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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Liberais, fundamentalistas, pentecostais e todos os protestantes brasileiros numa única conversa


Hoje, juntamente com um amigo, tive uma conversa interessante com um desconhecido num café que sempre frequentamos. O desconhecido falava sobre todos os “protestantes” que tentam “arrancar dinheiro dos idiotas” que vão às suas igrejas, e da forma como “essa gente” quer dominar o país com sua bancada no Congresso. Ele referiu-se aos “protestantes” como “um grupinho de gente retrógrada e preconceituosa” que desrespeita as crenças e valores de outras pessoas, e citou vários exemplos para construir seus argumentos.

Ouvi seus comentários respeitosamente. Quando terminou, me apresentei e apresentei meu amigo, um ministro presbiteriano, como (ministros) protestantes. Tentei explicar-lhe sobre a diversidade existente entre nós protestantes, utilizando meu amigo e eu como exemplos. Meu amigo lhe explicou sobre sua própria tradição Reformada, e eu falei-lhe sobre o Unitarismo e o Anglicanismo, minhas tradições pessoais, para tentar mostrar ao nosso novo amigo que não se deve pensar numa comunidade tão diversa como um grupo único. Nossa conversa foi muito agradável a partir dali e espero que tenha contribuído, de alguma forma, para sua compreensão dos riscos das generalizações desinformadas.

Obviamente, não lhe disse que mantenho ligações históricas, emocionais, teológicas e eclesiásticas com diferentes tradições cristãs. Não citei que fui ordenado formalmente, após treinamento teológico num seminário luterano (e em outro judaico), ao sacerdócio de uma igreja episcopal (anglicana), ao sacerdócio duma congregação luterana e ao ministério de uma igreja congregacional unitarista, nos Estados Unidos. Não falei que tenho uma história de ligação a cinco diferentes denominações protestantes norte-americanas – a Igreja Episcopal, a Igreja Unida de Cristo, a Igreja Cristã (Discípulos de Cristo), a Igreja Evangélica Luterana na América, e a Conferência de Igrejas Cristãs Unitaristas e Universalistas –, e, com essa história pessoal, não poderia deixar de tentar explicar-lhe um pouco sobre a diversidade protestante (por mais que a minha experiência não seja comum à maioria dos protestantes brasileiros).

Qualquer pessoa atenciosa já deve ter percebido que o Protestantismo brasileiro é extremamente cismático e dividido – obviamente, não apenas o brasileiro, mas nos detenhamos ao cenário nacional por agora. Obviamente, essa característica resulta, em parte, do tipo de Protestantismo majoritário no Brasil e não do ser protestante em si, como alguns poderiam sugerir. A maioria dos protestantes brasileiros, com exceção daqueles descendentes de famílias historicamente protestantes (como no caso das colônias de imigrantes ou das famílias “conversas” há pelo menos umas três gerações), são consequência de missões proselitistas de diferentes grupos “protestantes”, especialmente os de tradições evangelicais (os comumente chamados de “evangélicos”).

Essa origem nas missões proselitistas evangelicais – adicionando a isso o fato de os “evangélicos” brasileiros, em sua aparente maioria, estranhamente mesclarem uma mensagem “carismática” (i.e., “pentecostal”) com uma teologia “fundamentalista” – parece ter contribuído, em grande parte, para o espírito de disputa que há entre muitos desses grupos que, particularmente, chamo de “neoprotestantes”.

Como o uso do termo “fundamentalismo” é problemático, devo explicar minha utilização dele aqui. Apesar de ser um cristão liberal, nunca utilizo o termo “fundamentalismo”, e seus adjetivos, como um termo pejorativo – da forma como alguns na imprensa ou na política o utilizam. “Fundamentalismo” aqui refere-se especificamente ao movimento teológico conservador protestante, iniciado pelo teólogo e ministro presbiteriano Charles Hodge no Seminário Teológico de Princeton (nos EUA), na segunda metade do século XIX, como resposta ao modernismo/liberalismo teológico (minha própria tradição teológica) então dominante nas principais denominações protestantes norte-americanas. O movimento recebeu contribuições na obra de John Nelson Darby, e sua doutrina dispensacionalista, e, entre 1910 e 1915, centrou-se em torno da série de panfletos chamados “The Fundamentals” (Os Fundamentos), que – além de originarem o nome do movimento – ajudariam a estabelecer as cinco doutrinas sobre as quais o movimento se firmaria: [1] a inerrância das Escrituras; [2] o nascimento virginal de Cristo; [3] a morte expiatória de Cristo como única forma de salvação; [4] a ressurreição física e corporal de Cristo; e [5] a realidade dos milagres de Cristo e de seu retorno físico.

Diferentemente do que se poderia imaginar, ao se ouvir o termo sendo utilizado na imprensa hoje em dia, o “fundamentalismo” não era um movimento de ignorantes desinformados. Era justamente o contrário disso. Esse movimento teológico emergiu entre teólogos e ministros protestantes conservadores altamente instruídos, como uma resposta a teólogos e ministros liberais também altamente instruídos. A “teologia modernista (ou liberal)” era vista pela “teologia fundamentalista” como uma negação dos “fundamentos” do Cristianismo. O problema é que ambos os grupos entendiam que esses “fundamentos” se constituíam de diferentes coisas. Os liberais pregavam uma mensagem que se preocupava mais com as ações do que com os dogmas – o que nós liberais de hoje chamamos de “ortopraxia” –, isso fez com que, por exemplo, o “Evangelho Social” predominasse em seu meio. Os fundamentalistas, por sua vez, acreditavam que os liberais contribuíam para a dessacralização da fé cristã e, por isso, pregavam o que consideravam um “retorno à fé verdadeira”, ou seja, um retorno àquilo que entendiam como os dogmas essenciais do Cristianismo (aquelas cinco doutrinas que citei acima). Olhando para aqueles grupos com a distância de um século, vejo que ambos estavam certos e ambos estavam errados em alguns de seus princípios e conclusões!

A disputa entre esses dois grupos, que se iniciou na maior denominação Presbiteriana nos Estados Unidos durante as décadas de 1920 e 1930, mais tarde se alastrou para a maioria das denominações protestantes nos Estados Unidos e no Canadá. E como a maioria dos protestantes brasileiros estavam ligados, durante parte do século XX, às denominações em conflito nos Estados Unidos, a disputa foi copiada aqui. Pernambuco foi um importante centro nesse conflito, já que foi aqui que o movimento fundamentalista se organizou, sob a liderança do ministro Jerônimo Gueiros, a partir da década de 1940, no seio da Igreja Presbiteriana do Brasil. Posteriormente, a partir de 1956, o sobrinho do Rev. Gueiros, o também ministro Israel Gueiros (pastor da 1ª Igreja Presbiteriana do Recife) lideraria o movimento, que levou à fundação da Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil. As consequências, obviamente, seriam sentidas nas diferentes denominações Presbiterianas no país. O impacto da teologia fundamentalista alcançou grande parte das igrejas protestantes brasileiras além dos Presbiterianos (como alguns batistas, congregacionais, metodistas e muitos anglicanos evangelicais), especialmente no Nordeste.

