.

.

sexta-feira, 29 de março de 2013

O hip-hop tem algo a dizer nesta páscoa?… Pergunte a Macklemore o que ele pensa!


O amor é paciente, o amor é benigno; […] não procura seu próprio interesse, […] não se alegra com a injustiça […]." (1 Coríntios 13:4-8)

Nenhuma forma melhor de atravessar dias sagrados do que refletir sobre uma das coisas mais sagradas em minha vida… sim, a música… a música que acende a chama da esperança por liberdade, vida e iluminação… a música – minha Terra Prometida, meu Céu, minha Terra Pura.

Meu artista de hoje é um dos rappers que mais admiro, apesar de não muito conhecido no Brasil, o brilhante Macklemore (nome artístico de Ben Haggerty) – que costumo chamar de “lyrical bomb”, por seu brilhantismo e sofisticação poética. O álbum do qual vem a canção de hoje, chamado “The Heist”, de 2012 – produzido por Ryan Lewis – é uma obra-prima do hip-hop; e a canção, “Same Love”, uma das mais maturas e belas afirmações humanas e políticas dos últimos anos, enriquece, de forma inesperada, a história do hip-hop. Quem poderia esperar a defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo por um rapper?… Só Macklemore e Ryan Lewis conseguiriam criar tanta agitação!

O contexto da canção encontra-se no R-74 (Referendo 74) do Estado de Washington, nos EUA. A intenção do R-74 era aceitar ou rejeitar a lei estadual de fevereiro de 2012 que legalizava o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A canção de Macklemore, produzida por Ryan Lewis, e com a participação de Mary Lambert, oferecia uma justificação para o “sim”. O mesmo Macklemore, que já tratara de tantos temas polêmicos antes (exploração sexual, drogas, suicídio etc), adentrava agora um território muito sensível para a sensibilidade majoritariamente machista e preconceituosa do hip-hop. Uma declaração de amor ao hip-hop como instrumento de libertação e como voz de resistência ao preconceito. Uma declaração de respeito ao ser humano. Amo esta canção por inúmeras razões, especialmente pelo que ela representa à relevância da cultura de massa nos Estados Unidos. Mais um ponto para um cara que eu já ouvia há alguns anos!… Ah, sim… no referendo, o “sim” foi vencedor!

Mas, vamos ao que interessa:

SAME LOVE (O MESMO AMOR) – Macklemore (com Mary Lambert)

[Macklemore:]
Quando estava na terceira série
Pensei que era gay
Porque podia desenhar, meu tio era
E eu mantinha meu quarto arrumado
Contei à minha mãe,
Lágrimas escorrendo pelo meu rosto
Ela disse: “Ben, você gosta de garotas desde a pré-escola”
Um tropeção!, eu sei, acho que ela tinha razão, né?
Um monte de esteriótipos em minha cabeça
Lembro-me de pensar assim
“É, sou bom em esportes”
Uma ideia preconcebida do que significavam
As características que todos aqueles que gostam do mesmo sexo tinham
Os conservadores de direita pensam que é uma decisão
E que você pode ser curado com tratamento e religião
Humano, a religação duma predisposição
Brincando de Deus
Ah não, vamos lá
Os Estados Unidos, o valente
Ainda tem medo, do quê?, não sabemos
E “Deus ama a todos os Seus filhos”
De alguma forma é esquecido
Mas parafraseamos um livro escrito
Há 3.500 anos atrás
Não sei

[Mary Lambert:]
E eu não posso mudar
Mesmo que tentasse
Mesmo que eu quisesse
E eu não posso mudar
Mesmo que eu tentasse
Mesmo que eu quisesse
Meu amor, meu amor, meu amor
Ela me mantém aquecida… [4 x]

[Macklemore:]
Se eu fosse gay
Pensaria que o hip-hop me odeia
Você leu os comentários no YouTube recentemente?
“Cara, isso é gay!”
Ouvimos isso todo dia
Nos tornamos tão insensíveis ao que dizemos
Nossa cultura surgida como resistência à opressão
É, não os aceitamos
Chamando uns aos outros de “veado”
Por trás dos teclados duma placa de mensagens
Uma palavra envolta em ódio
Ainda assim, nosso gênero ignora isso
Gay é um sinônimo para o que há de mais baixo
É o mesmo ódio que causou guerras religiosas
De gênero e de cor da pele
A cor de teu pigmento
A mesma luta que levou pessoas a protestos
Direitos humanos para todos
Não há diferença
Viva e seja você mesmo!
Quando estava na igreja,
Me ensinaram algo diferente
Se você pregar ódio no púlpito
As palavras não serão ungidas
E a água benta
Na qual você se ensopa
É envenenada
Quando todos os outros
Estão mais confortáveis
Ficando calados
Em vez de lutarem pelos humanos
Que tiveram seus direitos roubados
Posso não ser mais o mesmo
Mas isso não importa
Nenhuma liberdade até que sejamos iguais
É isso aí, eu apoio
Não sei

