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sexta-feira, 26 de abril de 2013

Qual caminho escolher: condenação ou compaixão?


Não julguem, e vocês não serão julgados; não condenem, e não serão condenados; perdoem, e serão perdoados.
(Lucas 6:37)

Ele gritava freneticamente palavras de condenação. Deus, para ele, estaria furioso com a humanidade, e, por isso, enviava sinais de Sua ira para que nos arrependêssemos de nossos pecados antes que não tivéssemos mais tempo para tal. A ênfase na “moralidade” sexual era clara, já que era praticamente apenas sobre isso que ele falava…

Testemunhei essa cena num lugar público da cidade. Mas também poderia ter sido num ambiente mais privado duma igreja, ou através da televisão, das ondas de rádio, ou por meio da internet. Esse tipo de cena se torna cada vez mais comum no universo cristão brasileiro. O Cristianismo é sequestrado e traído por um ambiente político cada vez mais polarizado.

O que mais me incomoda em tudo isso é que a mensagem cristã – sim, o Evangelho – parece ter sido transformada de um chamado à salvação em uma afirmação categórica de condenação. Jesus parece não ser mais, para esses pregadores presentes nas mais diferentes tradições cristãs, o Salvador do homem; ele parece ser, ao menos para esses anunciadores do desespero, o condenador do mundo – aquele que trará a fúria divina, o fogo e enxofre do sofrimento, para aqueles que não aderem à sua [i.e., desses pregadores] interpretação específica do Cristianismo! É importante reconhecer que essa não é uma atitude nova – ela é recorrente, em diferentes momentos históricos, e não apenas na tradição cristã –, mas essa ênfase numa teologia da condenação não deixa de ser tristemente equivocada, a despeito de sua permanência na história do Cristianismo. [Por outro lado, é bom que eu deixe claro aqui que a ênfase excessiva na bondade humana dada por nós cristãos liberais também pode ser equivocada, já que pode nos levar a uma aparente – sim pois é aparente apenas – tolerância àquilo que atenta contra a dignidade humana; então, os excessos são cometidos por todos nós, apesar de aqui eu estar me debruçando apenas sobre um desses equívocos.]

Como um discípulo do rabino galileu, vejo Jesus de Nazaré como meu “Salvador”, independentemente do sentido que atribuo ao termo. Diferentemente da maioria dos demais cristãos, vejo a salvação oferecida por Cristo não como uma expiação pelos meus pecados, e, assim, não apenas como relacionada com sua “morte e ressurreição” – apesar de essas duas palavras serem essenciais à narrativa que se construiu em torno de Jesus e de sua importância para a emergência do movimento que se organizaria posteriormente em torno de sua memória –, mas por meio de seus ensinamentos e de seu exemplo. Geralmente, não penso em Jesus como alguém que morreu por mim, mas como alguém que viveu por sua halakha e que, assim, tornou-se meu caminho para Deus. Seja como for, Jesus representa salvação, e não condenação; vida, e não morte. Então, quando alguém prega um Jesus de ódio, um Jesus condenador; quando alguém transforma a halakha de Jesus – aquele caminho da compaixão, a via do sola caritas – num sinônimo de fúria e ira, de condenação e incompassividade, de pena de morte, então esta pessoa está, para mim, dando voz àquele discurso que os Evangelhos dizem ter Jesus condenado. Se trata de uma traição à tradição atribuída ao grande Rebbe galileu.