Apesar das, inicialmente, claras distinções teológicas entre pentecostais e fundamentalistas, o “evangelicalismo neopentecostal” brasileiro conseguiu criar uma combinação das duas visões teológicas. E essa parece ter se tornado o consenso entre grande parte dos “evangélicos” brasileiros, ao menos a julgar por suas publicações e programas de rádio e televisão. Esse “consenso” derruba a distinção de tradições teológicas como a calvinista e a arminiana para os neoprotestantes. E para esses e os protestantes mais tradicionais, sem mencionar os não-protestantes (como o novo amigo que citei no início), esse “consenso” apaga qualquer rastro da existência de protestantes liberais como eu.

O que é mais perturbador, para mim, na maneira como os neoprotestantes são nutridos teologicamente por seus líderes é que se tornam inimigos da diversidade cristã (para não citar da diversidade humana), já que apenas sua forma de interpretar a fé é válida. Isso, obviamente, poderia ser apontado como a grande herança negativa do Fundamentalismo – todos os outros estão errados, menos “nós”, é seu refrão. Uma outra consequência negativa, ao menos para alguns grupos neoprotestantes, é o assalto à autonomia individual, especialmente no que tange à integridade intelectual do indivíduo. O controle do comportamento e crenças pessoais por líderes eclasiásticos entra em contradição com grande parte da herança da qual descendem alguns desses grupos - e poderia citar, mais especificamente, o exemplo dos batistas.

Por outro lado, esses neoprotestantes, apesar de sua não familiaridade com a teologia histórica e com a história da Igreja, praticam em sua vida um misto da ideia do “ethos protestante” de Weber (aparentemente tão presente na tradição fundamentalista) com o Evangelho Social pregado por Walter Rauschenbusch (tão presente na tradição liberal). Isso resulta num compromisso com a Bíblia e com publicações religiosas, mesmo que de maneira para mim equivocada, e consequentemente com o letramento do fiel – o que é importantíssimo para muitos desses grupos. Trata-se duma recriação teológica que tenho curiosidade de saber no que resultará em alguns anos.

Isso só para falar sobre uma família dos protestantes brasileiros. O Protestantismo brasileiro, como expliquei ao meu novo amigo no café esta manhã, tem muitas vozes e muitas faces – algumas mais numerosas, outras nem tanto. Batistas, assembleianos, presbiterianos, luteranos, anglicanos, metodistas, unitaristas, congregacionais, restauracionistas, etc, etc, etc. Nem todos são fundamentalistas, nem todos são pentecostais, nem todos são neopentecostais.

Particularmente, não sou parte de nenhuma das três famílias, mas considero a todos eles como meus “irmãos na fé”, da mesma forma como os católicos, os ortodoxos, e outros grupos cristãos (como considero a absolutamente todos os humanos como meus irmãos). Considerá-los como meus irmãos na fé, contudo, não apaga nossas diferenças, apenas incentiva-me a tentar construir pontes entres nós por meio daquilo que nos une.

Para concluir, devo afirmar que rejeito qualquer crença religiosa, qualquer fé, qualquer comunidade que seja um obstáculo à liberdade de minha própria consciência. Acredito que religião, especialmente aquilo que chamo de "Protestantismos" (no plural), não seja sinônimo necessário de prisão intelectual e de falta de autonomia individual. Logo, não tenho nenhuma tolerância para com o abuso à integridade individual como praticado em algumas comunidades ditas "evangélicas" ou "protestantes" no Brasil. Torna-se necessário redescobrir a diversidade protestante, a multiplicidade de vozes no seio protestante!

+Gibson

sábado, 21 de junho de 2014

Sobre o Unitarismo, parte 1


[Tentarei aqui responder a algumas questões levantadas por Edgar, um leitor que se identifica como “unitário-universalista”.]

Caro Edgar,

Algumas das questões que você levanta são interessantes, entretanto, sem querer ser ofensivo, algumas das afirmações que você faz demonstram que ainda não conhece muito sobre a história e as ideias da tradição unitarista. Me surpreende, por exemplo, que você pense que ouvir um cristão se identificar como unitarista (que você chama de “unitário”) seja “se apropriar indevidamente do nome de outra religião”! O Unitarismo per se é uma tradição cristã. O fato de nós unitaristas não sermos tão “abertos” (termo que você utiliza) quanto os “unitário-universalistas” para outras crenças e/ou práticas religiosas baseia-se no simples fato de professarmos uma fé específica, i.e., a fé cristã. Na realidade, acredito que como uma tradição de fé somos muito abertos, tolerantes, e respeitosos com outras tradições religiosas, mas isso não significa que tenhamos de negar nossa própria fé para exibirmos esse respeito; não significa que tenhamos de trazer práticas de outras religiões para dentro de nossas liturgias só para que pareçamos “abertos” (sua ideia de abraçar práticas das religiões afro-brasileiras em ofícios unitaristas, para mim, soa a isso).

Ecumenismo, a propósito, é diferente de adotar crenças e práticas de outras religiões. O ecumenismo se refere à busca de união no contexto da própria Igreja cristã; ou seja, diferentes tradições cristãs buscando uma união entre si, apesar de suas diferenças, enquanto discípulos de Jesus Cristo. O caso referido por você poderia ser chamado de pluralismo inter-religioso.

Penso que devo esclarecer que há importantes diferenças teológicas – mesmo que essas não pareçam muito óbvias para quem olha de fora – entre as tradições do Unitarismo, do Universalismo e daquilo que você chama de Unitário-Universalismo. Só quando se compreende as diferenças entre essas tradições, e o contexto histórico no qual elas se desenvolveram, é que se pode chegar a uma resposta às questões que você levanta. E, por conta de sua formação intelectual, creio poder trazer alguns elementos mais complexos ao nosso diálogo. Aqui, tratarei apenas dos aspectos históricos do Unitarismo, em mensagens posteriores, tratarei sobre suas outras questões.

