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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Fé e Ortopraxia

Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta.” (Tiago 2:17)

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição... (Tiago 1:27)

Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.” (Miqueias 6:8)



Tenho uma grande antipatia pela palavra “religião”. A razão é porque, para grande parte das pessoas, religião é sinônimo de “dogma”. Para essas pessoas, ter uma religião – especialmente quando se trata do cristianismo – é abraçar definições dogmáticas a respeito da humanidade, de Deus, de Jesus, da Bíblia, do certo e do errado, do destino do universo, etc.
Prefiro usar a palavra “fé” em vez de religião. Isso porque faço questão de distinguir fé de dogma. Diferentemente do dogma, a fé nunca é ameaçada pela dúvida e pelas perguntas difíceis que podemos fazer. Na verdade, a fé não busca explicações definitivas e imutáveis da realidade, ela leva a um constante processo de reavaliação e reconstrução de significados. O dogma, ao contrário, é sempre ameaçado pela dúvida e pelas perguntas difíceis e honestas, porque ele é rígido, é fossilizado, é petrificado, é ossificado, é congelado e quebra sob a luz do pensamento livre – e por essa mesma razão, merece ser ameaçado pela dúvida.

O dogma é uma verdade absoluta, que não pode e, na visão daqueles que a mantêm, não deve ser questionada. A fé, por outro lado, é um elo relacional bem mais amplo que nos faz enxergar nossa tradição religiosa (ou nossa tradição de fé, como eu prefiro dizer) – o cristianismo – não como uma lista de crenças às quais devemos subscrever, mas como um caminho que devemos percorrer. Não podemos esquecer que esse é justamente um dos primeiros nomes que recebeu o “cristianismo”: o Caminho (Atos 19:23). [Obviamente, utilizo "dogma" aqui com um sentido "leigo" apenas como provocação. Este não é o sentido teológico do termo.]

Quando critico o dogma, não estou necessariamente negando a importância de crenças ou declarações teológicas. Mesmo cristãos liberais como eu, reconhecem a importância da fé entendida como “assensus”, ou seja, como “crença”. E é justamente a minha crença religiosa, o meu entendimento teológico, o meu “assensus”, que me faz abominar o dogma – que me faz abominar a ideia, que está inerentemente entrelaçada ao dogmatismo religioso, de que o Deus celebrado pelos cristãos seja tão mesquinho, tão pequeno, tão intransigente, tão infantil, tão intolerante, que se sinta ameaçado pelos questionamentos de quem quer que seja, e que afaste de si aquelas pessoas que pensem diferentemente daqueles antigos que escreveram os credos da igreja, por exemplo. Obviamente, apenas pessoas que compreendem Deus como sendo um “ser pessoal” poderiam pensar assim – o que não é exatamente o meu caso.

A fidelidade, a confiança, a visão, e a crença, que constituem os quatro sentidos básicos da ideia de “fé” (na interpretação de Marcus Borg), devem nos mover à “prática correta” - que eu chamo de “ortopraxia” e que elevo acima da tradicional “ortodoxia”, a “crença correta”.

Se podemos, por meio do senso comum, ser levados a pensar que é a crença correta que nos leva à prática correta, a história cristã nos mostra claramente que esse não é o caso – pelo menos se entendermos “crença correta” como sendo a “ortodoxia” defendida pelas maiores comunidades cristãs.

O próprio relato dos Evangelhos a respeito das palavras e ações atribuídos a Jesus nos indicam o que deveria constituir a crença e práticas corretas – logo, a fé (ou se preferir, a religião) correta. Um exemplo encontra-se em Mateus 25:31-46. Lá, descrevendo uma imagem metafórica do “juízo final”, Jesus não cita nenhuma questão de “crença” certa ou errado como sendo a razão para o veredito recebido pelos povos da terra. Pelo contrário. É o tratamento dado aos famintos, aos sedentos, aos estrangeiros, aos desnudos, aos doentes e aos encarcerados que serve de base para o julgamento.

Não poderia ser diferente. Jesus e seus primeiros seguidores eram judeus. E na tradição hebraica, crença e ações são inseparáveis. Na verdade, o “assensus” (assentimento, aceitação, crença) intelectual, como exigida na tradição cristã, era desconhecida como uma exigência entre os hebreus naquela época. A fé hebraica era manifesta nas ações do dia a dia, e não em declarações dogmáticas a respeito de pormenores teológicos.

Pode-se acompanhar esse espírito de “ortopraxia” ao longo de toda a Bíblia, onde o ouvinte ou leitor é convidado a pôr sua fé em prática, e é repetidamente lembrado que a fé, quando não acompanhada de ações, é morta (para desespero daqueles adeptos do “sola fides” que enxergam o “fides” apenas como sinônimo de “assensus”).