Sim, acredito que o mal deva ser condenado. Os seguidores de Jesus devem continuar a condenar aquilo que viola a dignidade do ser humano: a violência, a injustiça, a corrupção – e, talvez, alguns de nós tenhamos discordâncias sobre quais sejam essas coisas numa vida cada vez mais complexa –, mas essa condenação não significa nos tornarmos juízes da vida de outros seres humanos, como se fôssemos a encarnação da pureza e da divindade e os outros fossem os “pecadores”. Prefiro pensar a condenação do mal no mundo como um testemunho em nossas ações da compaixão que somos convocados a compartilhar com todos os seres humanos e com toda a criação. Assim, mais “cristão” do que apontar os “pecados” alheios seria abrir os braços para aquele que julgamos estar “perdidos” (só para repetir o termo utilizado pelo “pregador” que citei no início desta conversa). É assim que compreendo a mensagem atribuída a Jesus – um caminho de compaixão absoluta, aqui e agora. Para mim, é assim que Jesus nos salva – apontando para a necessidade de uma interdependência e de uma religação entre cada um de nós, já que perdão e compaixão dependem da presença do outro [o que torna a fé cristã algo que só pode ser posto em prática em nossa relação com as pessoas, com absolutamente todas elas!].

+Gibson

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma resposta à amiga Sarah


Olá Sarah!


Bem, duma certa forma, já respondi a essa mesma questão sobre veracidade da Bíblia em diferentes ocasiões aqui, e meu pensamento continua a ser basicamente o mesmo nessa questão. Não posso pensar numa resposta a essa questão sem fazer outras perguntas para decidir o que é essencial e relevante nas Escrituras para minha relação com Deus. A primeira pergunta a fazer, talvez, seja “O que é a Bíblia, afinal de contas?” – a resposta que dou a essa pergunta definirá a resposta que darei à sua questão. Se a resposta for algo como “A Bíblia é a Palavra literal de Deus, e não humana, infalível, sem erros, inquestionável” etc, então fim de história; não posso tentar descobrir diferentes níveis de sentido em suas palavras; ponto final. Claro que, se assim pensasse, estaria ignorando tudo o que sei sobre a forma como o mundo e a sociedade funcionam, sobre a mente humana, sobre as leis da física, sobre a história de Israel e da Igreja etc. Essa, obviamente, não é a resposta que eu ofereceria a essa pergunta!

A Bíblia é, em minha compreensão, um livro humano (na verdade, um conjunto de livros), escrito por seres humanos, e que se tornou sagrado por meio dum processo de canonização. A Bíblia não nasceu como Escritura Sagrada, ela foi tornada sagrada por meio dum longo processo que demorou séculos. A história da Igreja cristã mostra como esse processo foi complexo e quão ligado ele está àquilo que costumamos chamar de “tradição” – por isso, podemos dizer que a Bíblia é, na verdade, um produto da tradição de duas comunidades distintas, a antiga Israel e a Igreja. A complexidade reside, parcialmente, no fato de que essas duas tradições são múltiplas; por exemplo, no caso da Igreja cristã, não havia no início da história da Igreja (como não há hoje) uma forma única de ser cristão nem uma concordância absoluta sobre todos os pontos doutrinários da tradição. Assim, Jesus, por exemplo, foi compreendido de diferentes formas – i.e., quando os cristãos ouviam (sim, porque a maioria deles não liam, mas ouviam!) os relatos de determinado Evangelho que era lido em sua comunidade (nem todas as comunidades tinham acesso a todos os Evangelhos que hoje chamamos de canônicos), esse relato podia ser compreendido de diferentes formas, a depender do pensamento preponderante naquele meio. Só após o Cristianismo tornar-se a religião oficial do Império Romano é que surge a preocupação com uniformidade de crenças – já que para que se tornasse um braço do Estado romano, era importante que a Igreja apresentasse-se de uma única forma. Após séculos e séculos de toda a construção duma tradição de leitura, parece ser anormal que determinados relatos das Escrituras sejam lidos de maneira diferente daquela estabelecida pela tradição “católica” (com este termo não me refiro apenas ao Catolicismo Romano, mas ao pensamento cristão dominante no Ocidente).

