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terça-feira, 23 de junho de 2015

Islamabad, Rio e Charleston... Lembretes malditos de nossa desumanização!


Eu estava sentado lá, entre dezenas de outros estrangeiros, quando a Igreja Protestante Internacional de Islamabad foi atacada naquela manhã de domingo. O fato de todos nós, cerca de 80 pessoas, estarmos num culto cristão não nos protegeu da violência motivada por um fanatismo etnocêntrico/religioso. O fato de estarmos a menos de um quilômetro da embaixada dos EUA, o maior aliado do governo paquistanês, e a apenas alguns metros de outras embaixadas estrangeiras, não nos protegeu daquela violência. Talvez, olhando para aquele terror que testemunhei 13 anos atrás, poderia consolar-me afirmando que Deus não nos pôde proteger fisicamente porque a violência é um produto humano, e não divino. Afinal, são os homens que se desrespeitam, odeiam e matam em nome da Divindade e de suas crenças e livros sagrados.

Tenho me esforçado ao longo de todos esses anos para esquecer tudo aquilo que vi, ouvi e senti naquela manhã. O barulho de explosões, os gritos, o pavor, os mortos e feridos – tudo aquilo parecia ser uma peça num processo de desumanização do qual, conscientes ou não, nos tornáramos parte. Meu esforço para esquecer, entretanto, parece violar a aliança que fiz comigo mesmo de transformar aquelas memórias em um lembrete do que eu queria ser: um ser humano – um ser que só pode continuar a ser se os outros ao meu redor também forem, independentemente de eu concordar ou não com o que queiram ser.

Nos últimos dias, entretanto, aqueles velhos fantasmas do passado – que ninguém que não tenha estado em situações semelhantes pode compreender plenamente – parecem ter retornado à memória. Para mim, as notícias sobre a violência contra uma menina candomblecista no Rio de Janeiro, Brasil, e sobre o terror numa igreja de Charleston, EUA, serviram como um lembrete maldito. As razões parecem ter sido diferentes, o número objetivo de vítimas foi diferente, mas a natureza desumanizante em ambos os casos foi a mesma. Parece que para humanos desumanizados, os que são diferentes devem ser varridos da Terra para que apenas aqueles que se pareçam ou sejam como eles possam habitá-la. E isso se faz presente em nossos discursos etnocêntricos – seja na política ou na religião.

No que concerne especificamente ao caso brasileiro, é simplesmente indignante ver a fé e os símbolos cristãos associados a uma violência contra uma criança por ela professar uma fé diferente. Contra essa violência aos símbolos cristãos – já que vejo a utilização da Bíblia ou dos nomes de Deus e Jesus como desculpas para uma violência de intolerância religiosa como um desrespeito aos “símbolos” religiosos do Cristianismo – não vi nenhum manifesto por parte daqueles mesmos que condenaram a encenação da crucificação na Avenida Paulista. Para mim, os que se dizem seguidores de Cristo e semeiam o desrespeito, discórdia e ódio contra aqueles que professam uma fé diferente da sua parecem ter fechado os olhos para aquelas palavras que se atribuem ao próprio Jesus:

Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consistem a lei e os profetas.” (Mateus 7:12)

Realmente, é minha oração que um dia possamos – todos nós, inclusive eu – olhar para o outro com o mesmo respeito e amor que nossas múltiplas tradições de fé nos ensinam a ter. Creio que se eu, pessoalmente, for capaz de aprender e praticar isso, poderei finalmente transformar todas aquelas lembranças em sementes – mesmo que dolorosas – para minha própria humanização.

+Gibson

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sobre a cena de crucificação na Parada Gay de São Paulo: uma resposta aos meus leitores


Recebi cerca de vinte e-mails com comentários irritados sobre a imagem que circula nas redes sociais sobre a pessoa “auto-crucificada” da parada gay de São Paulo, ocorrida ontem. Para todos os que me escreveram, um aviso: vocês provavelmente não ficarão muito felizes com o que tenho a dizer!