Para que minha posição fique muito clara, sou um unitarista, isto é, um protestante liberal herdeiro da tradição unitarista anglo-americana (ligado, eclesiasticamente, a outras diferentes denominações protestantes). Minha compreensão teológica está enraizada numa lealdade às Escrituras judaico-cristãs (i.e., à Bíblia), e à tradição teológica que se desenvolveu a partir da Reforma do século XVI, mais especialmente aquela nascida dentro da Igreja da Inglaterra e nas igrejas congregacionais da Nova Inglaterra (EUA) no século XVIII. Como um unitarista, os princípios do “sola scriptura” e do “sacerdócio universal dos fiéis” são importantíssimos para mim. Isso distingue minha compreensão daquela da maioria dos que se identificam como unitário-universalistas, já que sua compreensão teológica não se limita ao Cristianismo – não se identificando plenamente com aquilo que historicamente foi/é professo pela maioria dos cristãos unitaristas e universalistas. Também é importante que você compreenda que a Unitarian Universalist Association (UUA) é uma associação de igrejas autônomas, de governo congregacional, e não uma religião – é verdade que a maioria das igrejas associadas se identificam como “humanistas” (utilizando o termo “unitário-universalista” como adjetivo), mas há muitas igrejas cristãs unitaristas e universalistas tradicionais membros da associação. O que mantém essas igrejas unidas é um senso de cooperação, e não de compreensão teológica específica.

Ainda sobre o Unitarismo nos Estados Unidos, a maioria das igrejas cristãs unitaristas, entretanto, desde a formação da UUA e do predomínio de não-cristãos na mesma, se associou a outras denominações como a United Church of Christ (UCC), a Christian Church (Disciples of Christ), ou se tornou independente. É importante notar que mesmo as igrejas cristãs que continuaram na UUA, especialmente aquelas em nosso berço na Nova Inglaterra, se associaram à UCC, como uma forma de auto-identificação explícita como igreja cristã sem, contudo, negar sua lealdade à tradição unitarista ou universalista – o que pode ser visto, também, como uma forma de reconciliação na tradição congregacional americana (lembre-se que a Associação Unitarista Americana, que deu origem à UUA, foi formada depois dos conflitos entre as igrejas congregacionais unitaristas e trinitaristas na Nova Inglaterra no século XIX). Da mesma forma, também há igrejas cristãs universalistas na UUA, que, para manterem sua identidade cristã fizeram o mesmo que as igrejas unitaristas. Ademais, há algumas congregações universalistas em outras denominações protestantes. Também, não se deve esquecer que hoje há, nos Estados Unidos, outras associações unitaristas e universalistas especificamente cristãs (sem citar os exemplos fora dos EUA, como aqui no Brasil).

O Unitarismo brasileiro é descendente direto dessa tradição unitarista congregacional da Nova Inglaterra. Como na comunidade daqui não houve os mesmos desenvolvimentos históricos ocorridos nas comunidades dos Estados Unidos durante o século XX, aqui não houve o que ocorreu por lá. Os grupos existentes continuaram a professar uma fé cristã unitarista tradicional, apesar de, em certos aspectos, serem enriquecidas por algumas das discussões ocorridas na América do Norte – a depender de quem chegava por aqui. A comunidade foi mantida por missionários vindos dos EUA até fins da II Guerra Mundial, quando se tornou plenamente autônoma. Nos EUA, a união dos Unitaristas, Universalistas e Humanistas só ocorre na década de 1960, ou seja, após a autonomia dos unitaristas brasileiros e de outras partes do mundo.

O que torna o Unitarismo difícil de ser compreendido pela maioria dos outros cristãos é o fato de a tradição não poder ser bem definida em termos dogmáticos. Os unitaristas, desde suas primeiras origens no continente europeu, e de seu desenvolvimento nas ilhas britânicas e na América do Norte, sempre foram muito diversos em termos teológicos – dependendo da “comunhão” cristã da qual emergiram. Assim, os primeiros unitaristas da Alemanha, da Itália, da Transilvânia, da Hungria, da Polônia, de diferentes regiões da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda e da América do Norte (e aqui utilizo os nomes contemporâneos só para não complicar ainda mais!) abraçavam compreensões teológicas, práticas litúrgicas e organizações eclesiásticas distintas umas das outras.

Na verdade, é importante lembrar que o próprio adjetivo “unitarista” é problemático, já que é um identificador utilizado primeiramente por seus adversários, tanto católicos quanto protestantes, sendo incorporado por esses cristãos apenas depois de algum tempo. Outros termos utilizados para identificar nossa tradição foram os adjetivos “sociniano” e “ariano” (que, individualmente, possuem sentidos teológicos específicos não necessariamente partilhados por todos os “unitaristas”). O termo “unitarista” (em latim) foi utilizado pelo primeira vez num documento da Dieta de Lecfálva, em 1600, para se referir aos antitrinitaristas da Transilvânia (hoje parte da Romênia), cuja igreja se chamaria posteriormente “Igreja Unitarista da Transilvânia” (chamada assim até hoje). Em inglês, o termo começa a ser usado por um sociniano, Henry Hedworth, em 1673 – e se torna o termo padrão utilizado pelos próprios antitrinitaristas, apesar de seus adversários os chamarem de “socinianos”. A única coisa comum a todos esses diferentes grupos de cristãos, em diferentes regiões da Europa e, posteriormente, da América do Norte, era seu aparente “antitrinitarismo” – isto é, sua aparente rejeição do dogma da “Trindade” como definido pelo Credo de Atanásio.

Não posso escrever aqui uma história do Unitarismo, mas, talvez, “cronologizar” certos pontos de seu desenvolvimento histórico ajude um pouco:

  • Tradicionalmente, identifica-se Martinho Borrhaus (alemão), um amigo de Lutero, como o autor da primeira obra publicada que defendia uma teologia antitrinitarista – “De operibus Dei” (1527) –, visão, a propósito, desaprovada por Lutero.

  • Depois dessa obra, é publicada por Miguel Serveto (espanhol) a obra “De Trinitatis Erroribus” (1531), na qual ele trata especificamente do dogma atanasiano da Trindade; e, mais tarde, “Christianismi Restitutio” (1551), sua obra mais importante e a causa apontada para sua morte, queimado na fogueira por heresia, pelos reformados (calvinistas) em Genebra, em 1553. Ele defendia uma visão cristológica (isto é, sobre Cristo) “ariana”, ou seja, Cristo preexistia antes de sua encarnação – uma discussão muito complexa que mereceria uma postagem própria (quando puder, discuto isso aqui no blog). Serveto é considerado a influência teológica mais importante para o início das igrejas antitrinitaristas/unitaristas da Transilvânia e da Polônia, e o primeiro “mártir” unitarista.

  • Em Veneza, a partir de 1550, ocorre o desenvolvimento do movimento antitrinitarista liderado por Matteo Gribaldi Mofa, um teólogo e advogado defensor de Serveto, entre os anabatistas. Mofa tornou-se um importante líder do movimento, sendo o professor de futuros líderes do movimento antitrinitarista em outras áreas da Europa.