Na história da Igreja se desenvolveram diferentes formas ortodoxas de interpretação das Escrituras – tradições hermenêuticas que, conjuntamente, ainda são reconhecidas pelas grandes famílias cristãs (católicos romanos e orientais, e protestantes). Tradicionalmente, na Igreja Oriental, existiam duas grandes tradições, uma centrada numa interpretação literal que apelava ao sentido alegórico das Escrituras (chamada de Escola Alexandrina de exegese bíblica – cujos membros incluíam Clemente e Orígenes, por exemplo); e outra que apelava ao contexto histórico para interpretá-las (chamada de Escola Antioquina de exegese bíblica – Diodoro de Tarso e João Crisóstomo, por exemplo, eram parte dessa tradição). Ademais, podemos pensar em três tradições de interpretação das Escrituras na Igreja Ocidental: 1) A do Bispo de Milão, Ambrósio, que desenvolveu uma compreensão tripla do sentido das Escrituras → um sentido natural, um sentido moral, e um sentido racional; 2) A de Agostinho de Hipona, que defendeu uma compreensão dupla do sentido das Escrituras → um sentido histórico, e um sentido espiritual; e 3) a Quadriga, que foi o método interpretativo padrão no Ocidente, durante a Idade Média, e buscava quatro sentidos básicos nos textos das Escrituras → um sentido literal, um sentido alegórico, um sentido moral (tropológico), e um sentido anagógico (um sentido que nos conduza a Deus). [A Igreja Católica Romana, por exemplo, em seu Catecismo oficial, faz uso de todos esses elementos em sua interpretação das Escrituras – veja mais em: CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus; 1998. p. 41-42.)

Minha maneira de interpretar as Escrituras se ancora numa combinação de todas essas tradições. Assim, busco um sentido metafórico (mais que real) nas Escrituras, tendo como guia a compreensão do contexto histórico de seus textos, e desses na Igreja cristã. Como sou um homem que vive no mundo moderno, que é influenciado pela ciência e pela filosofia de minha própria época – e não pela filosofia do mundo grego antigo, como os primeiros cristãos –, então é mais que normal que minha leitura esteja condicionada por meu próprio contexto histórico. E mais, nesse processo de interpretação, entra minha experiência pessoal no mundo real – o que chamo de senso comum. É a combinação de tudo isso que me leva a entender as narrativas bíblicas duma forma que pode ser muito diferente daquela dos primeiros cristãos, por exemplo – muito provavelmente, diferente da leitura que o próprio Jesus fazia… É uma questão de escolha, uma questão de integridade intelectual – e, consequentemente, moral!

Não pense que isso seja fácil. Não é. Se prestar atenção, isso faz com que eu rejeite certos conceitos que outros cristãos fiéis – talvez a maioria deles – julgam imprescindíveis. Enquanto acredito na possibilidade da permanência de muitas verdades, outras, para mim, são temporárias e secundárias, já que estão condicionadas a determinadas experiências históricas. Como conciliar, por exemplo, o papel atribuído por Jesus – ao menos, de acordo com os Evangelhos – às mulheres com aquele a elas atribuído supostamente pelo apóstolo Paulo? Nos relatos sobre Jesus, as mulheres estão no centro – ele quebra todas as regras sobre a separação entre homens e mulheres –, mas, para Paulo, as mulheres deveriam continuar em seu papel de submissão à autoridade masculina. Como lidar com este problema? Os dois relatos não podem ser vistos como sendo absolutamente “verdadeiros”, já que se contradizem!… Minha resposta: a única solução é entender qual seja a mensagem básica do Evangelho, e, a partir daí, decidir o que se encaixa nessa visão, e o que é apenas tradição cultural – pode soar muito herético para aqueles que se declaram “cristãos bíblicos”, por exemplo, mas eles mesmos fazem isso de sua própria forma (na verdade, todos nós o fazemos o tempo todo!).

