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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Papa é pop?... A Igreja, as Ciências e os noticiários


Os noticiários anunciaram o que parecia bombástico. O líder da Igreja Católica Apostólica Romana, segundo as manchetes, endorsava as teorias da evolução e do Big Bang. Parecia que, dessa vez, o Papa tinha realmente se tornado “pop”!

Acompanhando todo o rebuliço causado pelas manchetes ao redor do mundo, tinha-se a impressão que a Igreja Romana, de uma hora para outra, abandonava a fé e rendia-se à ciência. Deus dava lugar – ao menos nas reações de fiéis e daqueles nem tão ligados assim à fé católica – aos experimentos de laboratório: era como se lêssemos uma nova versão de “Anjos e Demônios”, de Dan Brown.

Bem, nem tanto.

Na verdade, o discurso do Papa Francisco na sessão plenária da Pontifícia Academia de Ciências, em 27 de outubro, no Vaticano, foi um pronunciamento em linha com aquilo que a própria Igreja Romana tem ensinado sobre a Criação. E, para ser exato, está longe de ser um endorso daquilo que a maioria dos cientistas ensina sobre as duas teorias (a Evolução e o Big Bang). Nada que justifique o sentimento de escândalo sobre o qual alguns amigos católicos comentaram comigo esses últimos dias.

Vale a pena ler alguns trechos do pronunciamento do Papa, que se encontra aqui, em francês, ou aqui, em italiano, para observar aquilo que as manchetes deixaram de fora quando retrataram que o Papa agora é “pop” (tradução e ênfases são minhas):

[...] Quando lemos, no Gênesis, o relato da criação, corremos o risco de imaginar que Deus fosse um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo. Mas não é assim. […] Ele criou os seres e permitiu-lhes que se desenvolvessem de acordo com as leis internas que deu a cada um […] O início do mundo não é obra do caos, que deve a um outro a sua origem, mas deriva-se diretamente de um Princípio supremo que cria por amor. O Big Bang, que hoje é visto como a origem do mundo, não contradiz a intervenção criadora divina, mas a exige. A evolução na natureza não contradiz a noção da Criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem. […]”

O resto do pronunciamento é ainda mais interessante. Não por trazer qualquer coisa nova, em termos de doutrina, mas por fazer uso duma linguagem que, aparentemente, não é muito comum à percepção da maioria daqueles que não compreendem a visão que o Catolicismo Romano tem de algumas posições científicas. Seu pronunciamento, por exemplo, fala sobre a liberdade humana – liberdade que tem uma ligação com aquelas “leis internas” que permitiriam aos seres seu desenvolvimento, segundo o Papa – e a maneira como a utilizamos para destruir a Criação, nos colocando no lugar do Criador.

Assim, faltou a todas aquelas notícias, e a todo o rebuliço nas redes sociais, tratar sobre o ponto principal do pronunciamento papal, a responsabilidade humana para com a Criação – ou natureza, se preferir. Tenho certeza que, com isso, qualquer um pode concordar!

+Gibson

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Artigos sobre o Casamento Plural entre os "mórmons" no site oficial da Igreja SUD: lendo algumas das entrelinhas


Seus professores provavelmente não discutirão isso em suas aulas de História ou Teologia na universidade; e, se você for um “santo dos últimos dias”, possivelmente se ofenderá com meus comentários aqui. Ofender gratuitamente não é minha intenção, mas, como um pesquisador de Teologia Histórica, não posso evitar fazer breves comentários sobre o assunto aqui.

É bom afirmar desde agora que minha leitura é, obviamente, completamente distinta daquela que seria feita por um santo dos últimos dias que, provavelmente, não questionaria a autoridade e intenções de sua igreja e de sua liderança. Também é importante deixar claro que não sou um inimigo da tradição ou da Igreja SUD, logo, não invisto meu tempo em ataques à fé dos santos dos últimos dias – meus comentários aqui dizem respeito apenas à maneira como a Igreja SUD lida com sua história. A “historiografia” oficial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi e continua a ser problemática, mas o passo tomado pela mesma esta semana toma um (meio)caminho até certo ponto surpreendente em sua abordagem de sua própria história – e é sobre isso que falo aqui.