[Mary Lambert:]
E eu não posso mudar
Mesmo que tentasse
Mesmo que eu quisesse
E eu não posso mudar
Mesmo que eu tentasse
Mesmo que eu quisesse
Meu amor, meu amor, meu amor
Ela me mantém aquecida… [4 x]

[Macklemore:]
Apertamos “Play”
Não aperte “Pause”
Progresso, adiante!
Com um véu sobre nossos olhos
Viramos as costas à causa
Até o dia
Em que meus tios possam ser unidos pela lei
Crianças correndo pelo corredor
Atormentados pela dor em seu coração
Um mundo tão cheio de ódio
Alguém preferiria morrer
Do que ser quem é
E uma certidão num papel
Não vai mudar isso
Mas é um ótimo lugar no qual começar
Nenhuma lei nos mudará
Nós é que temos de nos transformar
Seja qual for o deus em que você acredita
Viemos do mesmo
Liberte-se do medo
Lá no fundo é o mesmo amor
Já está na hora

[Mary Lambert:]
E eu não posso mudar
Mesmo que tentasse
Mesmo que eu quisesse
E eu não posso mudar
Mesmo que eu tentasse
Mesmo que eu quisesse
Meu amor, meu amor, meu amor
Ela me mantém aquecida… [4 x]

[Mary Lambert:]
O amor é paciente, o amor é benigno
O amor é paciente (sem choros aos domingos)
O amor é benigno (sem choros aos domingos) [5 x]


quarta-feira, 27 de março de 2013

O mito da busca espiritual por Liberdade: uma mensagem pascoal


O mito pascoal sempre me fascinou. A beleza da narrativa, os símbolos, o sentido a eles atribuídos pelos diferentes leitores … tudo isso tem sempre falado à minha sensibilidade e imaginação – mais especialmente, talvez, por eu estar envolto em duas diferentes narrativas: a judaica e a cristã.

Da tradição judaica emerge o sentido de passagem do cativeiro à liberdade, do Êxodo à Terra Prometida. A metáfora do Pessah está tão presente em minha imaginação, que torna-se indelével de minha própria história. Ela guia e molda minha visão de mundo, minha compreensão filosófica, minha busca por “liberdade”, e minha esperança política. Como confio na realidade de Deus, essa passagem, essa busca, é um encontro com o Divino dentro do qual vivo, me movo e existo; e a narrativa tradicional do Pessah é um lembrete de que a liberdade está dentro de nosso alcance, mesmo que para atingi-la, tenhamos de atravessar as profundezas dos mares.

Da tradição cristã emerge o chamado à morte e à ressurreição. A metáfora do morrer e voltar a viver por meio da confiança e do abandono daquilo que nos acorrentava ao passado, a renúncia ao império da servidão – que, muitas vezes, está dentro de nós mesmos. Essa metáfora, que, para mim, está diretamente associada à narrativa sobre a morte e a ressurreição de Jesus, está tão presente em minha imaginação que é como se fora minha própria história. Como confio na mensagem de Cristo, essa morte e ressurreição, às quais essa mensagem me chama, é um lembrete de que a transformação de meu interior é um processo relacional contínuo de religação com o Divino, e um testemunho de que “nem mesmo a morte” pode nos separar do “amor de Deus”.

O interessante é que as tradições judaica e cristã não esgotam essa busca por liberdade e renascimento. Essas são buscas humanas, buscas comuns às mais diferentes tradições de fé. Se Moisés, por exemplo, lidera os israelitas através do deserto e do Mar Vermelho para alcançarem sua liberdade; e se, posteriormente, Jesus torna-se “o Caminho” que nos indica a jornada da morte à ressurreição, do cativeiro interior à deificação do nosso eu, também encontramos outros exemplos em outras tradições de fé.