Para esclarecer o que penso sobre a maneira como Jesus compreendia Deus e sua relação com o Divino, deixe-me afirmar que Jesus era um judeu. Como judeu, Jesus provavelmente compreendia Deus de diferentes formas, dependendo do momento – já que sua tradição de fé não possuía uma declaração teológica como os credos cristãos, definindo Deus de forma objetiva. Deus era uma Realidade que podia ser definida de forma positiva quanto negativa – ou seja, Deus era e Deus não era etc. Eu discordo que a visão que Jesus tinha de Deus fosse “teísta”, já que essa visão (quando historicamente definida) emerge apenas a partir do encontro do movimento de Jesus com o pensamento grego. Para que Jesus fosse um teísta, ele teria que possuir uma visão objetiva de Deus como algo que pudesse ser quase que matematicamente definido – e isso não surge até mais tarde. O que podemos afirmar é que Jesus certamente possuía uma visão de Deus como uma Realidade pessoal, e mais que pessoal – mas dizer isso não é o mesmo que dizer que ele fosse um teísta!

Essas questões dogmáticas não geram constrangimento entre nós unitaristas, pois a maioria de nós – ou pelo menos dos ministros unitaristas – as tratariam da forma como as estou tratando com você agora: sem oferecer uma definição objetiva em nome de todos! Assim, posso dizer a você: sim, Deus, Jesus, ressurreição, vida eterna etc, são temas importantes para mim – só que, aceito que diferentes pessoas compreendam esses temas de diferentes formas, desde que sua conclusão seja dirigida pelos princípios que julgo indispensáveis ao Evangelho, e que resumo com uma frase em latim – sola caritas (só a compaixão, a caridade, o amor). Isso porque os Evangelhos e as demais Escrituras ensinam que Deus é amor e que somos chamados a amar, então esse amor deve ser o padrão de minha compreensão da mensagem de Cristo; não o “amor” enquanto uma palavrinha da moda para mostrar o quão legal sou, mas o amor enquanto uma força de transformação de mim mesmo e do mundo ao meu redor – um amor que deve se manifestar em como trato o próximo, cuido do planeta, respeito aos diferentes de mim, recebo meus inimigos à minha mesa, voto em meus representantes, cumprimento aos estranhos etc; é uma forma dolorosa e desconfortável de ler a Bíblia e a tradição cristã.

Isso é enfatizar só aquilo que me convém?! É claro que é! Acredito e tento praticar essas coisas, leio as Escrituras e a tradição dessa forma porque, de certa forma, isso é conveniente. Da mesma forma como é, em algum nível, conveniente para todas aquelas pessoas que acreditam em outras coisas acreditarem naquilo! Como vivemos numa sociedade na qual somos livres para escolher nossa religião, escolhemos aquilo que nos é conveniente! Isso não desacredita minha fé mais do que desacreditaria a fé de nenhuma outra pessoa, já que todas elas – mesmo que não estejam plenamente cientes disso – escolherem a tradição onde, pelo menos, se sentiam mais satisfeitas (e isso, em si, já é uma forma de conveniência!). Mas, se escolho um caminho no qual a mulher e o homem, o heterossexual e o gay, terão acesso a Deus da mesma forma; se escolho uma tradição na qual minha visão científica não tenha de ficar do lado de fora, quando atravesso as portas da igreja, sendo forçado a fingir que acredito em outra coisa e não sendo íntegro comigo mesmo e com os outros, esta é uma questão de fé pessoal – é assim que experiencio Deus!

Poderia, talvez, escolher falar aqui sobre minhas crenças pessoais sobre ressurreição, Deus, a natureza de Jesus etc. Entretanto, a não ser que esteja em discussões teológicas muito específicas, escolho não o fazer, porque julgo ser esse tipo de discussão irrelevante para mim. Concordo quando você diz, por exemplo, que o mesmo Paulo que fala sobre amor, fala sobre ressurreição – mas, para este mesmo Paulo (isso se eu acreditasse que os autores de todas as cartas que levaram seu nome fosse a mesma pessoa!), diferentemente de Jesus, eu sequer poderia estar trocando mensagens com uma mulher! Então, como pode ver, é realmente uma questão de se fazer escolhas!

