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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Quem está no comando mesmo?

Esta semana, vi um adesivo num carro que me deixou teologicamente inquieto. O adesivo dizia o seguinte:

Deus está no comando!

E isso me fez lembrar de tudo o que ouço de tantas pessoas, das mais diferentes tradições de fé, e percebi que a maioria das pessoas que dizem frases como essa não a compreendem como metáforas, mas como afirmações factuais de sua compreensão do Divino, e da forma como Divino e humano interagem na vida real.

Essa compreensão não poderia estar mais distante de nossa tradição Unitarista! Deus não pode estar “no comando”, já que isso violaria um dos “dogmas” – é, eu sei o quanto todos nós desapreciamos esta palavra, mas nós não deixamos de ter os nossos também! – mais importantes de nossa tradição, sem o qual o Unitarismo, enquanto tradição cristã, desabaria: o livre arbítrio – a liberdade que os humanos têm de escolher seu próprio caminho na vida! [Isso para não citar que essa noção de “Deus estar no comando” não faria muito sentido para a compreensão que a maioria de nós, talvez, tenhamos do próprio Divino!]

Quando leio ou ouço “slogans” como esse, não posso evitar pensar em questões como: Se Deus realmente está “no comando”, como pode acontecer tantas catástrofes e desgraças no mundo? Se Deus realmente está “no comando”, como pode um homem entrar armado numa escola e atirar contra crianças indefesas? Ou como pode um grupo de homens sequestrar aviões e arremessá-los contra duas torres comerciais? Como pode uma mãe abandonar sua própria filha numa lata de lixo? Como pode um homem bater em sua própria esposa? Como pode um pai matar seu próprio filho? Como pode um jovem morrer num acidente de automóvel? Como pode um ônibus cair num desfiladeiro? Se Deus está realmente “no comando”, e todas essas coisas acontecem, consigo pensar em duas explicações: Deus é “um ser” extremamente cruel – mais cruel que qualquer ser humano psicologicamente sadio – que se alegra com o sofrimento da humanidade; ou Deus é “um ser” estúpido! Essas duas opções servem como resposta ao argumento utilizado por alguns de que o sofrimento é a maneira utilizado pelo Divino para nos ensinar! [Eu, como um ser humano imperfeito, jamais imporia morte, doença ou desgraças a um filho meu – se fosse um pai – para ensinar-lhe o que quer que fosse!]

Não! Deus não está “no comando”! O Divino – seja lá o que esse termo signifique para cada um de nós – abençoou-nos com a liberdade para estarmos nós mesmos no comando! Nós somos os guias de nossas caravanas, e não um ser ou poder, ou realidade, além de nós próprios. Frases como aquela podem servir de metáfora para a noção de que não estamos sozinhos, ou de que podemos encontrar alento e direção numa Realidade além de nossa experiência física – não vejo problema nocional algum com isso –, mas compreender que Deus controle tudo é trair a mensagem cristã (ao menos, a maneira como nós Unitaristas compreendemos essa mensagem!), é impor ao Divino a responsabilidade por nossos erros e crimes, é ignorar a maneira como o Universo funciona, é atribuir ao Deus da tradição judaico-cristã características deveras humanas e até menores que as humanas! Quando os homens cometem violências contra outros membros de sua espécie, ou membros de outras espécies, é porque estão utilizando sua liberdade da maneira errada (ao menos, para a ética que guia nossa compreensão de mundo). Quando desastres naturais nos atingem, e ceifam a vida de muitos dos seres que povoam este planeta, é porque há “razões naturais” para aqueles desastres, ou, novamente, porque utilizamos nossa liberdade para alterar o espaço geográfico de forma que contribuiu com aqueles desastres. Em outras palavras, para mim é claro que nós é que estamos “no comando”!

Como diriam as duas últimas linhas do lindo poema de William Ernest Henley, "Invictus":

"Eu sou o senhor de meu destino:
Eu sou o capitão de minha alma."

Espero apenas que possamos ter sabedoria para saber comandar nossos próprios destinos e almas!

