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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Os Portais do Unitarismo e a Religião Liberal

Tenho muitas vezes conversado com pessoas que se sentem desconfortáveis com o uso do adjetivo "liberal" que nós unitaristas fazemos em relação à nossa própria fé. Frequentemente, por causa disso, tenho tido que explicar o uso que fazemos desse adjetivo. Há inúmeras razões pelo desconforto que essas pessoas têm. Muitas vezes, se elas são religiosas, sua visão tende a ser mais conservadora, e por isso mesmo, o uso do adjetivo "liberal" soa-lhes como algo que desafia sua compreensão teológica. Quando se trata de pessoas mais politizadas, e na maioria das vezes essa classe de pessoas no Brasil tende a pender para a chamada "esquerda" (mesmo eu discordando dessa nomeclatura um tanto desatualizada e fora da realidade), a ideia de "religião liberal" desperta a insegurança com respeito à sua oposição às políticas ditas "liberais". Ou seja, os unitaristas sempre darão bons motivos às críticas, mesmo que elas nasçam apenas de nossa escolha vocabular.

Por outro lado, vejo o que ocorre com aqueles chamados de "novos unitaristas" - ou seja, pessoas que abraçaram uma visão influenciada pela maneira unitarista de ver a espiritualidade e a vida religiosa, mas que por inúmeras razões, não compreendem o que venha a ser o Unitarismo plenamente. Essas pessoas, na maioria das vezes, deixaram grupos cristãos em busca de algo que preenchesse suas necessidades religiosas ou sociais, e que ao mesmo tempo não lhes parecesse uma ditadura doutrinária. Essas pessoas têm a tendência de não reconhecer o Unitarismo como uma forma de Cristianismo, rejeitando todo o sistema unitarista, toda a nossa tradição religiosa, e abraçando uma compreensão do que seja "religião liberal" que entra em conflito com nossa compreensão teológica unitarista.

Há quatro portais pelos quais devem passar aqueles que desejam aprender a respeito da fé unitarista. Tradicionalmente esses portais têm sido chamados pelos unitaristas de O Portal Maravilhoso (ou Portal do Pensamento), O Portal Belo (ou Portal do Coração), o Portal do Dever (ou Portal da Ação), e o Portal da Lembrança.

O Portal do Pensamento

Esse talvez seja o que mais nos distingue de outros seres vivos. Os animais, costumamos dizer, possuem "instintos", que podem ser chamados de um tipo de razão, um exercício da mente. Essa "razão", entretanto, parece ser limitada, já que os animais não conseguem estudar a si mesmos, como nós humanos o fazemos (ao menos é isso que sabemos até hoje).

A entrada por esse Portal passa necessariamente pelo caminho da "curiosidade". Se não fôssemos curiosos não seríamos capazes de aprender nada. Desde o início a humanidade tem tido curiosidade a respeito do que ela tem visto. O sol, a lua, as estrelas, os trovões, os relâmpagos, o fogo, o vento, a água, etc - tudo isso estimulou a curiosidade dos primeiros de nós e tem estimulado nossa curiosidade até os dias atuais. Essa curiosidade tem feito a humanidade passar inúmeras vezes pelo Portal Maravilhoso, o Portal do Pensamento, e feito com que descubramos e aprendamos a respeito das coisas que nos cercam, a respeito de nosso planeta, sua história, seu clima, sua vida; a respeito do universo, das estrelas e planetas; a respeito da própria humanidade; mas também a respeito daquele Grande Mistério que chamamos de Deus, e que redescobrimos a cada novo dia de nossa história de uma forma diferente de como pensávamos anteriormente.

Aqueles que adentraram esse Portal são chamados por nós de os "buscadores da verdade" ou de "buscadores de Deus", pois quando adentramos o Portal do Pensamento, em busca da verdade, estamos na verdade em busca de Deus. Essa foi uma das maneiras pelas quais nossa fé foi encontrada, pelo poder do pensamento humano.

O Portal do Coração

Além do citado anteriormente há um outro Portal pelo qual passamos para chegarmos à compreensão de nossa fé. Esse é o Portal Belo, ou o Portal do Coração. Ele é Belo porque através dele chegamos às coisas belas que criamos: música, poesia, pinturas, filmes, e nossas próprias amizades. Nossos sentimentos são muito fortes, e muitas vezes nos levam longe.

Como acontece com o Portal do Pensamento, coisas boas e coisas ruins podem passar pelo Portal do Coração. Por essa razão devemos protegê-lo, selecionando aquilo que passa por ele.