Em primeiro lugar, sou uma pessoa de fé. Mas minha fé, como bem sabem, é moldada por uma mentalidade teologicamente liberal. Assim, apesar de ser sensível às minhas próprias convicções teológicas, sou também sensível à diversidade de compreensões que estão e devem estar presentes nas relações humanas. Para mim, é necessário, às vezes, me deslocar de minha posição de conforto, e tentar entender as ações de outras pessoas do lugar onde elas estão. Em minha fé, isso constitui um exercício espiritual.

Não consigo entender por que a imagem de alguém que se figura como Jesus crucificado, com um sinal acima de sua cabeça que indica sua intenção – um protesto contra a homofobia que mata muitas pessoas em todos os rincões do Brasil (e do mundo) –, causaria tanta revolta. Afinal de contas, em culturas majoritariamente católicas, como as brasileiras, a crucificação de Jesus foi sempre utilizada como metáfora para representar aquilo que, na compreensão cristã, o machucaria, o recrucificaria. Qualquer cristão deveria poder facilmente relacionar a lembrança de que pessoas são espancadas, humilhadas e mortas por conta de sua orientação sexual, expressão de gênero, ou qualquer outra razão, com as palavras de Jesus, quando disse que quando não cuidássemos de nossos irmãos, era dele que não estaríamos cuidando (Mateus 25:31-46).

Já imagino a razão pela qual a encenação tem sido tão amargamente criticada: a pessoa que interpretou Jesus e o evento no qual a cena ocorreu!... A pessoa errada, no lugar errado! Essa é a única razão racionalmente justificável. Se a encenação tivesse ocorrido num daqueles festejos carnavalescos, no qual Jesus fosse representado por um homem “macho” bêbado, a reação, provavelmente, teria sido menos revoltosa por parte, especialmente, daqueles que ultimamente se redescobriram como cristãos devotos preocupados com a moralidade sexual do mundo!

Não posso deixar de pensar no mesmo Jesus tendo seus pés lavados por uma mulher duvidosa; o mesmo Jesus comendo com pecadores; o mesmo Jesus sendo tocado por mulheres e defendendo adúlteras; o mesmo Jesus que escolheu como discípulo um cobrador de impostos para os dominadores romanos; o mesmo Jesus que viveu sua vida rabínica a serviço dos doentes espirituais. Eu não tenho nenhuma dúvida de que aquele Jesus dos Evangelhos – não importando o quão historicamente factuais ou não sejam os relatos a seu respeito – compreenderia a mensagem daquela encenação.

Honestamente, me sinto muito mais ofendido quando vejo Jesus ser retratado como um cavaleiro do castigo divino, um general vingativo ou como um rei que precise do dinheiro dos súditos para perdoar pecados!

Christe Eleison!

+Gibson

domingo, 7 de junho de 2015

Para proteger as famílias brasileiras, diga não ao PL-6583/2013!!!

Poucas coisas ainda conseguem me chocar quando acompanho as notícias políticas do Brasil e o fanatismo “partidarista” de grande parcela da sociedade brasileira. Um dos exemplos mais recentes refere-se ao chamado “Estatuto da Família” e a seu apoio por parte de supostos defensores do “Estado mínimo”. A insensatez, incoerência e ignorância teórica desses supostos adeptos das tradições minimalistas (conservadora, liberal ou liberal conservadora no Brasil) é um reflexo do vazio “crítico” – e utilizo “crítico” aqui num senso kantista – do discurso político brasileiro. Assim, aqueles que normalmente reclamam da interferência estatal na vida do cidadão, quando lhes convém, defendem um “Estatuto”, que define o que é uma família, que estabelece “conselhos da família” etc – ou seja, que entrega ao Estado ainda mais poderes no que concerne à vida privada... E o que realmente fazem é atolar-se num lamaçal de incoerências filosóficas!

Não tenho muito tempo para escrever hoje, mas permitam-me esclarecer brevemente porque penso o que penso sobre o tema.

