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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Mudança de Rota - Uma Confissão e Um Filme

Às vezes, gostaria de poder falar sobre minhas próprias experiências (aquelas mais pessoais), e de como elas transformaram-me na pessoa que sou hoje - e de como as experiências que agora tenho continuarão a me transformar futuramente. Acredito em mudanças, nada permanece para sempre, e isso inclui nossos pensamentos e, queira Deus!, nossas ações.

Tenho passado por certos desafios nos últimos anos que me têm ensinado, às vezes de maneira bem dolorosa, que eu não deveria trilhar mais um certo caminho, que eu deveria refazer minha rota. Tenho realmente tentado fazer o que posso para ajudar outras pessoas, especialmente aqueles jovens mais idealistas, a analisarem muito bem suas escolhas, e a não se dedicarem a causas que apresentam soluções muito fáceis; entretanto, nem sempre tenho sido tão bem sucedido quanto gostaria.

Reescrever uma rota de vida nem sempre é muito fácil, e nem sempre recebemos o apoio que necessitamos para tanto; mas minha própria experiência me tem mostrado que vale a pena ter a coragem de analisar nossas ideias, nossa visão do mundo, e então, fazer escolhas mais ponderadas.

Não sei o que ainda acontecerá como consequência de todas as escolhas que fiz no passado. Posso garantir que alguns dos resultados foram bem infelizes para mim, e não perderei meu tempo em tentar pôr a culpa em quem quer que seja. Sei, entretanto, que, de alguma forma, ainda posso criar meu futuro, e é com isso que me importo.

Um dia, falarei mais sobre isso. Só precisava compartilhar com vocês esses pensamentos.

Como sugestão, indico um filme (baseado no romance de Dan Willman, "Way of the Peaceful Warrior"): PODER ALÉM DA VIDA (EUA, 2006) - "Peaceful Warrior" - com Scott Mechlowicz, Nick Nolte e Amy Smart. Espero que o filme possa servir de inspiração a todos vocês!

Um grande abraço, e paz a todos!

+Gibson

sábado, 7 de novembro de 2009

Verdade Relativa?

Um desconhecido enviou-me uma mensagem que demonstrava uma certa preocupação com o que ele chamou de “relativização da verdade” - o fato de o cristianismo liberal não pregar uma “verdade absoluta”, válida para todos os tempos.


Por uma razão bem compreensível, o termo “relativo” soa muito negativo aos ouvidos de cristãos ditos “tradicionais” (devo dizer que esta forma de identificação soa extremamente simplista e ingênua, já que eu mesmo me vejo como um cristão tradicional – um cristão tradicional liberal, é verdade, mas tradicional assim mesmo! Seja como for, por falta de termo mais abrangente, utilizarei este mesmo.), tendo para alguns o mesmo sentido de “mentira”. Então quando falo em alguns ensinos ou tradições cristãs como sendo uma “verdade relativa” (ou mesmo uma “verdade metafórica”), alguns pensam que com isso queira dizer que são mentira pura e simples.


Uso “relativo” com o sentido de “relacionado”, ou seja, as declarações de crenças dos primeiros cristãos, contidos no Novo Testamento, nos credos, etc, não são um conjunto de verdades absolutas válidos para todos os tempos e lugares; são, antes de tudo, a maneira como aqueles primeiros cristãos deram voz às suas convicções a respeito das coisas que pareciam ser mais importantes para eles. São verdades relativas por estarem relacionadas ao seu tempo e circunstâncias. Algumas daquelas declarações, se entendidas como verdades absolutas e incontestáveis, não fazem o mínimo sentido para muitas pessoas ou sociedades hoje em dia, e seriam e são rejeitadas como algo primitivo. Entretanto, quando se olha para aquelas declarações como um produto humano, condicionado por seu tempo e pelas circunstâncias que cercavam seus autores, ao mesmo tempo em que se reconhece a “inspiração” divina lá, podemos compreender mais plenamente sua importância.