Da mesma forma como a passagem pelo Portal do Pensamento levou a humanidade a buscar respostas para suas perguntas a respeito do mundo e do universo, a passagem pelo Portal do Coração levou a humanidade a buscar o sagrado. Isso fez com que a humanidade construísse templos, altares, e formas de adorar a Deus, de celebrar o sagrado. Os humanos não apenas tiveram curiosidade a respeito do sagrado, mas também encontraram em seus corações o desejo de orar e cantar salmos, de falar daquele Grande Mistério que originou a vida. Isso os primeiros humanos fizeram de maneira diferente da que nós unitaristas fazemos hoje, já que muito medo e superstição adentrava o Portal do Coração. Hoje, entretanto, vemos Deus de uma outra maneira; não mais como um ditador nos céus capaz de violência para favorecer um grupo de pessoas. Vemos Deus mais plenamente como um Amor capaz de conquistar nossas mentes e corações, e que nos leva a adentrar um outro Portal.

O Portal da Ação

Pensar e sentir nos ajuda a compreender Deus e o mundo, mas há uma outra coisa igualmente importante: o agir. Primeiro pensamos, depois sentimos, e por fim, agimos. Através desse Portal passam nobres ações, grandes exemplos, e transformadoras reformas. O caráter é moldado pela vontade sendo transformada em boas ações.

Jesus frequentemente falou a respeito do Portal da Ação: "Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no reino do céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai que está no céu" (Mateus 7:21). Ao cumprir nosso dever, pondo em ação aquilo que aprendemos e sentimos por meio dos Portais do Pensamento e do Coração, honramos a Deus, aquele Grande Mistério que não entendemos plenamente. A consciência se encontra neste Portal, assim como a boa-vontade, a obediência e o heroísmo. Tudo isso tem um objetivo: a construção de um reino - o reino de Deus.

É verdade que a religião é geralmente vista como uma crença, como uma oração, mas ela é também uma obra. Essa obra é tornar o mundo melhor. Se deixarmos de lado o Portal do Dever, o Portal da Ação, destruímos todo o restante.

"Venha o teu reino!" é um pensamento, e com ele se abre o Portal do Pensamento. "Venha o teu reino!" é ouvido por nossas mentes e anima nossos corações, e assim o Portal do Coração é aberto. "Venha o teu reino!" nos leva à ação, nos leva a fazer o nobre e o belo; e assim, é aberto o Portal da Ação.

O Portal da Lembrança

Se não pudéssemos nos lembrar de nada, não poderíamos pensar, sentir, ou agir. Por meio da lembrança podemos revisitar o passado e adicionar a ele. É assim que a história cresce e a humanidade se eleva. Hoje sabemos muito mais do que aqueles que viveram há centenas de anos atrás, porque nos lembramos do que eles sabiam e nos lembramos de tudo o que foi dito e feito no passado.

Passar pelo Portal da Lembrança é, então, essencial para a compreensão e continuação de nossa fé unitarista, nossa religião liberal.

É esse Portal que nos leva aos pensamentos de muitos homens sábios que pensaram e escreveram a respeito do que sentiam ser a verdade a respeito de Deus e de todas as coisas. Por meio deste Portal chegamos aos escritos de um homem sábio e bom que foi e é muito importante para a nossa fé unitarista. Esse homem foi James Freeman Clarke, um ministro unitarista muito amado e honrado. Ele foi o autor dos Cinco Pontos da Fé Unitarista, que ele disse ser o que "deveríamos aprender, lembrar, e amar":

A Paternidade de Deus;
A Irmandade dos Homens;
A Liderança de Jesus;
A Salvação Pelo Caráter;
O Progresso da Humanidade.

A Paternidade de Deus

As palavras que usamos nem sempre conseguem expressar da melhor maneira aquilo que sentimos e entendemos. Falar a respeito de Deus cria um problema para nós, já que em nossa língua só podemos falar a respeito de Deus em termos que nos parecem limitadores. Em português, a palavra Deus é um termo masculino. Falamos em Deus como sendo nosso Pai, embora não pensemos em Deus necessariamente como sendo uma pessoa e muito menos como sendo um homem.

O uso da palavra “Pai”, e aqui “Paternidade”, exprime apenas a tradição cristã de se referir a Deus como sendo uma figura paterna, ou materna. Exprime a crença de que nossa relação com o divino possa ser tão próxima como a relação humana entre pais e filhos. É uma figura poética muito forte que tem sido parte da tradição cristã desde o início de sua história e que, consequentemente, é também parte da tradição unitarista.

A Irmandade dos Homens

Por que os unitaristas creem na irmandade dos homens? Por duas razões básicas: Primeiro, se temos uma origem comum, origem da qual simbolicamente falamos como sendo Deus o Pai de todos os humanos, então todos os humanos são seus filhos e, consequentemente, nossos irmãos. A segunda razão é a de que irmandade dos homens significa justiça para todos, progresso para todos, e amor para com todos.