Como alguém que se ocupa do estudo da história das ideias teológicas nos Estados Unidos do século XIX, tratar de assunto tão controverso quanto o tema do chamado “casamento plural” na tradição dos “santos dos últimos dias” (chamados popularmente de “mórmons”) é uma tarefa complicada. E é complicado por me forçar a, provavelmente, ofender convicções religiosas de alguns amigos membros da Igreja SUD (a sediada em Salt Lake City), para quem a “profecia” é algo factual; e também complicado por correr o risco de confundir um público não familiarizado com o tema, quando associam a crença de grupos como a “Comunidade de Cristo” ou outros “santos” (não tão comuns no Brasil), com as crenças e práticas da Igreja SUD – incluindo a forma como esses, os “santos dos últimos dias”, lidam com sua história.

Nesta última quarta-feira, 22 de outubro de 2014, foram publicados no site oficial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (que aqui chamo de Igreja SUD), em inglês, três artigos tratando sobre o tema do “casamento plural”. Um introdutório é chamado [1] “Plural Marriage in the Church of Jesus Christ of Latter-day Saints” [Casamento Plural na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias], o segundo chama-se [2] “Plural Marriage in Kirtland and Nauvoo” [Casamento Plural em Kirtland e Nauvoo], e outro chamado [3] “The Manifesto and the End of Plural Marriage” [O Manifesto e o Fim do Casamento Plural]. Esses têm causado um rebuliço nas discussões sobre o tema desta prática de muitos “mórmons” no século XIX. Esses artigos adicionam informações àquelas já disponibilizadas num artigo mais antigo, chamado [4] “Plural Marriage and Families in Early Utah” [Casamentos e Famílias Plurais nos Primórdios de Utah]. (A numeração é minha e serve apenas para facilitar minha referência a esses documentos mais adiante. Para evitar a repetição de seus títulos os chamarei de “artigo 1” etc.)

Os artigos, em minha opinião, apesar de expressarem um avanço em termos de reconhecimento da prática e de suas implicações sexuais, estão longe de ser uma obra historiográfica desatrelada do interesse em proteger a imagem da igreja SUD nas disputas políticas que se desenvolvem hoje nos Estados Unidos – em grande parte, após as discussões que se levantaram nos meios de comunicação americanos após a candidatura de Mitt Romney à Presidência dos Estados Unidos (e sua possível recandidatura nas próximas eleições). E seria tolice esperar que uma instituição que sempre desempenhou um papel tão autoritário, ao menos em minha opinião, na forma como se lida com sua história – por razões que seriam deveras complicadas para discutir aqui – mudasse sua atitude corporativa agora (e isso – quando olhado de fora, por pessoas que, como eu, se esforçam para ser mais compreensivas – é o desperdício duma grande oportunidade).

A primeira frase do artigo 1 já indica o caminho seguido por seu(s) autor(es):

Os santos dos últimos dias acreditam que o casamento de um homem e uma mulher é a lei permanente de casamento do Senhor.

Uma frase aparentemente tão inocente como esta explicita uma retórica anacrônica sobre um tema tão essencial para a história do movimento dos santos dos últimos dias. A frase aponta para uma preocupação com o presente, e não em esclarecer de forma honesta o passado. A declaração é tanto uma resposta a possíveis acusações desinformadas de que os “mórmons” sejam hoje polígamos, quanto uma afirmação da posição da Igreja SUD quanto à presente questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo (tanto nos Estados Unidos quanto em outros países). Uma afirmação, em minha opinião pessoal, desnecessária ao texto, se o que ele intentasse fosse o esclarecimento do passado da Igreja SUD.