O desconforto que aquele correspondente desconhecido sente com a noção de “verdade relativa” ou “verdade metafórica” tem mais a ver com sua própria compreensão de “inspiração” – como demonstrado ao longo de sua mensagem. Para ele, as palavras da Bíblia são palavras inspiradas por Deus – em sua visão, Deus, de alguma forma, ditou as palavras aos autores dos textos bíblicos.


Para nós, cristãos liberais, entretanto, a inspiração se refere ao mover do Divino nas vidas dos autores dos textos bíblicos, e na resposta que essas pessoas e comunidades deram a esse mover divino. No primeiro século, e em todos os séculos subsequentes, a igreja deu sua resposta ao que sentia ser o mover de Deus entre eles; e hoje, da mesma maneira, nós cristãos liberais também sentimos que podemos dar nossa resposta àquilo que sentimos ser o movimento divino entre nós – como é o caso quando pensamos a respeito da posição das mulheres na igreja, na recepção de pessoas que antes eram rejeitadas por serem parte de um grupo estigmatizado, como gays e lésbicas, por exemplo.


Como indivíduo, faço escolhas quanto àquelas coisas que sinto serem verdades válidas para mim (à propósito, é isso que quero dizer quando digo que sou um cristão herege - “heresia”, em sua origem grega, quer dizer “escolha”; a partir do momento que faço escolhas teológicas, não aceitando imposições dogmáticas, torno-me um “herege”). Renuncio muitas das antigas crenças cristãs, por percebê-las como produto de uma época e circunstância específica – muitas delas estão na Bíblia, algumas outras estão nos credos e nas declarações de fé e confissões da igreja cristã. Para outras pessoas, ou grupos, essas declarações continuam válidas, e por isso mesmo, são vistas como verdades absolutas e inquestionáveis. Novamente, o que nos distingue é a compreensão distinta que damos a muitos termos, como “verdade”, “história”, “realidade”, “relativo”, “condicionado”, “temporário”, etc.


Nossa noção de verdade está sempre condicionada ao tempo e circunstâncias nas quais vivemos. A história humana, e aquilo que é parte dessa história, como a religião, por exemplo, é um produto humano, é uma fabricação humana. Há várias motivações para esse produto – no caso da religião, há aquilo que chamamos de “inspiração divina” (que pode significar uma quantidade quase infinita de diferentes coisas, dependendo de quem dê uma explicação) – mas nada jamais mudará o fato (nem mesmo as afirmações dogmáticas feitas por muitos devotos religiosos) de que nossas Escrituras, nossas tradições, nossas crenças, e até mesmo “nosso Deus” (isso é, a imagem que fazemos de Deus), não passam de construções humanas (construções que apontam para uma verdade maior, mas mesmo assim, construções!).

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Morte e Ressurreição


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Um dos temas que mais aparecem nas mensagens que recebo de meus interlocutores virtuais é a questão da “vida pós-mortal”. Por inúmeras razões, esse é um tema central na teologia dessas pessoas. Na verdade, esse tema – a vida pós-mortal e o que acreditar e/ou fazer para ser salvo – é uma das bases da teologia cristã dita tradicional e ortodoxa.

Como a maioria já sabe, ideias tão abstratas e dogmáticas como noções de “vida pós-mortal”, “céu”, “inferno”, “ressurreição”, e coisas semelhantes, não são interpretadas por mim como verdades factuais ou mesmo como elementos essenciais à minha fé (se entendidas de forma literal). Sempre prefiro enxergar essas ideias como verdades metafóricas – imagens que representam de forma acessível uma verdade maior que não pode ser esgotada pela linguagem verbal.

Por essa razão, crer que a vida consciente do “espírito” humano continuará após a morte física é um supérfluo para minha fé pessoal. Na verdade, até mesmo crer que haja espacialmente um outro componente que constitua minha personalidade e que não pode ser espacialmente confirmado, e que geralmente chamam de “espírito” ou “alma” - o verdadeiro “eu”, é um supérfluo em minha teologia pessoal. Com “supérfluo”, refiro-me a algo completamente irrelevante, algo que, se retirado, não altera muita coisa e não faz falta.