A crença na irmandade dos homens nos leva a trabalhar para que todos nós, todos os seres humanos, vivam em liberdade. Essa crença nos leva a trabalhar para que as leis possam proteger todas as pessoas, independentemente das diferenças que existam entre nós. Cremos na igualdade de todas as pessoas diante das leis, mesmo sabendo que somos individualmente muito diferentes nos mais variados aspectos.

Cremos que todas as pessoas devam ser protegidas e honradas; e que todas as pessoas têm valor e dignidade inatas à sua própria natureza. Por esta razão, nós unitaristas honramos, respeitamos e recebemos pessoas das mais variadas cores, etnias, culturas, classes, orientações emociono-sexuais, etc. Trabalhamos para que haja paz e justiça entre toda a humanidade, e entre ela e a vida em nosso planeta.

A Liderança de Jesus

Nós unitaristas sempre reconhecemos que pessoas de outras religiões possuem bons modelos a serem honrados. Os muçulmanos, os hindus, os budistas, os judeus, e pessoas das mais variadas tradições religiosas, seguem os ensinos de mestres religiosos que ensinaram muitas coisas semelhantes aos ensinos de Jesus.

Os cristãos, muitas vezes, passaram uma imagem errônea do cristianismo aos povos de outras religiões. Fosse pela tentativa de converter outros povos por meio da guerra, fosse por meio de conquistas imperialistas, pelo desrespeito às crenças e tradições de outros povos, deram uma imagem errônea do que fosse a mensagem de Jesus.

Nós unitaristas cremos na liderança de Jesus pois cremos que os ensinos que lhes foram atribuídos são capazes de nos transformar como seres humanos e de nos aproximar do divino. Cremos que Jesus mostra um exemplo inspirador; que seus ensinos são verdadeiros; que o espírito de sua mensagem é divino; que seus preceitos nos levam ao caminho da paz, nos guiando por um caminho pelo qual podemos caminhar em segurança.

Nossa crença na liderança de Jesus não se baseia no que pensamos doutrinariamente a respeito de Jesus. Não se baseia no que pensamos a respeito de sua natureza, ou outra questão doutrinária qualquer. Podemos diferir em nossas compreensões e assim mesmo termos todos fé em Jesus, o líder. Nossa fé depende de nossa lealdade e amor para com o espírito dos ensinamentos desse Grande Exemplo.

A Salvação Pelo Caráter

Como ocorre com a palavra “Deus”, a palavra “salvação” pode parecer confusa para muitas pessoas por ela possuir muitos sentidos e ênfases diferentes. Para algumas pessoas salvação significa escapar de um Deus furioso; para outras pessoas, uma dependência na bondade de outrém; para outros, uma profissão de fé; para outros, sacrifícios e formas de adoração; para outros, a aceitação de uma teologia.

Eu não tenho nenhuma intenção de dar uma definição de Deus ou salvação do ponto de vista unitarista, já que não há apenas uma opinião entre nós. De modo geral tendemos a ver salvação como algo a ocorrer nesta vida, e não numa suposta vida após a morte. Vemos a salvação como algo pessoal e social. Como algo divino e também humano. Salvação significa se tornar inteiro, completo, e curado. A salvação está na vida da comunidade. A salvação é paz e justiça dentro da comunidade e além da comunidade. A salvação é a paz interior que o indivíduo conhece por viver uma vida íntegra.

Vemos a salvação como ser resgatado daquilo que é mal e como obediência ao certo, como amor ao bem e hostilidade para com o mal. Cremos que a salvação venha com a ajuda divina, de muitas maneiras, mas principalmente por meio da liderança de Jesus, ou seja, agindo-se da maneira como prescreve o ensino que lhe foi atribuído. Nossos próprios esforços, unidos à ajuda divina, fazem a salvação, moldam o caráter, tornam a alma vitoriosa na vida e na morte.

E o que é o caráter? É o resultado pleno de nossos pensamentos e nossas ações. É o que realmente somos, e não simplesmente o que dizemos que somos, ou o que dizemos que acreditamos.

É assim que cremos que alcançamos a salvação. Não somos salvos pelo que dizemos acreditar, ou pelas doutrinas que abraçamos. Somos salvos pelo que deixamos passar pelos Portais do Pensamento, do Coração e da Ação. Pensamos, aprendemos, sentimos, deixamos que nosso aprendizado e nossas emoções modelem nossas ações, fazendo aquilo que nossa fé nos ensina, e assim alcançamos aquele estado de salvação diariamente. E como a salvação é algo individual e coletivo, alcançamos o shalom, aquele estado de paz e justiça, trazendo outros conosco. Não é possível fazer essa jornada sozinho.