+Gibson

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Unitaristas e a liberdade de consciência


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Hoje, mais uma vez, iniciamos o curso preparatório para a recepção de novos membros em nossa Congregação. Sempre fico muito feliz quando tenho a oportunidade de facilitar esse curso. É a maior chance que tenho para conhecer mais proximamente aqueles que têm a intenção de se tornarem membros desta igreja. É a chance que tenho para lidar com questões sobre as quais, talvez, ainda não tenha pensado, e, assim, ter mais ideias a serem discutidas em momentos como este.

Uma das coisas com as quais qualquer membro novo desta Congregação tem que lidar é nossa tradição de liberdade de consciência, que é o sentido básico do adjetivo “liberal” que utilizamos orgulhosamente como sinônimos de nossa tradição Unitarista. Essa liberdade pode ser assustadora para muitos que intentam juntar-se a nós; e, é bom que reconheçamos, pode se tornar um problema para alguns deles também!

Somos uma igreja cristã. Em muitos sentidos, somos, enquanto comunidade de fé, muito semelhantes a outras igrejas cristãs. Estudamos a Bíblia, e seguimos um lecionário cristão tradicional. Temos liturgias riquíssimas em poesia e tradição. Usamos símbolos cristãos em nossa capela. Seguimos o calendário do Ano Cristão em nossa vida comunal. Celebramos sacramentos ou ritos cristãos tradicionais, como Batismo e Comunhão. Enfim, temos muitas semelhanças com outras comunidades cristãs, especialmente com aquelas mais tradicionalmente litúrgicas! O que, então, distingue-nos – nós Unitaristas – de outras tradições cristãs?

A resposta que essa comunidade tem dado em seus 79 anos de história aqui em Pernambuco é ouvida em alto e bom som na canção que acabamos de ouvir de nosso coral: “Liberdade”! Essa é, na compreensão desta comunidade, a grande diferença. Essa resposta está também no lema desta Congregação: “Mentes abertas, mãos abertas, corações abertos”. Esse é o sentido primordial que esta comunidade atribui à sua tradição Unitarista.

Essa liberdade, entretanto, não é algo fácil e simples. O liberalismo que essa comunidade celebra como seu não é sinônimo de “Faça o que quiser, contanto que não seja o mal” – que é o que muitos, erroneamente, interpretam ser o Unitarismo. Não. Nosso liberalismo é uma atitude consciente, racional, seletiva, fiel e íntegra para com nossa tradição cristã. Esta comunidade está ancorada numa tradição teológica que nasceu no século dezesseis no leste europeu, atravessou o continente, chegou à América do Norte no século dezoito, e se instalou no Brasil no século XX. Nosso liberalismo fala o idioma duma tradição protestante litúrgica, cuja janela para a realidade é a linguagem metafórica da Bíblia, e cujo caminho para Deus está em Jesus. Nosso liberalismo prega uma união que não está ancorada numa concórdia imposta por credos ou confissões. Nesta comunidade de fé, não esperamos que todos acreditem exatamente na mesma coisa, que cheguem todos às mesmas conclusões; o que esperamos é que entre nós tenhamos um espírito de koinonia, de comunhão, de comunidade ampla; um espírito de inclusão, e de hospitalidade; um espírito cristão! Esse é o sentido que damos à nossa tradição!

Quando pessoas vêm a nós de outras tradições de fé, se assustam um pouco com o fato de haver tantas compreensões diferentes aqui. Certa vez, por exemplo, alguém me disse que imaginava que ser um Unitarista fosse não acreditar no dogma da Trindade, mas que quando conversou com algumas pessoas aqui, percebeu que muitos entre nós eram trinitaristas! Tive, então, de explicar àquela jornalista que o Unitarismo não se distingue de outras tradições cristãs por causa de sua compreensão de Deus ou de Cristo; o que historicamente nos distingue de outras tradições é nossa ênfase na liberdade de consciência! Essa liberdade de consciência, entretanto, se movimenta dentro da tradição cristã. Assim, podemos chegar a diferentes conclusões acerca da natureza de Deus, mas – em nossa tradição –, nossas conclusões serão articuladas numa linguagem cristã. Para nós, essa linguagem cristã inclui as Escrituras, a tradição da Igreja, a filosofia ocidental, as descobertas científicas, as artes modernas, e o Espírito que dá vida à busca humana por verdade.