O Buda, por exemplo, nos convida a seguirmos o Nobre Caminho que nos conduz à Terra Pura. O Nobre Caminho da “via media”, da renúncia aos extremos. O sentir correto, a fala correta, o comportamento correto, o viver correto, o esforço correto, a atenção correta e a concentração espiritual correta. Para ele, esse caminho nos leva à Iluminação – que é o equivalente budista à liberdade judaica e à vida cristã. A Iluminação, por outro lado, é dependente da ilusão e da ignorância, já que só pode existir por aquelas outras duas existirem, e vice-versa – se uma delas deixar de existir, as outras também cessarão. E quando alcançarmos a Iluminação, perceberemos que tudo contém, em si mesmo, uma Iluminação. É uma bela metáfora da busca por liberdade.

O profeta Muhammad, por exemplo, ensinou que a submissão a Deus é o caminho para essa liberdade. Assim, para a tradição islâmica, a fé deve ser afirmada pela língua, pelo coração e pelas ações. Nossa submissão a Deus é afirmada nas pequenas ações que realizamos no dia a dia: dos atos de adoração a Deus à maneira como cumprimentamos os estranhos na rua. A submissão a Deus é, para o profeta do Islã, o único caminho para a liberdade e a vida.

Com diferentes termos e conceitos, essas tradições nos ensinam o quanto nossa busca espiritual por liberdade – e não apenas a busca por liberdade espiritual – é essencial para a experiência humana. Nem sempre ela tomará um caminho religioso, já que podemos testemunhá-la também nas inúmeras empreitadas artísticas e filosóficas da humanidade, mas o que importa é que ela testifica o quanto “ser livre” é essencial para o nosso imaginário.

Como um cristão, penso que a Páscoa seja um tempo magnífico para refletir sobre essa busca por liberdade. E, mais especificamente, como um unitarista, escolho combinar esses diferentes conceitos religiosos de Liberdade, Vida e Iluminação em minha própria busca espiritual, modelando um sentido para a Páscoa que fale a todos os aspectos de minha vida.

Junto minha voz àquela de todos os cristãos, em todas as eras – independentemente de quão diferentes sejam nossas interpretações dessas palavras –, dizendo:

“Aleluia. Cristo ressuscitou!”

Pois, como nós unitaristas rezamos ao fim de nossas celebrações eucarísticas:

Cristo nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão, reconciliação e compaixão. Cristo morre em nós quando nos rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino divino aqui mesmo neste mundo. Saiamos em paz. Amém.”

Feliz Páscoa a todos!

+Gibson

segunda-feira, 25 de março de 2013

Homossexualidade no piegas e desinformado discurso sobre “o mundo, o pecado, e o Diabo”!


Sempre evito, o quanto posso, entrar nas discussões idiotas sobre homossexualidade que viraram uma “darling” nos meios cristãos brasileiros nos últimos anos. E isso por inúmeras razões. A primeira delas, claro, é que sou um homem gay, e tenho uma ética teológica que dirige meu ministério. Em segundo lugar, sou um Unitarista, e, assim, minhas prioridades e compreensões religiosas, assim como minha compreensão de “moralidade”, entram em contradição sonora com aquelas da maioria dos cristãos brasileiros que têm espaço nos meios de comunicação e no palco político. Ademais, minhas crenças políticas e minha cultura pessoal geralmente são muito distintas daquelas abraçadas pela maioria daqueles nos dois lados do embate político quanto ao tema no país. Logo, a não ser que o tema seja trazido à minha atenção, por alguma razão, nunca trato disso em meus escritos públicos – a não ser pelo fato de que pesquiso a história do pensamento teológico sobre sexualidade na tradição cristã, o que me faz lidar continuamente com o questões sobre homossexualidade [o que é muitíssimo natural em meu trabalho como teólogo].

Religiosamente, sou um protestante liberal – um Unitarista também ligado à Igreja Episcopal e à Igreja Unida de Cristo [para os que desconhecem, esses são bastiões da tradição teológica liberal nos EUA]. É importante afirmar isso para que compreendam de onde vem minha formação teológica, de onde vem minha compreensão sobre ética cristã. Cristãos como eu não abraçam injunções absolutas sobre certos comportamentos – por exemplo, beber, fumar, dançar não são comportamentos proibidos em nosso meio, como ocorre com certos grupos majoritários no meio protestante brasileiro. Acreditamos que a obsessão com esses costumes sociais é produto daquilo que nos EUA é chamado de “igreja da fronteira”i e que tal obsessão prescritiva não possua base nem nas Escrituras nem na tradição cristã em geral. Acreditamos que todas as coisas venham de Deus e que, assim, são boas – mas que devam ser usadas com responsabilidade e sabedoria: ou seja, devam ser consistentes com nosso chamado a fazer o bem ao próximo, à criação e a nós mesmos. Qualquer coisa boa, quando abusada [quando usada sem cuidado e sem sabedoria], pode tornar-se algo mau, e é por essa razão que o mandamento de amar [a Deus, ao próximo e a nós mesmos] é o princípio que deve guiar nossas relações com o todo da criação – talvez isso seja uma boa forma de resumir nossa compreensão sobre moralidade.