Eu, obviamente, compreendo as razões que levam as pessoas, mesmo em nosso tempo, a se preocuparem com temas como esse. Também compreendo plenamente porque esse mesmo tema se torna tão essencial para a teologia dominante no meio cristão. Teologicamente falando, nossas noções a respeito da natureza de Deus, de Cristo, do homem e de seu destino, se entrelaçam e são interdependentes, tornando a crença numa vida após a morte física e as exigências para se assegurar a “salvação” (que variam de grupo para grupo) um ponto essencial.

Resta-me reconhecer que essas noções estão bem enraizadas na tradição cristã. Tome o texto em I Coríntios 15:19 como exemplo. Lá o autor, discutindo a respeito da ressurreição, afirma que “se nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens”.

Eu não poderia discordar do autor daquele texto da Primeira Carta aos Coríntios. Jesus simboliza, para nós cristãos, o caminho da vida eterna – é por meio dele, seguindo seus passos, que encontramos Deus; e se encontramos Deus, e Deus é a vida, logo, a esperança que nos é oferecida por Jesus é a de uma outra vida após a vida que agora vivemos (uma vida que é alcançada percorrendo-se o caminho da morte e da ressurreição, o caminho metaforicamente percorrido pelo próprio Jesus).

Morte e ressurreição são elementos essenciais na teologia cristã. Não se pode entender plenamente a mensagem cristã sem citar essas duas importantes metáforas tão repetidas em nossa tradição. O caminho para Deus, como ensinado e exemplificado por Jesus, é o caminho da “morte” e da “ressurreição”. A morte do eu interior – que não pode e não deve ser confundida com uma repressão ao “eu” e aos seus desejos legítimos – e o renascimento para uma nova forma de ser e para uma nova identidade centrada no Divino. Esse caminho de morte e de ressurreição não é apenas ensinado pelo cristianismo. Todas as grandes tradições espirituais da humanidade falam a respeito desse processo de morrer espiritualmente antes de morrer fisicamente, e de ressurgir para uma nova vida. A beleza dessa verdade metafórica é obscurecida pela (in)compreensão dogmática literalista, que interpreta esse processo de morrer e ressurgir como algo factual, como algo físico e espacial. Ou seja, o foco em uma morte e uma ressurreição que aconteceriam fisicamente no futuro subtrai de nossas vidas a experiência de morrer para nós mesmos e de ressurgir para uma nova maneira de ser, ver, e viver a vida aqui e agora.

Morte e ressurreição tornam-se, assim, uma metáfora para um processo de profunda transformação pessoal. E essa metáfora está profundamente enraizada na tradição teológica e litúrgica cristã. O sacramento ou ritual do batismo, por exemplo, personifica esse processo, quando simboliza a morte do antigo eu e o nascimento de uma nova identidade, usando elementos e movimentos físicos.

Se pensarmos nas divisões presentes no mundo greco-romano e judaico do primeiro século de nossa era – as divisões nacionais, raciais, econômicas, sexuais, etc – e observarmos, por exemplo, a mensagem do autor da Carta aos Gálatas, alargaremos nossa visão de morte e ressurreição:

“De fato, vocês todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo.” (Gálatas 3:26-28)

Se nos “revestirmos de Cristo”, e pudermos afirmar como faz o autor (2:20) que Cristo vive em nós, então estaremos derrubando as paredes que nos separam, as paredes de discriminação que destroem esperanças e constroem o medo entre nós. Somos “filhos de Deus” quando reconhecemos que absolutamente todos o são, quando alargamos as entradas de nossos corações, quando escancaramos as portas para receber a absolutamente todos. E assim, nos revestindo de Cristo, ou seja, fazendo aquilo que nossa tradição ensina que Jesus ensinou por meio de suas palavras e ações, demonstramos nossa fé nele, e demonstramos que entendemos a sua mensagem e desejamos segui-la.