Para qualquer pesquisador sério da história da tradição SUD, será importante observar algumas afirmações feitas nos textos, que corroboram aquilo defendido há muito por historiadores do movimento SUD não ligados à Igreja de Salt Lake City. É importante, por exemplo, a afirmação, no artigo 2, de que

A revelação sobre o casamento plural não foi escrita até 1843, mas seus primeiros versos sugerem que parte dela emergiu do estudo do Antigo Testamento por Joseph Smith em 1831. Pessoas que conheciam Joseph bem afirmaram, mais tarde, que ele recebera a revelação naquela época. […]

Mais adiante, no mesmo artigo 2, afirma-se o já conhecido fato de que Joseph Smith já havia “se casado pluralmente” com outra mulher na década de 1830 (supostamente obedecendo ao que lhe ordenara um anjo), ou seja, antes da revelação de 1843. Essa mulher, Fanny Alger, trabalhava na casa dos Smith durante a época em que moravam em Kirtland. O casamento acabou em separação e, após essa separação, Joseph só voltaria a tratar do tema em Nauvoo, na década seguinte.

O(s) autor(es) parece(m) se esforçar para evitar que a imagem de seu profeta – Joseph Smith – seja manchada de alguma forma e, para isso, recorrem a uma contextualização histórica, mesmo que limitada, das práticas matrimoniais no século XIX. Esse esforço se evidencia, por exemplo, quando se discute, no artigo 2, as práticas do próprio Joseph Smith:

A maioria daquelas seladas a Joseph Smith tinham entre 20 e 40 anos de idade na época de seu selamento a ele. A mais velha, Fanny Young, tinha 56 anos. A mais nova foi Helen Mar Kimball, filha dos amigos de Joseph, Heber C. [Kimball] e Vilate Murray Kimball, que foi selada a Joseph alguns meses antes de completar 15 anos. Casamento numa idade como essa, inapropriado para os padrões de hoje, era legal naquela época, e algumas mulheres se casavam em meados de sua adolescência. Helen Mar Kimball falou de seu selamento a Joseph como sendo “apenas para a eternidade”, sugerindo que o relacionamento não envolvia relações sexuais. Após a morte de Joseph, Helen se casou novamente e tornou-se uma articulada defensora do casamento plural.

Para mim, é marcante como se tenta diminuir o impacto da informação da idade de Helen, optando-se pela expressão “alguns meses antes de completar 15 anos”, em vez de simplesmente dizer que ela tinha 14 anos de idade. Logo em seguida, se contextualiza a questão da idade dos casamentos naquele ambiente de fronteira, ao mesmo tempo em que tenta-se poupar a imagem de Joseph, citando a afirmação de Helen de que seu selamento tivera sido “apenas para a eternidade”.

É importante, talvez, esclarecer aqui alguns dos termos presentes no artigo 2, citando a explicação dada no próprio texto:

Durante a era na qual o casamento plural foi praticado, os santos dos últimos dias distinguiram entre selamentos para o tempo e a eternidade e selamentos apenas para a eternidade. Selamentos para o tempo e para a eternidade incluíam compromissos e relacionamentos durante esta vida, geralmente incluíam a possibilidade de relações sexuais. Selamentos apenas para a eternidade indicavam relacionamentos na próxima vida apenas.

Os artigos trazem, além de várias informações que a Igreja SUD evitou discutir com o público não “mórmon” por tanto tempo (apesar de todas elas já serem conhecidas há muito), questões teológicas importantes, talvez invisíveis aos olhos leigos. Nesses artigos, a instituição e prática subsequente do casamento plural é identificado como fruto de “revelação”. Na tradição SUD, o “Profeta” (=Presidente da Igreja) recebe revelação direta de Deus para guiar a igreja; Joseph Smith foi um profeta e instituiu o casamento plural por meio de revelação. E foi por essa razão que tantos santos dos últimos dias se engajaram com essa prática até seu encerramento definitivo em 1904, ao menos nas comunidades que seguiam a liderança da Primeira Presidência da Igreja SUD. Contudo – voltando aos artigos –, quando os mesmos tratam do Manifesto de 1890, no qual Wilford Woodruff, então Presidente da Igreja (isto é, “Profeta”), se manifesta a favor da obediência às leis que proibiam o casamento plural nos Estados Unidos, o mesmo é identificado como um documento inspirado – não como uma “revelação”.