Como isso se relaciona com a questão da homossexualidade? Ou melhor, como já me foi perguntado antes por um amigo: “Como cristãos de diferentes grupos, que afirmam honrar as mesmas Escrituras, podem chegar a conclusões tão diferentes sobre questões de moralidade sexual?” [A questão tratada entre meu amigo e eu era a celebração do casamento – religioso – entre duas pessoas do mesmo sexo em minha comunidade de fé, no qual um dos pares era um ex-membro de sua comunidade de fé.]

Falando sobre minha compreensão teológica particular, talvez partilhada pela maioria de outros membros de minha comunidade de fé, esta está fundamentada sobre a tradição bíblica, apesar de eu utilizar diferentes princípios hermenêuticos daqueles utilizados por outras tradições cristãs. Há uma clara diferença interpretativa entre a forma como um cristão liberal como eu e um “evangélico”, por exemplo, interpretamos as Escrituras. Em minha tradição, damos à experiência [individual e comunitária] uma importante função no processo exegético e hermenêutico – o que permite que desafiemos, reinterpretemos e abandonemos certas passagens bíblicas como produtos culturalmente condicionados ou mesmo irrelevantes. Comumente, refletimos teologicamente sobre certas questões, começando pela experiência da situação sobre a qual refletimos [por exemplo, a questão de casamentos de pessoas do mesmo sexo na igreja], depois discutindo as Escrituras [i.e., a Bíblia] mais em termos de sua totalidade do que de trechos isolados – as tradições “evangélicas” majoritárias no Brasil, entretanto, começam seu processo interpretativo pelas Escrituras, rejeitando [no caso específico da presença de pessoas gays na igreja] o papel da experiência nesse processo.

A posição teológica em minha tradição é, em parte, moldada pela presença de pessoas de orientação emociono-sexual gay no processo de discernimento da Escritura, enquanto que no caso das chamadas “igrejas evangélicas” essa presença está, na maioria das vezes, plenamente ausente. Entre os membros de minha igreja local, por exemplo, há indivíduos gays e lésbicas – inclusive no Ministério, no meu caso –, e suas famílias, o que faz com que nossa experiência como indivíduos e como fiéis, e a experiência de nossa comunidade conosco, seja parte integrante do processo de discernimento teológico. Aqueles de nós que têm relacionamentos românticos, por exemplo, encontram nos demais membros da comunidade testemunhas para sua vida – ou seja, em nossa comunidade de fé, um casal homossexual encontrará amigos que os tratarão com o mesmo respeito devido a um casal heterossexual. A vivência entre pessoas de diferentes experiências faz, consequentemente, com que elas se vejam de forma mais respeitosa, compreensiva e apreciativa. Como me disse um membro de minha comunidade de fé, após a celebração do casamento que citei anteriormente: “Como poderia ser contra a união de duas pessoas que conheço há tanto tempo e cujo amor vi crescer”. A experiência faz toda a diferença: a experiência dos indivíduos e a experiência de sua comunidade – é uma via de mão dupla!