Na realidade pouco importa o que entendemos ser a salvação, se ela é algo referente a esta vida ou a uma vida futura. O que importa é o caminho que trilhamos em nosso aprendizado e na modelação de nossas ações, de nosso caráter.

A salvação pelo caráter não é algo fácil. Somos admoestados a não confiarmos apenas nas “obras”. Somos obrigados a olhar para além de nós mesmos. Nossas vidas devem ser uma combinação de fé e obras: “Pelos seus frutos os conhecereis”.

Caráter significa realidade; apóia a sinceridade; representa a consciência; tem profundas raízes na fé; e flui para um ideal.

Por salvação pelo caráter queremos dizer que paz e alegria verdadeiras só podem vir quando fazemos o certo, esquecemos de nós mesmos, e nos aperfeiçoamos cada vez mais.

O Progresso da Humanidade

O que significa “progresso”? Significa que podemos esperar conhecer mais. Muitas coisas que parecem misteriosas se tornarão claras. Há algo maior do que seguir adiante, aprendendo, melhorando, cada vez mais?

O nosso mais importante dever é estarmos prontos para viver, diariamente. Muitas pessoas se preocupam muito com a morte e com o que acontece após a mesma, principalmente por ela parecer tão estranha e solene, mas se vivermos nossas vidas com nobreza nosso encontro com a morte será triunfante.

Viver com nobreza significa aproveitar nossa vida na terra da melhor e mais responsável maneira possível, seguindo os melhores exemplos, fazendo o bem, e tornando este mundo um lugar melhor para todos nós. E eu posso garantir que todos nós podemos fazer isso, independentemente de nossas próprias limitações. Devemos dar ouvidos à nossa consciência e obedecer a verdade como nós a entendemos.

Nós unitaristas cremos que valor e dignidade sejam características inalienáveis do ser humano. Talvez seja difícil entender isso quando olhamos para o estado da humanidade, e todo o mal que temos produzido contra este planeta e sua vida, uns contra os outros, e contra nós mesmos, mas a crença no valor e dignidade humanas significa que cremos que os humanos podem se transformar, podem aprender, podem crescer. Significa que não cremos que os humanos em si mesmos sejam seres “caídos”, “pecadores” por natureza, incapazes de se erguerem a níveis maiores. Significa que cremos exatamento no contrário disso. Cremos que o homem possa progredir rumo a Deus, nossa origem. Não há um fim para esse progresso. Temos a esperança de nos tornarmos mais sábios e melhores enquanto vivermos neste mundo; e muitos de nós também têm a esperança de encontrarmos novas oportunidades de crescimento numa próxima etapa de nossa existência.

Religião Liberal

É assim que chegamos à compreensão unitarista do que seja “religião liberal”. Se todas as pessoas aceitassem a fé unitarista, isso não significaria necessariamente que todas elas pensariam da mesma forma. Nossa fé unitarista permite variadas aplicações e desdobramentos.

Devemos sempre lembrar de duas palavras e do que elas significam para a religião: RAZÃO e REVERÊNCIA.

A razão nos mostra a “verdade”, e a reverência é o amor e a admiração que temos pela verdade. As duas trabalham juntas, já que a razão nos dá a “verdade” e a reverência nos impele a sermos obedientes à verdade que conhecemos.

Nós unitaristas sempre nos distinguimos de outros grupos religiosos por não vermos a razão como sendo algo oposto à fé. Na verdade, cremos que sem razão não pode haver fé, e que a fé sem razão não passa de superstição. Por outro lado, em se tratando de religião, também pensamos que a razão sem a fé não passa de algo pela metade.

E, afinal de contas, o que é “religião liberal” para os unitaristas? Tradicionalmente temos usado quatro testes para identificar a “religião liberal”:

1 - Liberdade da razão e liberdade de consciência;
2 – Comunhão (=comunidade), o espírito;
3 – Serviço, o alvo;
4 – Caráter, o teste.

Ou seja, a religião liberal nasce onde há liberdade de consciência para o uso livre da razão, onde os indivíduos podem discordar, duvidar, pensar, questionar, responder, aceitar ou rejeitar. Essa liberdade só pode ser real onde haja um espírito de comunidade, onde haja uma comunhão real entre os indivíduos, onde todos cresçam juntos, mesmo que não pensem exatamente da mesma maneira. Essa comunhão de indivíduos que têm a liberdade para pensarem de maneira diferente são convencidos de que sua fé só tem valor se posta em prática para transformar o mundo do qual são parte, então o serviço aos demais é seu objetivo principal. E a avaliação dessa religião é feita pelos frutos que produz nos indivíduos, ou seja o caráter individual, os pensamentos e ações do indivíduo, é que são o teste final dessa religião e o que decide se tal religião é “liberal” ou não.