVAÇÃO:

Já tratei, em outros textos destas páginas, muito sobre este tema. Em minha tradição, Deus é amor, e esse amor, que criou a tudo e todos, é capaz de salvar, de regenerar, de reconciliar, de sanar, sem cobrar preço, sem disputar com forças paralelas. Assim, teologicamente, Deus vence o mal e restaura sua criação à forma original. A tradição unitarista, unindo-se à universalista neste aspecto, proclama um Deus de salvação universal que redimirá toda a humanidade e toda a criação. Essa crença está bem enraizada na Tradição da Igreja cristã – Orígenes escreveu sobre isso, assim como Karl Barth, John A. T. Robinson, para não citar autores especificamente ligados às tradições unitarista e universalista – e na Bíblia.


3) O UNITARISMO SE BASEIA NA BÍBLIA?

Onde está a base no unitarismo levando em conta que, por exemplo, a base do catolicismo está na Bíblia?

Deixe-me começar dizendo que discordo da forma como você trata a relação entre o Catolicismo (Romano) e as Escrituras. A maneira como você formulou sua pergunta faz parecer que o Catolicismo (Romano) ensine que a Bíblia seja sua única fonte doutrinária, o que não é o caso. No Catolicismo, há uma explícita relação entre Escritura e Tradição – o que também ocorre, em menor grau, nas formas mais tradicionais de Protestantismo (especialmente o Anglicanismo/Episcopalismo e o Luteranismo). Essa relação, na tradição católica romana, implica que a fé é expressa por meio das Escrituras como interpretada através da Tradição e da autoridade da Igreja. Logo, não é exato dizer que o Catolicismo se baseie nas Escrituras – a chamada “Tradição apostólica” é um elemento-chave para a teologia católica –, assim como também não é correto dizer que o Protestantismo se baseie nas Escrituras (só algumas tradições evangelicais afirmariam isso). Em todas as tradições cristãs, a Bíblia é interpretada a partir dum contexto teológico específico – absolutamente nenhuma tradição pode afirmar que sua tradição leia a Bíblia plenamente de forma literal e que ela seja sua única “regra de fé”.

O Unitarismo, enquanto tradição cristã protestante – também chamado de Cristianismo Unitarista –, tem suas origens na tradição protestante do “sola scriptura”, ou seja, para os primeiros unitaristas a Bíblia era essencial para a forma como compreendiam questões doutrinárias. A grande diferença entre unitaristas e alguns outros grupos protestantes, neste ponto, é o fato de os unitaristas terem emergido, explicitamente, da cultura iluminista, para a qual a “razão” desempenhava uma função importantíssima. É importante destacar, também, que os diferentes grupos unitaristas europeus se desenvolveram em contextos muito diferentes – tendo emergido de tradições distintas. E isso, obviamente, impactaria suas compreensões teológicas. Assim, os unitaristas italianos, alemães, húngaros, transilvanos, poloneses, neerlandeses (ou holandeses, se preferir), ingleses, escoceses, irlandeses, e, posteriormente, aqueles na América do Norte – entre os séculos XVI e XX – desenvolveram compreensões teológicas e/ou práticas muitas vezes distintas umas das outras, em muitos pontos (como ocorreu com todo e qualquer grupo religioso que tenha adeptos em culturas diversas).

Agora, no tocante às Escrituras, qualquer cristão unitarista entenderia que a Bíblia desempenha um papel primordial em sua tradição. É da Bíblia – interpretada a partir de nossa tradição teológica – que emerge nossa compreensão de Deus, de Jesus, da humanidade ou de qualquer outro ponto teológico. Para nós, as Escrituras, a Tradição e a Razão se entrelaçam para dar forma à maneira como entendemos a fé cristã. Em nossa tradição, a razão, obviamente, sempre recebeu um foco especial, e é justamente por isso que o Unitarismo tende a atrair pessoas menos pacientes com formas de “autoritarismo dogmático” (por exemplo, com uma comunidade ou líder que imponha certas crenças como exigência para ser cristão).

Para os que desejam explicações bíblicas para o Unitarismo, a tradição teológica do Cristianismo Unitarista se assenta sobre uma variedade de interpretações da Bíblia que, para alguns de nós, justifica, biblicamente, as razões para acreditarmos ou deixarmos de acreditar em certas coisas. Esse tipo de discussão, entretanto, não é mais visto como necessário entre nós – ou seja, muito raramente um unitarista discutiria com outro cristão suas crenças, tentando “provar” com passagens bíblicas que suas crenças estão certas (eu não faço isso aqui). Já publiquei aqui, antes, textos que tratam especificamente sobre isso. Se você tiver interesse em explorar mais a relação entre os unitaristas e as Escrituras, leia os seguintes textos presentes aqui neste blogue:

Cristianismo Unitarista (1819) – William Ellery Channing
Manual de Crença Unitarista (1884) – de James Freeman Clarke


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Bem, espero ter conseguido tirar algumas de suas dúvidas. Grande abraço e paz!

+Gibson

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