A questão das relações entre pessoas do mesmo sexo não envolve apenas a questão de relações sexuais. O problema da incompreensão, em minha visão, vem em parte da desumanização da questão. Quando se fala em pessoas gays, por exemplo, utilizamos o infeliz termo “homossexual”, que em si parece trazer a miopia para o fato de que o lado sexual não é o único aspecto numa relação entre pessoas do mesmo sexo – há um lado emocional nessa questão, da mesma forma como quando falamos de pessoas utilizando o também infeliz termo “heterossexual”. Somos todos seres sexuais, mas esse não é o nosso único aspecto como pessoas – também somos pessoas que amamos, tememos, sofremos, nos alegramos, cremos, descremos, trabalhamos, aprendemos, desaprendemos, sorrimos, choramos etc [todos nós, “heterossexuais” ou “homossexuais”]. Em nossa experiência religiosa, por exemplo, todas as pessoas podem experienciar o mesmo Mistério Divino, e são chamadas ao serviço da mesma forma – independentemente de como se identificam, de quem amam e de por quem são amadas. Esse lado humano pleno – de ver “homossexuais” como pessoas que tem vidas familiares, profissionais (professores, médicos, pesquisadores, políticos, engenheiros, policiais etc, e não apenas como aquelas figuras estereotípicas as quais culturalmente somos acostumados), religiosas etc – entretanto, parece ser ignorado tanto pela mídia quanto pelo próprio chamado “movimento gay”, quando sexualizam o sentido de ser gay [é só ver a maneira como gays são comumente exibidos na mídia, ou pior, como “vendem sua imagem” nas chamadas “paradas” da diversidade] para a visão pública, o que consiste num infeliz equívoco constantemente repetido em nossa sociedade.

Em minha experiência, já está mais do que na hora de mudarem o foco quando abordarem teológica, política e culturalmente a realidade dos indivíduos gays e de suas famílias. Em nome do bom senso, olhem pare seus filhos e filhas, amigos e amigas, vizinhos e vizinhas. Somos muito mais do que insinuam as novelas televisivas, os discursos políticos ou certas pregações religiosas. Assim como a teologia cristã é muito mais ampla do que o discurso biblicista pode sugerir. É tudo uma questão de boa vontade para percebermos a variedade. Então, quando quiserem ter um diálogo teológico que inclua as vozes de pessoas como eu, quem sabe não estarei disposto a participar?!

+Gibson


iAs comunidades de fé que se formaram nas áreas de fronteira interiorana norte-americanas desenvolveram uma visão estrita sobre moralidade na qual certos hábitos sociais aceitos nos meios cristãos urbanos – a exemplo da bebida, do fumo, da dança, do jogo de cartas etc – foram vistos como pecaminosos. Essa visão foi trazida por missionários “evangélicos” advindos dessas tradições protestantes norte-americanas que, apesar de lá sempre terem sido minoritárias, aqui no Brasil sempre terem sido majoritárias – logo, a associação automática de Protestantismo, no Brasil, com essas injunções “morais”.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Uma fé reparadora de brechas e restauradora de ruínas


O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas sararão rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória do Senhor acompanhará você. Então você clamará, e o Senhor responderá; você pedirá socorro, e o Senhor responderá: “Estou aqui!” Isso se você tirar do seu meio o jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio-dia; o Senhor será sempre o seu guia e lhe dará fartura até mesmo em terra deserta; ele fortificará seus ossos e você será como jardim irrigado, qual mina borbulhante, onde nunca falta água; as suas ruínas antigas serão reconstruídas, você levantará paredes em cima dos alicerces de tempos passados. Vão chamá-lo reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar.” (Isaías 58:6-12)

Reconstruir, restaurar, reparar. Infelizmente, esses não são verbos que ouço em meus diálogos com a frequência que gostaria. Um dos verbos que mais ouvi nas últimas duas semanas foi “desconstruir”. Ele apareceu em conversas que tive com alunos, colegas, amigos, e em algumas leituras que fiz. Ele emergiu até mesmo em conversas que tive na igreja, com algumas pessoas. Tenho a impressão que há muita gente preocupada em desconstruir, demolir, certos conceitos, ideias, noções, crenças.

Honestamente, penso que essa obsessão da chamada pós-modernidade com o “desconstruir” é triste. Isso porque geralmente a demolição é a maior distância percorrida pelos desconstrutores. Eles se preocupam apenas em desconstruir conceitos, ideias, noções, crenças; não constroem nada.

Alguém, por exemplo, fala em desconstruir antigas noções religiosas, eliminando 'verdades' que integram os elementos formativos da fé de outros. Desconstrói – assim pensa – cada um dos pontos da visão de mundo de uma determinada tradição. Demole. Derruba. Põe abaixo. Mas não constrói nada significativo no lugar. Não edifica. Não ergue. Não erege. Não cria. E assim, torna sua proposta desconstrutora ainda mais vazia e insignificante do que a que intencionara substituir. É trágico!

Não, meus amigos – sim, vocês com quem conversei sobre “desconstruções” –. Nunca pensei estar desconstruindo nada, porque penso ser a desconstrução algo – metaforicamente falando – “bandido”. Como dizem as Escrituras cristãs, “o ladrão” é que vem para “matar, roubar, e destruir” (João 10:10) – e a “desconstrução é uma forma de destruição. Eu prefiro estar ao lado daqueles que constroem algo, que contribuem na edificação e na criação. Prefiro, se possível, ser chamado de “reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar”.