  • Na Polônia, já desde fins da década de 1530, se desenvolviam ideias antitrinitaristas entre os membros da Igreja Reformada (calvinista). Em 1565, esses antitrinitaristas poloneses, formados por arianos e unitaristas, e chamados de “Irmãos Poloneses”, foram expulsos do sínodo da Igreja Reformada polonesa (chamada a partir de então de Ecclesia maior = Igreja Maior), formando seu próprio sínodo (chamado de Ecclesia minor = Igreja menor). Esses eram, inicialmente, arianos que se negavam a adorar a Cristo e que praticavam o batismo de adultos (anabatistas). Posteriormente, a teologia do italiano Fausto Sozzini (Socinus, em latim), que se mudou para a Polônia em 1579, tornou-se a visão dominante entre os Irmãos Poloneses, e esses ficaram conhecidos por seus adversários como “socinianos” (aceitavam o nascimento virginal de Jesus, mas negavam a preexistência de Cristo). Em 1602, Jakub Sienienski fundou em Raków a Akademia Rakowska (Academia Racoviana) e uma gráfica, onde o Catecismo Racoviano foi publicado em 1605. Em 1610, os jesuítas lideraram uma reação contra os Irmãos Poloneses, que começaram a ser violentamente perseguidos em diferentes partes da Polônia. Um neto de Sozzini publicou, entre 1665 e 1668, 4 volumes, chamados de “Bibliotheca Fratrum Polonorum quos Unitarios vocant” (Biblioteca dos Irmãos Poloneses chamados de Unitaristas), obra que teve grande influência entre os antitrinitaristas na Inglaterra, e que contribuiu para o uso do adjetivo “unitarista”. Em 1660, a Dieta Polonesa deu aos Irmãos Poloneses as opções de arrependimento ou exílio. Alguns se “arrependeram”, mas a maioria se exilou nos Países Baixos, onde foram recebidos pela Igreja Remonstrante, já que os Irmãos Poloneses aceitavam o Credo Apóstólico. Outros foram para a Prússia, Lituânia e Transilvânia.

  • O caso da Transilvânia e Hungria já é, aparentemente, conhecido por você. Giorgio Biandrata, um médico e teólogo veneziano que vivera entre os Irmãos Poloneses, vai trabalhar na côrte do futuro Rei da Hungria Oriental e Príncipe da Transilvânia Zápolya János Zsigmond em 1563, e influencia Ferenc Dávid, que seria eleito em 1564 como o bispo das igrejas reformadas húngaras na Transilvânia e apontado como pastor do monarca. Posteriormente, o próprio monarca se torna um antitrinitarista e emite o Edito de Torda, em 1568, um edito que garantia a liberdade religiosa para diferentes grupos religiosos em seus domínios. Não preciso escrever muito sobre as Igrejas Unitaristas da Transilvânia e da Hungria, pois elas são muito conhecidas.

  • Na Inglaterra, a história do antitrinitarismo é antiga, com muitos defensores na própria Igreja da Inglaterra. Um exemplo é o do sacerdote John Assheton, na década de 1540. O movimento, entretanto, começa com John Biddle na década de 1640. Após ser repetidamente preso por seus escritos unitaristas, ele foi sentenciado ao exílio na Sicília em 1655, onde morreu em 1662. Até a organização de igrejas explicitamente unitaristas – o que só começou em 1774 –, os unitaristas britânicos estavam tanto na Igreja da Inglaterra quanto em igrejas não-conformistas como presbiterianas, congregacionais e batistas gerais. O primeiro ministro a se identificar explicitamente como “unitarista” foi o presbiteriano Thomas Emlyn, que também foi punido com a prisão por suas ideias, mas organizou uma congregação em Londres, em 1705. A primeira igreja a se chamar explicitamente “unitarista” foi organizada por Theophilus Lindsey, um sacerdote anglicano, e Joseph Priestley, um ministro congregacional, em Londres, em 1774. Em 1791, eles organizam a primeira denominação unitarista britânica. A Inglaterra foi um centro importantíssimo de difusão do Unitarismo desde o século XVII, especialmente para a América do Norte, inclusive através de ministros/sacerdotes da própria Igreja da Inglaterra naquilo que seria conhecido como Estados Unidos. Foram, literalmente, centenas de publicações que tratavam sobre o tema e que alimentavam os leitores não apenas nas ilhas, como também no outro lado do Atlântico. Havia movimentos unitaristas também na Escócia e Irlanda, apesar de esses serem, numericamente, menores que o da Inglaterra.

  • Já no que concerne aos Estados Unidos, e se relaciona diretamente com sua tradição e com a minha, o Unitarismo é inseparável de Boston e região (a Nova Inglaterra) e Harvard College, que seria chamado de Universidade Harvard posteriormente. O pensamento unitarista era muito influente em Harvard durante o século XVIII, onde eram formados os ministros das igrejas congregacionais da Nova Inglaterra, e nas igrejas da região. O desenvolvimento seguiu um pouco o modelo britânico. Os unitaristas eram conhecidos, mas as igrejas não se chamavam “unitaristas”. A primeira igreja a se identificar como “unitarista” foi uma paróquia episcopal (anglicana), a King's Chapel de Boston, em 1782, que chamou James Freeman como ministro e revisou o Livro de Oração Comum para se adequar ao unitarismo da congregação. Outras igrejas começam a se identificar como “unitaristas” em toda a região da Nova Inglaterra e a tensão com outras igrejas congregacionais se intensificou, o que levou à conhecida “Controvérsia Unitarista” em 1815. O ápice da tensão entre os congregacionais trinitaristas e unitaristas ocorre após o histórico sermão de William Ellery Channing, na ordenação de Jared Sparks na Primeira Igreja Independente de Baltimore, em 1819. Em 1825 é formada a Associação Unitarista Americana, que une as igrejas unitaristas americanas e se envolve com o trabalho missionário em várias regiões do mundo – dando origem à comunidade em Recife, por exemplo. Essa associação só deixa de existir em 1961, com a união da Associação Unitarista Americana com a Igreja Universalista da América para formar a Unitarian Universalist Association.

Isso, amigo Edgar, só para que você tenha uma breve ideia da longa história do Unitarismo como expressão cristã. São cinco séculos de história! Historicamente, o que é novidade é a expressão “pós-cristã” do UUismo, e não o Unitarismo (sem, com isso, eu querer desvalorizar o UUismo)!

Grande abraço!

+Gibson

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Cristianismos e Cristãos

[Para responder ao questionamento que me foi feito hoje por uma leitora, decidi postar aqui um capítulo dum pequeno livro que publiquei recentemente sobre o mesmo tema. Espero que possa, assim, esclarecer as dúvidas de minha correspondente.]
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[…] Foi em Antioquia que os discípulos foram primeiramente chamados de cristãos.”1



É impossível compreender a complexidade das várias tradições cristãs se não nos dermos conta de que o Cristianismo é, fundamentalmente, uma fé comunitária. A exemplo da própria humanidade, que forma uma comunidade que se entrelaça por meio de relacionamentos de interdependência, a fé cristã, para que seja vivida, depende do convívio comunitário. Assim, para sermos cristãos, temos de nos juntar a outras pessoas. E “Igreja”2 é o nome que se dá, no vocabulário cristão, a esse ajuntamento de pessoas que se engajam como discípulas de Jesus Cristo.