Obviamente, a escolha cuidadosa dos termos usados nos artigos é uma característica da preocupação tida pela liderança da Igreja SUD com correção doutrinária. Os artigos, mesmo com todo esse cuidado, já são suficientes para causar um debate sobre as contradições entre vários ensinamentos da Igreja SUD em suas primeiras décadas – contradições que são justificadas nos artigos mesmo que não sejam citadas explicitamente. Seja como for, os artigos, apesar de todos os seus problemas e limitações, são interessantíssimos para qualquer um que se interesse pela história da corrente do restauracionismo liderado por Joseph Smith; mas eu diria que são ainda mais interessantes para quem se interessa pelo “mormonismo” de hoje – já que, para mim, eles falam muito mais sobre a Igreja SUD de hoje, e suas preocupações políticas, do que dos antigos santos dos últimos dias.

Provavelmente, retornarei a este tema depois!

+Gibson

POST-SCRIPTUM: A IJCSUD publicou a tradução oficial dos artigos citados em língua portuguesa. Os mesmos encontram-se nos seguintes links:

O Casamento Plural em Kirtland e Nauvoo
O Casamento Plural e as Famílias Polígamas nos Primórdios de Utah

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Presença e Fé


Há inúmeras coisas que podemos ganhar, e outras inúmeras que podemos perder, quando discutimos nossa fé com toques de racionalidade autodeclarada. Essa é, ao menos, minha experiência. Ensinar teologia, participar de discussões acadêmicas sobre minha fé, escrever para um público que não necessariamente partilha de minhas convicções, dentre tantas outras coisas, parece funcionar como um empecilho para expressar aquilo que, para mim, é tão simples e sublime: minha própria fé – sem aquela necessidade de recorrer às argumentações da Teologia Histórica para explicar isso ou aquilo.

Muitas vezes me perguntam, por exemplo, se acredito nisto ou naquilo. Sempre repito, para enfatizar a importância do valor semântico em discussões teológicas, que depende do que se quer dizer com os verbos e/ou substantivos utilizados naquela pergunta. Aqueles que não compreendem a complexidade de minha posição automaticamente veem-me como um relativista sem convicções. Esse é um risco que corro por raramente falar sobre minha fé de forma direta.

Em uma de minhas passagens favoritas do Novo Testamento (Atos 17), narra-se um sermão do apóstolo Paulo no Areópago, em Atenas, no qual ele recorre à sabedoria dos não judeus daquele local para ensinar-lhes sobre “o Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe” (v.24). O que sempre admirei naquele relato é o aspecto de ele haver utilizado o que estava ao alcance da compreensão de seu público – a referência ao “Deus desconhecido” e a citação dum texto do poeta Arato de Solos (“Aparências”) – para compartilhar sua fé. Assim, aprendi que quando falamos com diferentes públicos, e quando temos diferentes intenções, fazemos uso de diferentes recursos.

Como nem todos os que vêm a essas páginas buscam a mesma coisa, gostaria de compartilhar minha fé de forma mais direta hoje.

Geralmente, recuso-me a utilizar verbos que limitem minhas convicções a noções muito determinadas ou que tragam em si a noção de que eu seja o operador de minha relação com o Divino; assim, evito o verbo “acreditar”, preferindo o verbo “confiar” quando falo sobre Deus. Eu confio em Deus; acredito em Deus – se com esse verbo quiser exprimir a noção de que minha confiança se estende à minha compreensão intelectual. Confio e escolho seguir Jesus. Não penso, entretanto, que a fé enquanto “assensus” – isto é, enquanto assentimento ou concordância intelectual –, seja essencial para minha confiança em Deus ou em Jesus.