Como poderia te ajudar se me recuso a dar uma resposta sobre o que é “verdadeiro” ou não nas Escrituras? [Já discuti várias vezes neste blog o sentido que dou ao termo “verdade”: em se tratando de minha fé, o termo não é sinônimo de factualidade!] Não sei. Penso que a única pessoa que pode construir uma resposta que lhe seja satisfatória é você mesma: você tem de fazer escolhas que levem em consideração sua relação com o Divino, a pessoa que você é, a maneira como compreende o mundo, sua experiência de vida etc. Só assim você descobrirá o que é verdade, e, talvez, poderá descobrir que a verdade é algo que toma diferentes formas em diferentes momentos da vida, dependendo de um sem número de razões. Eu continuarei aqui, orando para que você possa alcançar esta “verdade”, mas não serei presunçoso a ponto de pensar que possa dizer a você – ou a quem quer que seja – o que é a “verdade” válida para todos, em todos os tempos, em todos os lugares.

Bençãos! Espero que possamos continuar nossas conversas e, quem sabe, um dia vê-la em pessoa!

+Gibson

terça-feira, 2 de abril de 2013

Cristianismo... ainda relevante?


Numa conversa muito agradável com um grupo de jovens universitários – i.e., pessoas mais jovens que eu –, ouvi as inquietações que frequentemente abatem a confiança que esses têm em sua tradição de fé. Na visão daqueles meus amigos, seria difícil confiar numa instituição religiosa – i.e., na igreja – que estaria associada a tudo aquilo que aprenderam ou experienciaram ser opressivo ou corrupto; assim como seria impossível acreditar em fórmulas de fé que contradizia o que conheciam sobre o mundo. Para eles, o que compreendiam ser a fé cristã tornara-se irrelevante.

Aquele tipo de inquietação não me é estranha. Em primeiro lugar, não estou tão distante assim da idade daqueles meus amigos – que estão entre os vinte e os vinte e cinco anos de idade, e eu em meus trinta e quatro –, logo, posso lembrar-me claramente das transformações psíquicas e intelectuais pelas quais passamos àquela altura da vida, quando estamos nos aventurando nas correntes de novos conhecimentos, novas experiências de vida e novas escolhas que nos marcarão profundamente. Ademais, lido constantemente com os relatos de experiências semelhantes na vida de outros jovens com os quais converso ou me correspondo. Assim, estou sendo plenamente honesto quando lhes digo que não estão sozinhos quando passam por aquelas correntezas de sentimentos de dúvidas e incertezas. Esses sentimentos são naturais e, acredito, necessários ao nosso crescimento intelectual e espiritual; e, mais importante, não são nada de que tenham de se envergonhar.

Para que eu seja o mais direto e objetivo possível, deixem-me declarar que confio plenamente na relevância da fé cristã para nosso mundo. O Cristianismo oferece uma narrativa do sagrado que tem moldado positivamente a vida de milhões de pessoas há pelo menos dois milênios – que continua a oferecer uma jornada espiritual a incontáveis pessoas no mundo contemporâneo. O Cristianismo tem me oferecido uma narrativa do sagrado capaz de construir uma corrente de relações entre minha vida e o Divino, oferecendo-me uma interpretação vivificante para a realidade que experiencio. Em termos mais seculares, por exemplo, é fácil esquecermos que nossas instituições ocidentais de direitos humanos, cidadania, liberdade etc, emergem dum imaginário judaico-cristão. O sentimento anticlerical da modernidade fez com que, ingenuamente(?), desassociássemos essas instituições da herança greco-romana-abraâmica na qual foram moldadas. Ouso supor que aqueles traços “ocidentais” só vieram à tona da forma e no tempo no qual passaram a existir por haverem emergido em sociedades cristãs – o que teria ocorrido não tivesse o Cristianismo se casado com o pensamento greco-romano no mundo Mediterrâneo, e vice-versa? O cinismo característico de nossa atitude intelectual moderna se nega a reconhecer essas associações, mas elas estão lá!