Dar uma definição do que é o Cristianismo e quem é cristão, entretanto, nem sempre é tão fácil quanto parece. Na maioria das vezes, por exemplo, pode-se definir como cristão qualquer pessoa que professe uma crença em Jesus Cristo e que siga seus ensinamentos; nesse caso, o Cristianismo é a fé professada por essa pessoa. Essa definição simplificada pode parecer útil, mas, na verdade, ela não nos diz muito. Nossos irmãos muçulmanos, por exemplo, aceitam e honram Jesus como um profeta de Deus e acreditam seguir seus ensinamentos; isso, entretanto, nem para eles nem para os cristãos, seria suficiente para identificá-los como “cristãos”.


Quando tratamos teologicamente do Cristianismo – assim como de qualquer outra fé com o mesmo nível de complexidade teológica (por exemplo, o Judaísmo, o Islã, o Budismo etc) –, normalmente utilizamos definições mais elaboradas. No Cristianismo isso ocorre principalmente por conta de sua complexa história, na qual foram criados conceitos de ortodoxia e heresia – ou seja, de crenças e práticas que poderiam ser aceitas ou não como autênticas (novamente, essa não é uma exclusividade cristã, apesar de, por questões históricas importantes, a ênfase cristã em tais conceitos ser maior do que a de outras tradições monoteístas)3.


Nas diferentes tradições cristãs há diferentes interpretações teológicas, baseadas em sua leitura da Bíblia e da tradição da Igreja, sobre o que é o Cristianismo e quem é um verdadeiro cristão. Inúmeras vezes, essas interpretações entram em conflito umas com as outras e se contradizem mutuamente, e esse conflito pode gerar desentendimentos entre cristãos de diferentes tradições.


Na introdução deste livro, já esclareci que minha definição para os termos “Cristianismo” e, consequentemente, “cristão” aqui é deveras simplificada e explicitamente não-ortodoxa. Ou seja, enquanto a maioria das igrejas cristãs – especificamente aquelas comunhões protestantes e ortodoxas associadas ao Conselho Mundial de Igrejas, e a Igreja Católica Romana – define estritamente a natureza da fé cristã e, consequentemente, quem é um verdadeiro cristão por meio de critérios teológicos ortodoxos, esses critérios não podem ser utilizados por mim aqui para alcançar as finalidades às quais me prepus4.


Para efeitos de minhas definições aos termos “Cristianismo” e “cristão” – quando os mesmos são utilizados especificamente para identificar uma tradição ou comunidade (e não um indivíduo) –, utilizo como padrão dois critérios básicos:
  1. a relação da tradição ou comunidade em questão com o todo da Igreja cristã:
    • a presença dos elementos (físicos, pictóricos ou discursivos) universalmente aceitos pela Igreja cristã – independentemente da interpretação dada aos mesmos –, por exemplo: Deus, Jesus, a Bíblia, a liturgia cristã;
    • e o senso de continuidade identitária com o todo da Igreja cristã;
  1. a auto-identificação comunitária como um corpo de discípulos de Jesus Cristo, isto é, como uma igreja cristã.


Devo confessar que reconheço as claras limitações desses critérios, tanto no que tange ao seu afastamento das concepções ortodoxas de Igreja e fé cristã, quanto no que tange à sua discriminação contra grupos que não se encaixem nesses critérios que aqui utilizo.


Você poderia me dizer, por exemplo, que minha definição é muito larga, chegando a colocar sob a mesma identificação a tradição das igrejas ortodoxas orientais e aquela de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Ninguém, razoavelmente esclarecido, duvidaria que as igrejas ortodoxas “orientais” sejam cristãs – a favor de sua identidade cristã contam, pelo menos, a teologia de sua tradição e sua história. No caso dos santos dos últimos dias (conhecidos como “mórmons”), entretanto, há, teologicamente, uma clara separação entre sua tradição e as concepções majoritariamente aceitas pela Igreja cristã, e o consequente fato de não serem aceitos como cristãos pela maioria dos demais cristãos (católicos, ortodoxos, e protestantes).


Entretanto, se observarmos a tradição dos “santos dos últimos dias”, sob os dois critérios que enumerei, veremos que há, de sua parte: (1) uma relação identitária com o todo do Cristianismo (o movimento utiliza aqueles elementos cristãos aceitos por todas as tradições cristãs – mesmo que não os interpretando da mesma forma que os demais cristãos, e suplementando-os com novos elementos –, e está imerso num senso de continuidade histórica e identitária com o Cristianismo); e essa tradição (2) identifica-se explicitamente como uma igreja cristã.


Minha identificação de grupos não-ortodoxos (alguns diriam “heréticos5”) como cristãos – citei como exemplo a tradição “mórmon”, mas poderia ter citado os “testemunhas de Jeová” ou minha própria tradição unitarista – tem uma ligação com a maneira como entendo a fé cristã. Essa minha forma muito particular de definição do sentido desses termos – Cristianismo e cristão –, entretanto, não é a maneira como a maioria das tradições cristãs (especialmente o Catolicismo Romano, a Ortodoxia Oriental, e a maioria das tradições protestantes) os definiria.


A definição dada ao Cristianismo e, consequentemente, à identidade cristã pelas maiores e mais influentes comunhões6 cristãs tem uma ligação necessária com a noção de ortodoxia teológica. Para definir o que é o Cristianismo e quem é cristão, essas comunidades buscam a autenticidade das crenças e práticas presentes nas demais comunhões. Isso influencia, por exemplo, as relações entre igrejas cristãs, e possui consequências para os membros dessas tradições.


Permita-me esticar minha imaginação para citar um exemplo prático: imagine um batista praticante que nunca tivesse sido batizado no ritual católico (ou num ritual de batismo aceito pela Igreja Católica Apostólica Romana), e que, por alguma razão hipotética (ele poderia, por exemplo, estar vivendo longe de uma comunidade batista e sentir a necessidade de partilhar da Comunhão7!), desejasse receber o sacramento da Eucaristia numa missa católica – ele poderia ou não recebê-lo?


Por um lado, a tradição católica possui critérios específicos para definir quem, quando e como pode ministrar e receber os sacramentos8 da Igreja; por outro lado, a tradição batista não partilha da compreensão sacramental da tradição católica, e também possui critérios específicos sobre quem, quando e como pode ministrar e receber a “ordenança da Ceia do Senhor”. O padrão no Catolicismo é que, para receber o sacramento da Eucaristia, o candidato deve já ter recebido os sacramentos do Batismo e da Confirmação – e esses devem ter sido recebidos de forma válida9.