Na época na qual aquele texto foi escrito, aquele mundo social estava profundamente dividido entre livres e escravos, homens e mulheres, este ou aquele grupo nacional. Até certo ponto, essas mesmas divisões permanecem, e muitas vezes até se alargam. Em se tratando de morrer e ressuscitar hoje, o que poderia a comunidade cristã (a igreja) fazer?

Pessoalmente, creio que além das propostas em Gálatas, poderíamos adicionar ainda mais, e por isso mesmo reescrevo em meu coração aquele trecho:

“De fato, todos somos filhos de Deus em nossa própria natureza, pois ao nascermos, nos revestimos da presença divina. Não há absolutamente nenhuma diferença entre cristãos e não cristãos, entre ricos e pobres, entre os humanos das mais diferentes cores e origens, entre instruídos e não instruídos, entre homem e mulher, entre heterossexuais e homossexuais ou qualquer outra expressão emociono-sexual humana, entre crentes e descrentes, pois todos somos membros de uma grande família e temos nossa existência no mesmo Deus.” (Minha reconstrução de Gálatas 3:26-28)

Como morrer e ressuscitar representam, metaforicamente falando, um processo, creio ser necessário morrer e ressuscitar muitas vezes. Sempre haverá novas paredes a serem derrubadas para que possamos receber a Deus entre nós – já que toda vez que recebemos alguém, estamos, metaforicamente, recebendo o próprio Deus.

Hoje reconheço que não apenas a maneira como cuido de outros seres humanos reflete um processo de morte e ressurreição. A maneira como cuido deste planeta também deve ser fruto de um alargamento de visão desse processo. Aproveitar o tempo que tenho neste mundo para aprender e apreciar mais deve ser um dos frutos disso. Desfrutar a beleza e profundidade da vida deve ser um dos frutos disso. Enriquecer minha vida com os sons, sabores, movimentos, imagens, aromas, etc, da vida deve ser um dos frutos disso. E ajudar outras pessoas a fazerem o mesmo também deve ser um fruto desse alargamento de visão do processo de morrer e ressuscitar. Esse é o caminho que nos leva a Deus – independentemente da concepção individual que tenhamos a respeito de Deus e da espiritualidade.

+Gibson

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Identidade Cristã - Quem é cristão, afinal?


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Há alguns dias atrás conversava com um missionário “evangélico” que veio a uma atividade que realizo mensalmente com jovens de minha comunidade. Ele se interessou em saber a razão de pessoas como eu, cristãos liberais, permanecerem ligados ao cristianismo em vez de simplesmente abandoná-lo (ele parecia ver-me, assim como aos membros de minha comunidade de fé, como um “herege” - no sentido geralmente atribuído à palavra, não tendo compreendido o uso metafórico que faço da mesma em alguns de meus discursos - , então vi-me obrigado a explicar-lhe a diferença entre meu uso da palavra “herege” e o uso que os ditos cristãos tradicionais faziam da mesma).

Sua pergunta não me surpreendeu nem um pouco, já que ela apenas refletia a perspectiva simplista dominante em nossa sociedade, na qual a visão do cristianismo (seja católico ou protestante) é monolítica, ou seja, ser cristão é simplesmente crer numa lista específica de afirmações e ser parte de uma determinada comunidade religiosa, e estar submetido às regras impostas por tal comunidade.

Sua voz reproduzia simplesmente o discurso que já estou acostumado a ouvir de outros cristãos que afirmam que não sou digno de identificar-me como cristão por não crer nesta ou naquela doutrina apregoada por este ou aquele credo, este ou aquele texto bíblico, esta ou aquela confissão, este ou aquele consenso, esta ou aquela compreensão particular do que seja o cristianismo. Suas perguntas reproduziam a esquizofrenia dogmática dos evangelicais fundamentalistas e conservadores que apregoam que sou um “falso profeta” ou um “anticristo” por ensinar o que chamam de falsas doutrinas, e que serei punido com o “inferno” por “separar” pessoas de Deus - como se qualquer pessoa tivesse o poder de “separar pessoas de Deus” (parecem não conhecer o texto de Romanos 8:38-39 – um belíssimo e poético texto, à propósito!).