Nesta comunidade, encontramos pessoas dos mais diferentes tipos, dos mais diferentes backgrounds sociais e teológicos. Aqui há não-trinitaristas e trinitaristas, teístas e não-teístas, crentes e agnósticos. Entre nós há aqueles que enxergam os elementos da Eucaristia que partilharemos em alguns minutos como apenas símbolos dum ofício realizado por Jesus há dois milênios atrás, e há outros que os veem como portadores da presença de Cristo entre nós. Alguns de nós falam em sacramentos, outros em ritos. Alguns estenderão suas mãos para partilhar do pão e do vinho, outros preferirão receber uma benção. Há até pessoas não-exclusivamente cristãs entre nós, já que alguns de nós mantemos laços com a tradição judaica – alargando nossa linguagem cristã para uma linguagem judaico-cristã!

Toda essa liberdade, que pode ser muito confusa para alguém que tem um primeiro contato com os Unitaristas, exige um grande senso de integridade intelectual de nossos membros! O Unitarismo não oferece respostas fáceis! Geralmente não falamos em milagres, em salvação, e em vida após a morte, com a mesma frequência ou o mesmo sentido que em outras comunidades. Daqui deste púlpito, geralmente não tratamos de temas dogmáticos, em grande parte, em respeito pelas diferenças de opinião entre nós. Quando um Ministro desta igreja fala sobre algo deste púlpito, ela ou ele tem a responsabilidade de lembrar-se da diversidade teológica entre nós, e falar num tom de respeito para com aqueles que são parte de nossa família, ao mesmo tempo em que é íntegra e íntegro a suas próprias convicções pessoais. E isso pode ser muito assustador para alguém que vem de outra tradição. Mas esse é o espírito desta comunidade!

Ser Ministro duma congregação tão diversa como esta nem sempre é a coisa mais fácil do mundo, mas é o desafio mais surpreendentemente maravilhoso que qualquer Ministro cristão – especialmente um Unitarista Anglo-Luterano como eu – pode experienciar. E, até onde posso perceber, é uma experiência surpreendentemente maravilhosa para a maioria daqueles que fazem esta pequena família. Espero poder encontrá-los em nossa próxima aula, e poder conversar com alguns de você mais de perto!

+Gibson

(Congregação Unitarista de Pernambuco, 11 de novembro de 2012)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Deus seja louvado!


Enviaram-me, esta noite, mais um daqueles e-mails irritantes que enchem minha caixa de spam. Não o li por querer; acidentalmente, ao selecioná-lo para ser deletado, abri-o. Tratava-se duma convocação para assinar um apoio a uma suposta ação do Ministério Público Federal (divulgado pela imprensa hoje) que pede a retirada da frase “Deus seja louvado” das cédulas de Real. O e-mail afirmava que essa era uma ação necessária para garantir a laicidade do Estado brasileiro.

Ora, vamos! O Estado brasileiro é laico – e eu, como membro duma minoria religiosa não-católica, sei disso –, mas não é um Estado ateu! A própria Constituição Federal reconhece isso, quando, em seu Preâmbulo, os membros da Assembleia Nacional Constituinte invocam a proteção de Deus para promulgá-la!

A referência a Deus nas cédulas de Real são a mais inclusiva afirmação dum importante aspecto da história cultural dessa nação, o fundamento metafísico de nossa cultura nacional, que – para a cultura brasileira – é anterior ao Estado, anterior e superior às leis humanas.

Os supostos ateus que sempre me enviam mensagens sobre “lutar por um Estado laico” estão, até onde entendo, equivocados em sua interpretação tanto do Estado laico (que não é o mesmo que Estado ateu!), quanto da suposta violação de direitos pelo “Deus seja louvado” nas células de Real.

O “Deus seja louvado” é mais a afirmação duma identidade cultural, que a afirmação duma fé específica. Esses movimentos, que tentam imitar discussões ocorridas nos últimos anos nos Estado Unidos e partes da Europa, sobre temas semelhantes, deveriam encontrar coisas reais com as quais se preocupar! Eu, com todo respeito, sinto-me mais ofendido por sua estupidez!

+Gibson