Em minha experiência, Jesus é irresistível. Os ensinamentos e os exemplos atribuídos a ele são irresistíveis. Seu espírito de compaixão é irresistível. E isso independe de sua factualidade histórica pretérita. Mesmo que Jesus de Nazaré tenha sido só um personagem criado por um movimento judaico no primeiro século de nossa era – o que tenho fortes razões para crer não ser o caso –, que não tenha existido na “vida real”, ainda assim ele seria um poder irresistível em minha vida espiritual. E ele é irresistível porque tem o poder de transformar algo dentro de mim, tornando-se, assim, uma realidade presente no tempo presente.

Essa presença à qual me referi é muito mais importante que qualquer sofisticação teológica ou correção dogmática. É aquela presença que experiencio em meus momentos de oração privada, em meus momentos de celebrações litúrgicas, quando estou compartilhando momentos de alegria ou tristeza com outras pessoas, quando leio algo edificante, quando converso com alguém em busca de ajuda, ou quando eu mesmo recebo o apoio de alguém. É essa presença que chamo de “milagre”, porque é quando Deus se faz presente – mesmo que naquelas aparentemente pequenas coisas da vida. É essa presença que se torna fé. É assim que escolho confiar ou crer em Deus.

A paz dessa Presença, que chamo Deus, pode ser compartilhada com todos, independentemente de suas crenças ou descrenças, independentemente de quem sejam ou de como sejam suas vidas; e é por isso que o dogma se torna tão secundário em minha fé. Se isso é não ter convicções, então, que seja – prefiro ter confiança em Deus e Jesus do que certeza dogmática incompassiva, algo que me esforço muito para abandonar.

+Gibson

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma opção para uma "ex-mórmon" nos EUA: uma resposta a Dayla


[Recebi por meio da caixa de contato uma mensagem de Dayla, uma brasileira residente nos EUA, que compartilhou comigo sua história de abandono da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – tradição frequentemente chamada de “mormonismo” – e o desafio para encontrar uma nova comunidade de fé. Aqui, tento oferecer uma resposta a algumas de suas colocações.]

Cara Dayla,

Sua experiência se repete nas vidas de inúmeras pessoas, não apenas daquelas saídas da tradição dos santos dos últimos dias, como também de outras tradições cristãs advindas do restauracionismo. Seu desconforto em outras comunidades cristãs – principalmente por lhe tratarem como uma “estranha” – são comuns às experiências de outras pessoas com as quais converso sobre o temo, e são plenamente compreensíveis.

Como compreendo a tradição SUD como sendo mais que apenas uma fé (é também uma cultura própria), para mim é perfeitamente normal que você se sinta desconfortável com a forma como outros cristãos compreendem sua fé, e a maneira como a vivem no mundo exterior à igreja. Especialmente porque você ainda acredita em pontos importantíssimos de sua herança de fé – no Livro de Mórmon, nas profecias atribuídas a Joseph Smith etc –, mesmo que discorde da forma como a Igreja na qual foi educada funcione e discorde de muitas de suas doutrinas.

Suponho que, já que me escreveu, saiba de meu trabalho com o grupo de apoio a “ex-mórmons” aqui. Assim, realmente posso imaginar pelo que você têm passado durante esse tempo. Algo que conta a seu favor é morar onde mora hoje, já que se ainda estivesse em Utah provavelmente sentiria uma dificuldade maior para lidar com seus amigos e conhecidos.

Meu primeiro conselho é simples: não tenha medo, você não está sozinha. Você encontrará – se ainda não o fez – muitas pessoas que atravessaram a dificuldade de romper laços sociais tão fortes em busca de novos rumos em sua vida eclesiástica. Com confiança, você conseguirá sobrepujar esses sentimentos sobre os quais fala. Tenho certeza disso, porque vejo isso se repetir com frequência. Você não está sozinha!

Você enumerou as três opções que encontrou: 1) lidar com suas dúvidas e retornar à Igreja SUD; 2) trair algumas de suas convicções e tentar ser aceita em outra igreja cristã; ou 3) continuar a sentir o que sente estando longe duma comunidade cristã. Essas realmente podem ser opções para você, mas não são as únicas. Você esqueceu que também poderia tentar encontrar outra comunidade na própria tradição restauracionista do movimento dos santos dos últimos dias! Não, não me refiro a encontrar outra ala ou estaca na Igreja SUD; me refiro a tentar encontrar outra denominação na tradição “mórmon”! A Comunidade de Cristo pode ser, talvez, uma opção para você.