Essas pessoas, ou esses grupos de pessoas, abraçam uma visão bem diferente da identidade cristã, ou seja, do que é ser cristão, daquela abraçada por minha corrente teológica.

Sua compreensão da identidade cristã poderia ser comparada com um estereótipo do que seja ser um brasileiro: um amante de samba, que come feijoada ou churrasco no almoço de domingo depois de ir à praia, que bebe água-ardente, dorme numa rede, e que mal pode esperar pelo carnaval; alguém que tenha um sobrenome português, e que tenha o idioma português como língua materna, e que se enquadre num perfil “étnico” padrão; alguém semi-alfabetizado ou com um nível de instrução pouco elevado; alguém adepto do catolicismo, do evangelicalismo pentecostal, do espiritismo kardecista ou de alguma tradição afro-brasileira; um adepto de alguma corrente política dita “esquerdista”, etc. Se abraçarmos essa visão da identidade brasileira, o que faremos com aqueles, também brasileiros, que têm sobrenomes alemães, italianos, japoneses ou árabes, por exemplo, e que não tenham o português como seu idioma materno? O que faremos com os brasileiros que não gostam de samba, que são vegetarianos ou simplesmente não comam feijoada? Com aqueles que não celebram o carnaval e que nunca viram o mar na vida? E sobre aqueles que não são católico-romanos, evangélicos ou espíritas? Com aqueles que possuam um pós-doutorado? O que faremos com aqueles brasileiros que preferem vinho a água-ardente? E com aqueles que não votaram em Lula da Silva nas últimas eleições presidenciais? Serão eles acusados de não serem brasileiros por simplesmente não se enquadrarem num perfil pré-determinado? Serão eles acusados de traição nacional, sendo banidos da pátria?... É muito semelhante às afirmações de que se pode ser cristão apenas de uma forma; que para ser digno da identidade cristã tenhamos que nos encaixar dentro de certos limites culturais ou ideológicos, doutrinários ou dogmáticos.

A identidade cristã, ou seja, ser cristão, não decorre de apenas ser membro de uma comunidade ou de apenas crer em uma lista de doutrinas. A identidade cristã é construída a partir do sentido que socialmente damos à fé, e da constante revisão das tradições; ao mesmo tempo em que também é construída a partir daqueles aspectos da tradição que continuam a ser significativos e relevantes para a igreja cristã e para o indivíduo.

Muitos apostam na continuidade como sendo a base para a estabilidade da igreja cristã num mundo que se remodela a cada dia. Essas pessoas, ingenuamente, pensam que a fé cristã tem sido a mesma desde sua origem até hoje, e que continuará a mesma até “os fins dos tempos” (seja lá o que isso signifique!). Essa é uma visão deveras romântica e utópica da realidade, e ignora a maneira como a história humana é construída – sim, porque a história (e o cristianismo e todas as outras tradições religiosas, são parte da história humana) é uma construção humana e não um fato inato e determinado.

O cristianismo, se visto como um sistema de crenças e práticas, foi sendo construído no decorrer de séculos de história, e, na verdade, ainda se encontra neste constante processo de construção e revisão, à medida que novas perguntas surgem, que deparamo-nos com novos problemas que nunca tiveram de ser enfrentados nos primeiros séculos da história cristã. E o que divide os cristãos, por exemplo, nós liberais daqueles mais conservadores, não é muito a lista de crenças que vemos como sendo essencial, mas, antes de tudo, é a maneira como vemos a história e sua origem. Essa visão da história dirige nosso entendimento da Divindade, de nossas relações com outros humanos e com a vida em si, e, consequentemente, nossa visão do cristianismo e do que é ser cristão.