Já no que tange a muitas comunidades batistas, pode haver consequências para um membro que participe de ritos em outras comunidades de fé – para muitos batistas brasileiros, o Catolicismo é uma outra religião, e não uma expressão válida do Cristianismo –, logo, poderia não ser aceitável a prática de ele receber a Eucaristia numa missa católica (isto é, se ele assim pudesse fazê-lo numa igreja católica)!


Logo, como se vê, a questão de definições é muito complexa e possui consequências para a vida prática, tanto no interior de comunidades cristãs quanto na relação entre diferentes comunidades cristãs. Entretanto, vale enfatizar que essa não é uma exclusividade cristã. No Judaísmo, por exemplo, há a recorrente discussão sobre quem é judeu, e a consequente validade dos rituais oferecidos por comunidades judaicas que não sejam ortodoxas10.


As diferenças entre as variadas tradições cristãs tornam-se muito óbvias quando pensamos na forma em que igrejas de diferentes tradições cristãs recebem a novos membros. O padrão para que alguém seja aceito como membro da Igreja cristã é que tenha sido batizado, mas o que ocorre quando um cristão vindo de uma outra igreja cristã deseja juntar-se a uma tradição cristã diferente?


Para facilitar a compreensão, utilizemos o exemplo anterior na direção contrária: e, se por algum motivo, um católico romano quisesse juntar-se a uma igreja batista, o que seria exigido dele? Ele teria de ser batizado? Mas ele não já foi batizado antes? Por que teria de ser rebatizado? … As respostas a questões como essas podem parecer irrelevantes, mas elas dizem muito sobre nossa teologia – isto é, sobre o que pensamos sobre Deus, sobre Jesus, sobre a Bíblia, sobre a Tradição, sobre a Igreja etc –, além de terem um impacto real sobre a vida dos indivíduos cristãos, de suas famílias e da Igreja como um todo.


Há muitas razões históricas para que existam conflitos entre diferentes expressões da Igreja cristã, mas apontarei aqui pelo menos duas: [1] razões teológicas, ou seja, diferenças entre compreensões acerca da fé cristã; e [2] razões práticas – frequentemente litúrgicas –, ou seja, diferenças entre as formas como determinadas coisas são feitas na Igreja11.


Assim, se, no nosso exemplo, o batismo anterior dum cristão não é aceito para que ele se torne membro duma outra comunidade cristã – exigindo-se que ele seja rebatizado –, isso pode ser causado: [1] porque há diferenças claras entre compreensões sobre autoridade eclesiástica, ou sobre noções litúrgicas, ou sobre o sentido da fé cristã, ou sobre o papel da consciência no processo de se tornar um seguidor de Jesus Cristo etc; e, [2] frequentemente porque requisitos rituais não foram cumpridos para a comunidade receptora etc. Essas diferenças são reais e, infelizmente, criam barreiras para o cumprimento daquela oração atribuída a Jesus: “para que todos sejam um”12.


Levando em consideração essas questões teológicas que formam a base da discussão da identidade cristã, e meu próprio compromisso com o espírito ecumênico, identificarei como cristãs aqui todas aquelas tradições que se identificam explicitamente como igrejas cristãs. Incluirei nessa definição mesmo aquelas comunhões ou denominações que, geralmente, não são aceitas como cristãs pelas maiores igrejas cristãs – ou vice versa –, desde que preencham os requisitos mínimos que estabeleci no início deste capítulo.


Assim, aqui, o movimento dos “Santos dos Últimos Dias” (que inclui não apenas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mas também a Comunidade de Cristo e outros grupos menores), e o movimento dos “Estudantes da Bíblia” (que inclui os testemunhas de Jeová), por exemplo, encaixam-se na definição geral de igrejas cristãs. E, quando possível, darei informações sobre diferenças existentes na compreensão de diferentes grupos cristãos.


O que intenciono com isso é simplesmente enfatizar a diversidade daquilo que chamamos de Cristianismo – mas que prefiro pluralizar e chamar de “Cristianismos”. Para mim, a diversidade cristã é fonte de beleza e inspiração, e a Igreja seria espiritualmente mais pobre se em seu meio não se ouvissem vozes tão distintas. Como um cristão, minha oração é que, um dia, possamos todos sobrepujar nossas diferenças, podendo enxergarmo-nos mutuamente como membros duma mesma família de fé. Assim, apesar de poder discordar de muitas das perspectivas de outros cristãos, abraço-os como irmãos em Cristo e como co-andarilhos na senda cristã.


É importante, ademais, que eu esclareça algo relativo à minha própria experiência de fé. Por conta de minhas múltiplas heranças cristãs – sobre às quais falei no prefácio deste livro –, tendo a me ver religiosamente muito mais como “cristão” (isto é, de forma muito ampla) do que como membro duma tradição específica. Abraço as diferentes tradições que formaram minha compreensão da fé cristã como minhas, extraindo de cada uma delas aquilo que julgue me aproximar mais do Divino. Além disso, meu ministério eclesiástico é exercido no contexto duma “igreja unida”, isto é, duma comunidade que mantém laços com diferentes tradições cristãs. Assim, em minha experiência, é insuficiente dizer que sou um unitarista, um anglicano, um luterano, um restauracionista, ou mesmo protestante. Prefiro identificar-me simplesmente como um cristão, abrindo a possibilidade de agregar outros aprendizados àqueles que herdei de minhas múltiplas tradições cristãs.


NOTAS:



1 Atos dos Apóstolos 11:26b.
2 O termo igreja possui sentidos diferentes no vocabulário cristão. Além do sentido acima, o termo pode se referir, também, ao edifício utilizado por uma comunidade cristã específica como lugar de culto. Para que você compreenda o que quero dizer cada vez que utilizar o termo “igreja”, seguirei as seguintes regras: 1) Quando utilizar aqui o termo Igreja (com inicial maiúscula), estarei me referindo ao todo da comunidade cristã universal, independentemente da tradição ou denominação – a não ser que esteja citando o nome duma denominação cristã específica. Ex.: A Igreja compreende os seguidores de Jesus. (=a comunidade cristã universal) / A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil é a única denominação brasileira filiada à Comunhão Anglicana. (=nome próprio duma igreja específica); 2) Quando utilizar a palavra com inicial minúscula, estarei ou me referindo ao edifício de culto cristão ou a uma congregação cristã de forma mais geral. Ex.: Nesta cidade há muitas igrejas. (=edifícios de culto) / As várias igrejas católicas e protestantes daqui possuem muitos membros. (=congregações/comunidades cristãs).
3 Os termos ortodoxia e ortodoxo(a) possuem, ao menos, dois sentidos mais comuns. No capítulo anterior, apresentei um deles: o sentido de ortodoxia como a “crença correta”, com o adjetivo “ortodoxo(a)” relacionando-se a esse sentido (heresia é o antônimo desse primeiro sentido). Um segundo sentido frequente refere-se às formas de Cristianismo características das igrejas ortodoxas “orientais” da Grécia, da Rússia e de outras nações eslavas, por exemplo.
4 A Constituição, de 1948, do Conselho Mundial de Igrejas, por exemplo, afirma que aquela organização constitui-se das igrejas que “aceitam nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador”. Esse é um tipo de definição ortodoxa muito específica do que seja ser cristão e Igreja ao qual muitos cristãos, e muitas comunidades cristãs, não estão dispostos a se submeter.
5 Como já esclareci antes, o termo heresia – e os adjetivos correlatos: herege e herético – são termos utilizados, na tradição cristã, para se fazer referência àquelas teologias ou práticas que não sejam ortodoxas. Heresia é antônimo de ortodoxia.
6 Ao longo deste livro, utilizo o termo “comunhão” com dois sentidos básicos: 1) para referir-me a um sacramento cristão – utilizando, para tanto, a inicial maiúscula – , ao qual posso referir-me também como “Santa Comunhão” ou “Eucaristia”, e que alguns protestantes chamam “Santa Ceia” ou “Ceia do Senhor”; e, 2) para referir-me a uma tradição cristã específica, por exemplo: A Comunhão Anglicana é formada por todas aquelas igrejas nacionais que mantêm laços com o Arcebispo de Cantuária, líder da Igreja da Inglaterra. / A Federação Luterana Mundial é a maior comunhão de igrejas luteranas no mundo.
7 A maioria, talvez, dos batistas brasileiros chamem-na de Ceia do Senhor ou Santa Ceia. Ademais, na tradição batista não há “sacramentos”, há “ordenanças”.
8 Tratarei sobre os Sacramentos cristãos num outro capítulo, mas vale adiantar que, nas tradições católicas e ortodoxas, eles são sete (o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio); enquanto para as tradições protestantes sacramentais eles são apenas dois (o Batismo e a Comunhão).
9 A questão de validade ritual é complexa demais para ser tratada aqui, extrapolando as intenções deste livro.
10 O conceito de ortodoxia no Judaísmo, obviamente, segue critérios diferentes daqueles praticados no Cristianismo.
11 Devo ressaltar que alguém que esteja observando a questão a partir duma perspectiva externa à Igreja poderia enfatizar como razão principal para esses conflitos aspectos políticos – questões de “poder” –. Apesar de eu reconhecer o mérito de tal perspectiva (defendida por muitos cientistas sociais, historiadores, filósofos etc), compreendo-a como deveras reducionista, por não levar em consideração o fato de as relações eclesiásticas fundamentarem-se sobre compreensões teológicas, que se revelam muito mais complexas do que disputas por “poder”. Essas compreensões teológicas funcionam como bases identitárias de fé.
12 João 17:21.




FONTE:


COSTA, Gibson da. Redescobrindo o Cristianismo: uma confissão pessoal da fé cristã. New York, EUA: Edição do autor, 2014. p.37-49.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Esperemos à porta!

"Quanto a mim, tomarei o velho lugar ao qual estou acostumado, suficientemente próximo a Deus para ouví-lo e para saber que está lá, mas não tão longe das outras pessoas, para que possa ouví-las e lembrar-me que elas também estão lá.

Onde? Do lado de fora da porta - milhares delas, milhões delas. Mas - mais importante para mim - uma delas, duas delas, dez delas, cujas mãos intenciono pôr sobre a maçaneta. Então, ficarei à porta e esperarei aqueles que a procuram. Prefiro ser um porteiro... Então espero à porta."

(Samuel Moor Shoemaker)

domingo, 8 de junho de 2014

Política e religião, ou religião e política, na "guerra" pela alma dos brasileiros

Política e religião. Religião e política. Uma combinação que já se mostrou perigosa e corrosiva para sociedades pré-modernas, e que, infelizmente, continua a lançar sombras sobre nosso mundo social contemporâneo, que alguns insistem em chamar de pós-moderno.

Pois bem, a combinação de política e religião, ou religião e política, é para mim um desafio às minhas crenças políticas e teológicas. Eu, que um grande amigo já chamou de “super protestante”, abomino a intromissão do Estado nos domínios da vida de fé e do espírito, e, igualmente, abomino a intromissão da fé e do espírito nos domínios do Estado. Não deixo de reconhecer, entretanto, a limitação desse sentimento, já que sei que nenhum de nós pode separar aspectos de nossa compreensão de mundo em caixinhas incomunicáveis dentro de nossas mentes. Assim, minha visão política se comunica com minha visão religiosa, e ambas se comunicam com minhas visões cultural, social, econômica etc.

Como um protestante liberal, acredito na liberdade de consciência do indivíduo. Acredito que deve haver uma separação entre a religião institucional (a “Igreja”) e o Estado para que o Estado se alicerce sobre a lei democrática, e não sobre a imposição de convicções religiosas particulares ou de ingerências institucionais. Isso, contudo, não significa que acredito que o Estado, chamado de laico, deva ser ativamente ateu. O Estado é, em princípio, um reflexo dos ideais de sua sociedade, e como a sociedade da qual fazemos parte não é ateia, não vejo problema algum em extrairmos aquilo que a maioria dos “crentes” (leia-se, os cidadãos que acreditam na Divindade ou professam uma fé religiosa – que, de acordo com o IBGE, é a maioria esmagadora da sociedade brasileira) compartilham em suas convicções éticas para moldar nossa democracia.

Isso significa, em minha compreensão, que, por exemplo, o “Deus seja louvado” das cédulas de Real ou a regulação do aborto no país não são uma ingerência da “Igreja” no Estado brasileiro. São, sim, um reflexo do ethos da sociedade brasileira; a voz das convicções que moldam nosso ideal social, enquanto entidade política. Essa compreensão das leis como reflexo de convicções éticas majoritárias, entretanto, não significa que não se deva fazer oposição a elas no cenário político; pelo contrário: acredito que se há convicções opostas, seus defensores têm o direito, e talvez o dever, de se organizarem politicamente e tentarem vencer o debate de forma legal e democrática.

Minhas convicções, infelizmente, parecem ser possíveis apenas numa utopia, apenas num “não lugar”. Se atentarmos para o que ocorre neste país, nos sentiremos forçados a fazer uso daquela infeliz expressão belicista: parece que vivemos num ambiente de “guerra cultural”. Uma guerra pelas nossas mentes e votos, travada por dois grandes grupos opostos, que contribuem para o esfacelamento de convicções e o assassínio de nossas almas.

Num extremo, há aquelas forças que, em nome duma suposta “justiça” e duma suposta “igualdade”, violam, em seus esforços, o “espírito” da maioria. Assim, os insatisfeitos com a democracia representativa, com o Estado de Direito, com o direito à propriedade e à livre iniciativa, com noções ditas “tradicionais” de família etc, acreditam poder passar por cima de tudo e de todos para alcançarem seus anseios; sem “perceberem”, muitas vezes (aos menos, os mais “democráticos” entre eles), a incoerência entre seus credos políticos professos e suas ações.