O artigo 2º do PL-6583/2013 (o tal Estatuto da Família), de autoria do Deputado Federal Anderson Ferreira, de Pernambuco, define “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Para o autor do projeto, “a família vem sofrendo com as rápidas mudanças ocorridas em sociedade, cabendo ao Poder Público enfrentar essa realidade, diante dos novos desafios vivenciados pelas famílias brasileiras.”

Em sua justificativa para o projeto, Anderson Ferreira só não cita o óbvio: a verdadeira razão para uma definição do que seja uma entidade familiar é simplesmente excluir as famílias formadas por casais do mesmo sexo. Em sua “cruzada” em favor duma definição “heterossexualizante” da constituição familiar (já que, em sua definição, uma família pode ser formada por apenas um dos genitores e seus filhos – uma constituição, per se, já não mais “tradicional”), o autor acaba por não reconhecer que famílias “tradicionais” podem também ser formadas apenas por irmãos e/ou irmãs (casos já reconhecidos, no Ocidente, desde, pelo menos, o Direito Romano).

A própria definição e o caminho político desse projeto refletem uma ausência de bom senso, tanto por parte dos que o defendem com suposta base em argumentos políticos, quanto por aqueles que o fazem com suposta base em argumentos teológicos (sobre os quais tratarei posteriormente).

Pensemos, por exemplo, naquilo que Adam Smith chamou de sistema de “liberdade natural”. Quando o Estado funciona da forma certa, deve facilitar as interações entre pessoas livres, respeitando e protegendo os direitos de cada indivíduo, independentemente de suas características individuais.

Nossas sociedades passaram, ao longo dos séculos, por transformações concernentes à forma como encaramos certos comportamentos sociais. As leis, como reflexos dessas transformações, também sofreram alterações. Assim, enquanto, há algum tempo, o casamento era visto como indissolúvel – e casais que já não mantinham um relacionamento propriamente conjugal eram forçados a desempenharem o papel social do “casal”, da “boa família” –, hoje há a possibilidade de casais desfazerem seus laços legais e se engajarem em outros relacionamentos. O Estado tem protegido o direito de o indivíduo desfazer suas ligações conjugais com outra parte, mesmo que isso acarrete um custo financeiro a uma das/ambas as partes.

O Estado também reconhece configurações familiares de facto (isto é, aquelas não formalmente jurídicas). De fato, a própria definição de família dada pelo Estatuto em questão o faz, quando diz: “[...] união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável[...]”. Ou seja, o projeto de lei defendido por supostos “tradicionalistas” reconhece outras formas de organização familiar – como uma família constituída por uma mãe solteira, por exemplo. Mas não o faz com um casal formado especialmente por dois homens, porque isso implicaria, para seu autor e defensores, uma “autorização” para a adoção por parte de indivíduos ou casais gays.

O cerne da questão não seria, então, os interesses da sociedade enquanto aglomerado político – que incluiriam, por exemplo, a proteção à propriedade, às liberdades individuais e ao direito de cidadãos livres se engajarem em contratos sociais –, mas, sim, os interesses duma mentalidade moral incoerente.

Que coerência pode haver em pessoas que, em sua visão teológica, são contrários à liderança eclesiástica feminina, mas, em sua vida política, apoiam para a Presidência da República uma mulher? Você consegue acreditar na seriedade/sinceridade deles? Que coerência pode haver quando um grupo é contrário à intervenção estatal na vida econômica, por exemplo, mas é favorável à intervenção estatal na definição das relações humanas para fins de proteção jurídica?...

Esses são apenas alguns dos problemas relacionados a esse tal “Estatuto da Família”. Infelizmente, não tenho tempo para escrever sobre todos os aspectos nos quais tenho pensado. Basta-me enfatizar que sou contrário a essa lei que, maquiando-se de protetora das famílias, presta-se apenas à subtração de proteção legal a famílias específicas!

VOCÊ QUER PROTEGER AS FAMÍLIAS BRASILEIRAS? ENTÃO, DIGA NÃO AO PL-6583/2013!!!

+Gibson