Como um cristão liberal, entendo o cristianismo como sendo basicamente uma construção humana, mesmo que uma construção humana inspirada pela Presença Eterna. O cristianismo, incluindo aí nossas Escrituras, rituais, sacramentos, tradições, etc, é nossa tentativa de construir uma resposta ao que ou quem entendemos ser Deus. É nossa tentativa de encontrar e formular respostas às grandes questões que nos cercam e nos movem. É nossa tentativa de, juntos, construirmos uma comunidade baseada naquelas fontes que nos inspiram e moldam. Assim sendo, sei que não pode haver uma única compreensão válida do que é ser cristão, apenas uma explicação válida da identidade cristã. Há uma ampla diversidade de opiniões e compreensões no cristianismo, e apesar de muitas dessas compreensões e opiniões me fazerem sentir muito desconfortável e, por vezes, me chocarem, não posso descrever seus defensores como mais ou menos cristãos que eu próprio ou outros, pois se o fizesse, estaria negando minha compreensão de como a história humana é criada, estaria negando o que conheço a respeito da história cristã e, consequentemente, estaria abandonando minha visão de mundo mais básica.

Como sempre, penso ser necessário afirmar que não tenho muito interesse por religião organizada, se o que se entende por isso for um conjunto certo e indiscutível de doutrinas. Considero o dogmatismo uma “esquizofrenia social” (em um sentido teológico para a expressão), e por essa razão, distingo fé de dogma. A fé parece-me suficientemente segura para lidar com quaisquer tipos de questões. A fé nunca é ameaçada por perguntas ou dúvidas. O dogma, ao contrário, é sempre ameaçado pelas perguntas e dúvidas porque é duro, é rígido, é petrificado, é vigiado e controlado, e quebra-se sob a luz do questionamento, e, portanto, merece ser ameaçado pelas perguntas e dúvidas.

Então, como resposta à pergunta daquele missionário, se ser cristão significa submeter-me a um sistema dogmático certo e indiscutível, onde não há espaço para dúvidas, para perguntas, para opiniões pessoais, então não quero ser contado como um cristão, pois não estou disposto a abraçar uma “esquizofrenia social”, não estou disposto a abandonar algo que considero ser parte integrante de minha identidade social: minha liberdade e integridade intelectuais.

Se, entretanto, ser cristão for compreendido como ser seguidor dos ensinamentos e exemplos de vida atribuídos à figura de Jesus de Nazaré, e ser membro da grande e diversa comunidade de seus discípulos cujas compreensões estão num permanente processo de reflexão, reconstrução, e, por que não?, reafirmação, então, sim, eu sou um cristão devoto e fiel.

Minha identidade cristã é moldada por minha maneira de ver a história, de entender a fé e tradição cristã, e por minhas ações, que, por sua vez, são moldadas e amparadas por minha maneira de crer e por minha maneira de interpretar a vida e minha relação com tudo o que é parte da vida. Outras pessoas compreenderão sua fé e o mundo ao seu redor de outra forma, e utilizarão outros instrumentos para ajudá-los nesse processo. As respostas encontradas por essas pessoas podem não ser muito adequadas para mim, mas elas não são mais ou menos importantes na vida dessas pessoas que as respostas que eu mesmo encontro são para mim, e é por essa razão que (mesmo discordando de e criticando essas ideias) sempre me disponho a apreciar o que essas pessoas têm a ensinar e oferecer de bom para o mundo. Temos (cristãos liberais e outros cristãos) muito mais em comum do que a maioria de nós consegue enxergar, e podemos aprender muitíssimo uns com os outros. É realmente uma pena que não possamos ver isso!

Seja qual for a opinião pessoal de meus interlocutores, e a minha própria, a verdade é que há muitas diferentes maneiras de ser cristão. O cristianismo, tendo a história e a extensão que tem, possui variedades das mais impressionantemente belas às mais horrivelmente repugnantes (em minha visão). Todas as pessoas que, da sua forma, encontram na grande Tradição Cristã o seu caminho, são cristãos para mim – e ponto final. Não me sentarei na cadeira de juiz para decidir a sinceridade ou correção das crenças de quem quer que seja, no que toca a serem cristãos ou não. E da mesma maneira, não permitirei que o julgamento de outras pessoas interfira na forma como enxergo a minha própria identidade religiosa. Eu sou um cristão, um cristão liberal.

Rev. Gibson da Costa