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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

"Descristianizando" a fé cristã?... Uma resposta a Fernando


Prezado Fernando,

Obrigado por compartilhar a história de sua jornada espiritual comigo. Aparentemente, você teve a oportunidade de descobrir diferentes respostas aos anseios de sua alma, por mais que hoje você perceba limitações no que você encontrou anteriormente.

Bem, não enxergo nenhuma religião como sendo uma resposta perfeita e não-contraditória a todos os nossos anseios ou questões; em minha experiência, isso é especialmente verdadeiro no que tange aos Cristianismos (isso mesmo, no plural) – e isso por serem eles meu lar espiritual e, assim, posso enxergar algumas das fontes de conflito em seu interior. Assim, independentemente da alternativa teológica cristã que se escolha, sempre haverá questões não respondidas, dúvidas não esclarecidas, algo contraditório. E isso pela simples razão, em minha opinião, de a religião (aqui, os Cristianismos) não ser algo pronto, acabado.

Falo em Cristianismos, no plural, por desde o início serem plurais as manifestações cristãs. Desde seu início, enquanto apenas um movimento judaico marginal, a grande tradição cristã teve inúmeras vozes em seu meio, tendo levado séculos até que se pudesse falar numa fé cristã “oficial”. Assim, absolutamente nenhum de nós (católicos romanos, ortodoxos “orientais”, protestantes liberais, protestantes evangelicais, cristãos restauracionistas etc) pode, de fato, reclamar um status de veracidade exclusivista para nossa versão da fé cristã. Em minha visão, todos nós abraçamos a fé plena e apenas uma pequena parcela dessa plenitude ao mesmo tempo – e é justamente isso que torna a tradição cristã tão fascinante para mim.

Entretanto, se perceber o que já escrevi tantas vezes, afirmo o mesmo no tocante ao Judaísmo – parte de minha herança familiar. Não pratico o “Judaísmo” como minha fé pessoal, mas o compreendo com uma fé plural que oferece desafios e fascínios semelhantes àqueles dos “Cristianismos” (no que tange à diversidade e incompletude). Enxergo o mesmo no que tange ao Islã, ao Budismo ou a qualquer outra tradição de fé.

Tendo dito isso, posso me referir mais diretamente às questões que você levantou.

Abandonar algumas daquelas concepções teológicas ditas tradicionais – como o do sacrifício expiatório de Cristo – implicaria numa “descristianização” do Cristianismo? Em minha opinião, isso depende de a qual dos “Cristianismos” você se refere, e a quem, quando e onde você faça essa pergunta.

Sou um protestante liberal, ancorado nas tradições do Unitarismo e Anglicanismo norte-americanos. A liturgia tradicional cristã desempenha um papel muito importante em minha vida devocional, mas meu universo teológico pode ser muito distinto daqueles do Catolicismo Romano, do Cristianismo Ortodoxo ou do Protestantismo Evangelical. Para mim, a fé é uma jornada de perguntas, não um destino de respostas. Logo, as “respostas” são sempre transitórias – e isso, ao menos em minhas tradições de fé, não implica numa “descristianização” da fé, mas numa centralização no Divino (isto é, as respostas não precisam ser plenamente coerentes e certeiras para que eu possa encontrar-me com Deus e percorrer o caminho de Jesus, já que não estou em busca de respostas). Assim, se você fizesse essa pergunta a mim como um indivíduo, minha resposta seria “NÃO”, a diversidade teológica no meio cristão não implica numa “descristianização”, já que diferentes cristãos expressam diferentes concepções acerca de sua fé (e compreendem suas expressões teológicas individuais como sendo autenticamente cristãs).

Você perguntou: “...se abandonarmos ensinamentos como o do sacrifício na Cruz pelos nossos pecados o que pregaremos? O que você prega na sua igreja?

Para minha fé pessoal, a tradição cristã ensina que Jesus fez coisas que considero mais importantes e mais relevantes que apenas morrer numa cruz. Para os contextos de sua própria época, ele parece ter sido um rabino muito compassivo e caridoso. Ele parece ter sido muito radical em sua prática da hospitalidade, por exemplo. As palavras e exemplos que lhes foram atribuídos – sim, porque não poderíamos garantir que Jesus fez ou disse isto ou aquilo – são, em minha tradição teológica e em minha prática homilética, o “Cristianismo”. Particularmente, em minha prática homilética, deixo de lado pormenores teológicos sobre o quê, como, quando, onde, quem, pois isso contribui muito pouco para a vida espiritual da congregação à qual sirvo como ministro, e à minha própria. Em nosso meio, cada um de nós pode construir sua compreensão pessoal sobre temas teológicos como esses, então, não faria nenhum sentido, para mim, tentar impor esta ou aquela visão a meus paroquianos, por exemplo.

Minha experiência, entretanto, não é a mesma da de outros cristãos, de outros membros do clero cristão. E eles/as – sejam fieis individuais ou membros do clero – necessitarão articular sua fé de forma que faça sentido para si. Assim, para a maioria, aquilo que entendo como metáforas (como a linguagem sacrificial, por exemplo) ganhará um sentido mais factual. Para mim pode não fazer sentido, ou ser desnecessário, mas se funciona para eles, então qual o problema? Não vejo problema com isso. O problema existiria se quiséssemos impor nossas visões teológicas uns sobre os outros, agredindo a dignidade da fé alheia. Durante os dois milênios de história cristã, tem havido cristãos que abraçam visões opostas para cada pormenor teológico imaginável e, provavelmente, enquanto o(s) Cristianismo(s) existir(em), sempre haverá, já que diferentes seres humanos articulam suas crenças de diferentes formas.

Grande abraço!

+Gibson


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