Tendo morado em Utah por tanto tempo, você deve ter ao menos ouvido falar na Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – a denominação, em 2001, mudou seu nome para “Comunidade de Cristo”. Muitas das convicções liberais que você abraçou ao longo do tempo são parte do que a Comunidade ensina em sua tradição. Ela é, na verdade, a única denominação do movimento dos santos dos últimos dias – não ligada à Salt Lake City – que além de se manter ligada à tradição “mórmon”, professa uma compreensão teológica muito próxima de outras igrejas protestantes liberais ou moderadas. A denominação, inclusive, mantém relações ecumênicas com outras igrejas cristãs membros do National Council of Churches, que você citou. Assim, nela, você encontra um pouco das duas perspectivas.

A Comunidade, que tem uma congregação onde você vive agora, apesar de haver mudado muito nas últimas décadas, ainda está enraizada na tradição restauracionista do movimento dos santos dos últimos dias; assim, o Livro de Mórmon ainda é visto, entre eles, como escritura; Joseph Smith é visto como profeta. Então, ao menos nesse aspecto, você não se sentiria uma “estranha”, encontraria elementos de sua identidade religiosa originária. Isso também pode, entretanto, trazer outros estranhamentos, já que você estaria muito próxima de recordações de sua antiga igreja, ao mesmo tempo em que experienciaria coisas novas. Mas, ainda penso que, em seu caso, é uma opção possível.

Se quiser, posso pedir que a pastora da congregação que existe aí em sua cidade entre em contato com você. Somos amigos e tenho certeza que ela ficaria muito feliz em tirar suas dúvidas e ajudá-la no que for possível, sem exercer nenhum tipo de pressão sobre você. Para tal, me envie um e-mail, e acertaremos como fazer isso.

Bem, Dayla, fique em paz. Agora que você chegou num lugar novo, poderá fazer novos amigos e se sentir mais livre para trilhar seu próprio caminho. Você não está sozinha, é só dar tempo para conhecer outras pessoas em seu novo lar. Mesmo que fisicamente longe, estou aqui para ajudá-la a encontrar outras pessoas por aí. Você estará em meus pensamentos e orações!

Grande abraço!
+Gibson

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

"Descristianizando" a fé cristã?... Uma resposta a Fernando


Prezado Fernando,

Obrigado por compartilhar a história de sua jornada espiritual comigo. Aparentemente, você teve a oportunidade de descobrir diferentes respostas aos anseios de sua alma, por mais que hoje você perceba limitações no que você encontrou anteriormente.

Bem, não enxergo nenhuma religião como sendo uma resposta perfeita e não-contraditória a todos os nossos anseios ou questões; em minha experiência, isso é especialmente verdadeiro no que tange aos Cristianismos (isso mesmo, no plural) – e isso por serem eles meu lar espiritual e, assim, posso enxergar algumas das fontes de conflito em seu interior. Assim, independentemente da alternativa teológica cristã que se escolha, sempre haverá questões não respondidas, dúvidas não esclarecidas, algo contraditório. E isso pela simples razão, em minha opinião, de a religião (aqui, os Cristianismos) não ser algo pronto, acabado.

Falo em Cristianismos, no plural, por desde o início serem plurais as manifestações cristãs. Desde seu início, enquanto apenas um movimento judaico marginal, a grande tradição cristã teve inúmeras vozes em seu meio, tendo levado séculos até que se pudesse falar numa fé cristã “oficial”. Assim, absolutamente nenhum de nós (católicos romanos, ortodoxos “orientais”, protestantes liberais, protestantes evangelicais, cristãos restauracionistas etc) pode, de fato, reclamar um status de veracidade exclusivista para nossa versão da fé cristã. Em minha visão, todos nós abraçamos a fé plena e apenas uma pequena parcela dessa plenitude ao mesmo tempo – e é justamente isso que torna a tradição cristã tão fascinante para mim.