Noutro extremo, há aqueles que se utilizam do discurso dito “religioso” no âmbito político, ou vice versa, para criarem um ambiente reacionário, injetando o medo de tudo aquilo e de todos aqueles que pensem de forma diferente, e sabotando o espírito democrático pluralista, encontrando inimigos onde há apenas discordantes. E o mais triste é que o fazem em nome de “Deus” e da “família”, em nome da “fé” e da “democracia” – só não sei, ao certo, que “Deus”, que “família”, que “fé”, nem que “democracia” eles defendem!

O mal ofertado por esses dois grandes grupos extremistas é que eles sequestram nossa liberdade. Violam nossa consciência coletiva comum, tentando impor sobre nós suas visões distorcidas de liberdade e democracia, visões que não refletem nosso “senso comum” (expressão, aliás, bem diabolizada pelo modismo do politicamente correto), como exposto em nossa Constituição e leis. Esses extremistas, assim, não nos representam; não representam os anseios da maior parte desta sociedade em construção, desta democracia em formação. Eles representam, apenas, seus próprios interesses; nada mais.

Todos os anos eleitorais costumo repetir isso: no mundo político, e dentro da Igreja, há aqueles que se esforçam para politizar o Cristianismo, ou para cristianizar a política. Eles utilizam a linguagem da fé para seduzir aqueles que não estão preparados para o debate de ideias políticas, e utilizam a linguagem da política para seduzir aqueles que não estão ancorados na tradição de fé. A arma pode ser a desmoralização ora da política, ora da fé; com o sequestro das narrativas desses dois âmbitos para que possam manipular seus discípulos e conseguirem seu voto. Como um protestante, compromissado com a separação entre a religião institucional e o Estado, enxergo esse tipo de manipulação como uma ameaça à liberdade e à democracia – e uma ameaça frequentemente feita por outros que também se identificam como “protestantes”.

Obviamente, compreendo como muitos eleitores cristãos, especialmente protestantes, se sentem e, até certo ponto, partilho de seus sentimentos. Em nosso país, defender certos princípios vistos como “tradicionais”, mesmo que de forma democrática e legal, é motivo de chacota por grande parte da chamada “intelligentsia”. Assim, opor-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à legalização do comércio e consumo de drogas, à descriminalização do aborto etc, é visto como ser reacionário, retrógrado, ditatorial – adjetivos, aliás, utilizados por adolescentes imaturos e semiletrados, que não compreendem como se dá a formação do ethos duma sociedade. De minha parte, devo enfatizar, não ouvirão a defesa das perspectivas de nenhum desses dois lados – i.e., nem dos defensores dos princípios ditos “tradicionais”, nem dos “adolescentes imaturos e semiletrados” –, já que defendo uma via media em nossa vida política.

Sou um cidadão compromissado com a democracia representativa liberal, com o Estado Democrático de Direito, com as liberdades e obrigações estabelecidas pela Constituição Federal brasileira de 1988. Sou um cristão protestante compromissado com uma visão não-hierárquica da fé e da Igreja, na qual os cristãos e cristãs são livres para questionar a autoridade eclesiástica se suas consciências assim os impor, e na qual a Igreja e o Estado seguem seus próprios caminhos. Sou um homem de identidade cultural e de orientação emociono-sexual distintas daquelas da maioria das pessoas que me cercam e que, por isso mesmo, exijo as mesmas proteções e benefícios legais que todos os outros possuem, já que cumpro todas as obrigações comuns a todos nós. Não vejo a necessidade de temer a diversidade no mundo, pois acredito que há espaço para todos nós, desde que cumpramos nossa parte no contrato constitucional. Isso me obriga a rejeitar as duas visões extremistas às quais, talvez exageradamente, fiz menção aqui.

Apoiar a extravagância do grupo aparentemente “relativista”, para quem “vale tudo” em nome duma suposta “justiça” e duma suposta “igualdade”, é violar minha própria filosofia moral, por mais que tenha simpatia por algumas das ideias defendidas por eles. É, assim, violar meu credo político e minha fé protestante, que se entrelaçam numa defesa da democracia representativa, do Estado de Direito, e do direito à vida, à liberdade e à propriedade.

Por outro lado, apoiar o barulhento grupo dos “absolutistas morais”, que se protegem sob o rótulo da fé cristã, é escarnecer não só de minhas mais profundas crenças políticas, mas também de meu Deus, de minha fé, e de meus ancestrais de fé. Ademais, é violar o lugar central que o dogma da dignidade humana ocupa em minha fé unitarista. Apoiá-los, por mais que algumas de suas ideias sejam partilhadas por mim, seria violar o todo da minha visão de mundo.

No fim das contas, nenhum desses dois extremos me representam, nem representam, provavelmente, a maioria dos brasileiros. Espero que os eleitores cristãos deste país, especialmente os protestantes, possam entender o perigo que esses extremismos antidemocráticos e anticonstitucionais representam para o Brasil. A disputa ideológica é sadia, útil e deve continuar – assim devem continuar as oposições de ideias no cenário político –; mas a excitação ao ódio e preconceito, que se generalizou entre nós, de todos os lados e em todos os estratos, deve ser rejeitada como uma afronta à dignidade humana, à liberdade e à democracia. O que esses grupos fazem – sejam eles os radicais da “fé” ou do “social” –, quando jogam cidadãos uns contra os outros numa “guerra” artificial, é uma manifestação de sua ignorância, intolerância e inimizade, e deve ser rejeitado nas urnas nas próximas eleições!

Bençãos a todos!
 
+Gibson

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O IDEAL DE ORTOPRAXIA ENSINADO NAS ESCRITURAS JUDAICO-CRISTÃS


"O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória do Senhor virá acompanhando você. Então você clamará e o Senhor responderá; você chamará por socorro, e o Senhor responderá: 'Estou aqui!' Isso se você tirar do seu meio o jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio-dia; o Senhor será sempre o seu guia e lhe dará fartura até mesmo em terra deserta; ele fortificará seus ossos e você será como jardim irrigado, qual mina borbulhante, onde nunca falta água; as suas ruínas antigas serão reconstruídas, você levantará paredes em cima dos alicerces de tempos passados. Vão chamá-lo reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar.” (Isaías 58:6-12)


"Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus." (Miqueias 6:8)


"...se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber... Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem." (Romanos 12:20-21)


"Cuidem que ninguém retribua o mal com o mal, mas procurem sempre o bem uns dos outros e de todos." (1 Tessalonicenses 5:15)


"Se alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo." (Tiago 1:26-27)


"Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta." (Tiago 2:17)