Pensemos em Deus, por exemplo – que foi o principal tópico das ideias de “desconstrução” de vocês. Não me interesso nem um pouco por desconstruções de noções do Divino. Diferentemente do que alguns possam pensar, não sou um ateu – mesmo que me recuse a identificar-me como um “teísta”. Na realidade, recuso-me a etiquetar minhas noções sobre Deus, pois penso que essas devam ser maleáveis e flexíveis. Como acredito na revelação contínua, no mover do Espírito, escolho estar suficientemente aberto para que Deus se revele a mim de diferentes formas, em diferentes momentos de minha vida.

As tradições judaico-cristãs que me formaram como um homo religiosus – i.e., suas Escrituras, liturgias, teologias, filosofias, mitos, memória religiosa etc – são o território no qual escolho construir edificações para minha própria relação com o Divino, com a criação e com os homens. Como um unitarista, obviamente, estou aberto ao diálogo com outras tradições, já que Deus, em minha compreensão, não é judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem hindu, nem espírita, ou membro de qualquer outra tradição de fé. Creio que o Espírito se move sobre a terra, igualmente, para qualquer um de nós; e é exatamente por essa razão que me recuso a abraçar qualquer 'verdade' humana como se fora a definitiva – e as tradições religiosas, para mim, são humanas: são respostas que nós damos ao mover do Espírito divino. Isso, entretanto, não significa que eu não acredite que haja 'verdade' – o que não acredito é que eu, ou qualquer outro, tenha a condição de definir uma verdade eterna por meio de uma linguagem falha e incompleta como a humana. Podemos nos aproximar linguisticamente de uma descrição de nossas relações com o Divino, mas nossa linguagem não é capaz de definir o Divino. Na realidade, mesmo se pudéssemos fazer uso de uma linguagem verbal divina, essa não poderia conter a Deus, pois se o fizesse, Deus seria menor que sua própria linguagem. Não posso definir Deus – dizendo algo como: Deus é bom, Deus é fiel, Deus é eterno etc – pois se o pudesse, Deus seria menor que minha linguagem e, consequentemente, menor que eu. Deus, para mim, não é, nunca foi, nem nunca será. Deus não pode estar limitado por verbos criados pelo homem – se assim fosse, Deus estaria limitado pelas paixões, dogmatismos, tribalismos, bairrismos, e todos os -ismos humanos, e não acredito que isso seja possível.

Já disse incontáveis vezes que não acredito em Deus. Me recuso a utilizar o verbo acreditar com o nome Deus. Isso porque não posso encarcerar o Divino em minhas limitadas noções teológicas, em minha linguagem limitada. A tradição cristã (e a judaica, e a islâmica etc) nos ensina a darmos voz à nossa crença por meio de outra linguagem que não a verbal. É como se ela dissesse: utilizem o verbo fazer e não crer! “Amem aos seus inimigos”, ela nos comanda, e não “Creiam em amar seus inimigos”! “Alimentem os famintos”, e não “Creiam que alimentar os famintos seja a coisa certa”. O amor é a única linguagem aceitável para definir Deus na tradição cristã. [E a construção é o produto do amor, e não a desconstrução.] Infelizmente, a obsessão com objetividade nos faz centrar a fé cristã mais em palavras do que em ações, e isso, para mim, é uma heresia.

Como demonstra esse trecho do livro do Profeta Isaías, nossas ações construtoras, reparadoras, restauradoras são mais importantes que os rituais e, para meu argumento aqui, as palavras que utilizamos para exibir nossa “fé em Deus”. A resposta de Isaías serve tanto para os religiosos que enfatizam a religião externa, aparente, quanto para os críticos desconstrutores: a fé, “a religião pura” (na linguagem de Tiago 1:27), é aquela que faz, que se materializa em ações, que repara brechas, que restaura ruínas, que alimenta os famintos, que liberta os oprimidos, que abriga os desabrigados etc; é, enfim, uma manifestação de Deus – se aceitarmos a noção de Deus como amor.

Minha oração é que possamos, de alguma forma, nos abrir a essa visão de fé como um construir, e nos aproximarmos da visão de Deus como Criador, sendo “deificados” em nossa disposição de sermos moldados pelo soprar do Espírito.

+Gibson