Entretanto, se perceber o que já escrevi tantas vezes, afirmo o mesmo no tocante ao Judaísmo – parte de minha herança familiar. Não pratico o “Judaísmo” como minha fé pessoal, mas o compreendo com uma fé plural que oferece desafios e fascínios semelhantes àqueles dos “Cristianismos” (no que tange à diversidade e incompletude). Enxergo o mesmo no que tange ao Islã, ao Budismo ou a qualquer outra tradição de fé.

Tendo dito isso, posso me referir mais diretamente às questões que você levantou.

Abandonar algumas daquelas concepções teológicas ditas tradicionais – como o do sacrifício expiatório de Cristo – implicaria numa “descristianização” do Cristianismo? Em minha opinião, isso depende de a qual dos “Cristianismos” você se refere, e a quem, quando e onde você faça essa pergunta.

Sou um protestante liberal, ancorado nas tradições do Unitarismo e Anglicanismo norte-americanos. A liturgia tradicional cristã desempenha um papel muito importante em minha vida devocional, mas meu universo teológico pode ser muito distinto daqueles do Catolicismo Romano, do Cristianismo Ortodoxo ou do Protestantismo Evangelical. Para mim, a fé é uma jornada de perguntas, não um destino de respostas. Logo, as “respostas” são sempre transitórias – e isso, ao menos em minhas tradições de fé, não implica numa “descristianização” da fé, mas numa centralização no Divino (isto é, as respostas não precisam ser plenamente coerentes e certeiras para que eu possa encontrar-me com Deus e percorrer o caminho de Jesus, já que não estou em busca de respostas). Assim, se você fizesse essa pergunta a mim como um indivíduo, minha resposta seria “NÃO”, a diversidade teológica no meio cristão não implica numa “descristianização”, já que diferentes cristãos expressam diferentes concepções acerca de sua fé (e compreendem suas expressões teológicas individuais como sendo autenticamente cristãs).

Você perguntou: “...se abandonarmos ensinamentos como o do sacrifício na Cruz pelos nossos pecados o que pregaremos? O que você prega na sua igreja?

Para minha fé pessoal, a tradição cristã ensina que Jesus fez coisas que considero mais importantes e mais relevantes que apenas morrer numa cruz. Para os contextos de sua própria época, ele parece ter sido um rabino muito compassivo e caridoso. Ele parece ter sido muito radical em sua prática da hospitalidade, por exemplo. As palavras e exemplos que lhes foram atribuídos – sim, porque não poderíamos garantir que Jesus fez ou disse isto ou aquilo – são, em minha tradição teológica e em minha prática homilética, o “Cristianismo”. Particularmente, em minha prática homilética, deixo de lado pormenores teológicos sobre o quê, como, quando, onde, quem, pois isso contribui muito pouco para a vida espiritual da congregação à qual sirvo como ministro, e à minha própria. Em nosso meio, cada um de nós pode construir sua compreensão pessoal sobre temas teológicos como esses, então, não faria nenhum sentido, para mim, tentar impor esta ou aquela visão a meus paroquianos, por exemplo.

Minha experiência, entretanto, não é a mesma da de outros cristãos, de outros membros do clero cristão. E eles/as – sejam fieis individuais ou membros do clero – necessitarão articular sua fé de forma que faça sentido para si. Assim, para a maioria, aquilo que entendo como metáforas (como a linguagem sacrificial, por exemplo) ganhará um sentido mais factual. Para mim pode não fazer sentido, ou ser desnecessário, mas se funciona para eles, então qual o problema? Não vejo problema com isso. O problema existiria se quiséssemos impor nossas visões teológicas uns sobre os outros, agredindo a dignidade da fé alheia. Durante os dois milênios de história cristã, tem havido cristãos que abraçam visões opostas para cada pormenor teológico imaginável e, provavelmente, enquanto o(s) Cristianismo(s) existir(em), sempre haverá, já que diferentes seres humanos articulam suas crenças de diferentes formas.

Grande abraço!

+Gibson