Penso que o problema que alguns de nós encontramos para achar sentido no Cristianismo, ou em qualquer uma das outras duas tradições jordânicas – i.e., o Judaísmo e o Islã –, é o de termos sido “treinados” para associar a fé a crenças dogmáticas e a definições objetivas duma suposta realidade teológica. Acostumamo-nos a declarações como “Deus disse”, “a verdade é”, “só Jesus salva” etc, mas não a descobrir novos níveis de sentido para essas declarações. “Deus” torna-se um problema, então, não porque Deus seja um problema, mas simplesmente porque fomos treinados a compreender o Divino como se fora um rei absolutista ou uma equação matemática. A “verdade”, nesse sentido que aprendemos a dar ao Cristianismo, é algo que pode ser equacionado, metrificado, verificado, quantificado – é, enfim, um absoluto. Então, se minha experiência me leva a compreensões que contradigam essa “verdade”, Deus e, consequentemente, o Cristianismo deixam de fazer sentido e tornam-se irrelevantes.

A coisa mais relevante sobre a tradição cristã é que ela, na verdade, são várias tradições. Não há algo que possamos chamar de Cristianismo único – para mim, há Cristianismos, no plural. Com isso quero dizer que há várias maneiras diferentes de compreender a mensagem cristã, e que nós, cristãos, podemos experienciar algo como aquilo sobre o qual fala Brian McLaren, em seu “A Generous Oxthodoxy”, quando aponta diferentes perspectivas em diferentes tradições cristãs que formam seu eu cristão pessoal. Em minha experiência Unitarista-Anglicana-Luterana (não necessariamente nesta ordem sempre), com a forte presença judaica, consigo uma latitude interpretativa maior para minha própria vida. Posso reler a narrativa cristã a partir de diferentes posições no espectro teológico, enxergando Deus duma perspectiva nova, descobrindo um novo nível de sentido para uma declaração atribuída a Jesus ou a um dos apóstolos, por exemplo. Assim, não são os detalhes minuciosos que passam a ter relevância, mas a Realidade para a qual a metáfora aponta: por exemplo, não faz diferença se Jesus ressuscitou a um homem morto, mas sim a cadeia de sentido que está por trás desse relato etc.

O Cristianismo é relevante para mim por ser um testemunho do caminho da Compaixão. Esse caminho é o que tenho chamado de sola caritas – o amor, a caridade, a compaixão é o único caminho que nos leva a Deus. Dizemos que Jesus é esse caminho porque ele nos aponta – na verdade, exige que sigamos – o caminho da Compaixão; assim, seguir a Jesus é seguir o caminho que ele percorreu: é viver pela presença do Divino aqui e agora, é ser essa presença para outras pessoas. Para mim, não outra mensagem mais relevante que essa, já que seu chamado não é para que eu largue minhas dúvidas ou inseguranças, mas sim, para que eu faça, para que eu ame, para que eu “caminhe”.

Não posso definir Deus. Não consigo encontrar uma maneira suficientemente ampla para falar sobre essa Realidade dentro da qual tenho minha existência. Também não consigo estar sempre acima da dúvida e dos questionamentos, quando presencio o sofrimento e a dor daqueles que amo e minhas próprias. Mas escolho pensar que se há verdade, essa tem de se materializar em nosso dia a dia, por isso – como me ensinou um sábio mestre –, tenho de trazer Deus para dentro da realidade do mundo (não necessariamente Deus como um ser, mas Deus como a compaixão ensinada pelo rabino galileu). O mandamento de “restaurar o mundo” – e a vida daqueles cristãos celebrados como santos é um exemplo disso – torna-se o padrão por meio do qual avalio o valor da mensagem cristã; uma mensagem que escolho interpretar como um caminho, um modo de vida.

Tenho certeza que vocês também podem encontrar uma forma de o Cristianismo ser relevante em suas vidas, ao mesmo tempo em que conseguem se manter intelectualmente íntegros.

+Gibson