Como um seguidor de Jesus, como um cristão, sou desafiado diariamente a abraçar a prática correta – a ortopraxia. Com isso não quero dizer que eu conheço o (único) caminho correto e outras pessoas não. A ortopraxia – a prática correta – à qual me refiro consiste no espírito que deve guiar meu pensamento e minhas ações, espírito esse que encontro nos ensinamentos e exemplos atribuídos a Jesus, espírito presente na tradição cristã, e também presente em outras tradições de fé e nas palavras e ações de outras figuras religiosas.

Foi esse espírito da prática correta que já me fez alterar o percurso muitas vezes. Já me fez enxergar o quanto estava errado. Já me fez ver que muitas vezes contribuí com um sistema de dominação injusta; que muitas vezes já deixei de valorizar o que realmente importava, supervalorizando o que era secundário; que muitas vezes já doei tempo e talentos – mesmo sem ter plena compreensão disso – a uma causa que não salvava o mundo, mas apenas maximizava a violência ideológica e suas consequências.

Infelizmente, continuo e certamente continuarei a cometer erros de julgamento e a errar em minhas ações. Mas espero que minha “fé” (=assensus, fiducia, fidelitas, visio) também continue a me mostrar o caminho, continue a me apontar os erros que cometo, e continue a ser minha motivação para mudanças.
Certamente não represento o que a maioria esperaria de um cristão. Não interpreto a Bíblia de forma literal; não acredito que Jesus tenha morrido para pagar pelos pecados de ninguém, nem que seja a segunda pessoa de um Deus trino – se isso for entendido de maneira factual. Na verdade, em minha visão, mesmo se Jesus sequer tivesse existido factualmente, isso não faria diferença. O que realmente importa é seu espírito, que está vivo naqueles relatos a seu respeito nos evangelhos, e o espírito que cerca a tradição cristã. Esse espírito me motiva a amar e querer transformar o mundo ao meu redor. É o espírito que motiva a fé que me faz percorrer o Caminho.


+Gibson da Costa


NOTA: Uso a palavra ortopraxia como um trocadilho com a palavra ortodoxia. O termo, como o usamos em teologia, é, na verdade, ortopráxis, que se refere à prática correta, da mesma forma como o termo ortodoxia se refere à crença correta. Meus paroquianos, amigos e alunos estão acostumados a esse meu aportuguesamento forçado do termo ortopráxis (que julgo soar um tanto pretenciosamente incompreensível para a maioria das pessoas).

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Mudança de Rota - Uma Confissão e Um Filme

Às vezes, gostaria de poder falar sobre minhas próprias experiências (aquelas mais pessoais), e de como elas transformaram-me na pessoa que sou hoje - e de como as experiências que agora tenho continuarão a me transformar futuramente. Acredito em mudanças, nada permanece para sempre, e isso inclui nossos pensamentos e, queira Deus!, nossas ações.

Tenho passado por certos desafios nos últimos anos que me têm ensinado, às vezes de maneira bem dolorosa, que eu não deveria trilhar mais um certo caminho, que eu deveria refazer minha rota. Tenho realmente tentado fazer o que posso para ajudar outras pessoas, especialmente aqueles jovens mais idealistas, a analisarem muito bem suas escolhas, e a não se dedicarem a causas que apresentam soluções muito fáceis; entretanto, nem sempre tenho sido tão bem sucedido quanto gostaria.

Reescrever uma rota de vida nem sempre é muito fácil, e nem sempre recebemos o apoio que necessitamos para tanto; mas minha própria experiência me tem mostrado que vale a pena ter a coragem de analisar nossas ideias, nossa visão do mundo, e então, fazer escolhas mais ponderadas.

Não sei o que ainda acontecerá como consequência de todas as escolhas que fiz no passado. Posso garantir que alguns dos resultados foram bem infelizes para mim, e não perderei meu tempo em tentar pôr a culpa em quem quer que seja. Sei, entretanto, que, de alguma forma, ainda posso criar meu futuro, e é com isso que me importo.

Um dia, falarei mais sobre isso. Só precisava compartilhar com vocês esses pensamentos.

Como sugestão, indico um filme (baseado no romance de Dan Willman, "Way of the Peaceful Warrior"): PODER ALÉM DA VIDA (EUA, 2006) - "Peaceful Warrior" - com Scott Mechlowicz, Nick Nolte e Amy Smart. Espero que o filme possa servir de inspiração a todos vocês!

Um grande abraço, e paz a todos!

+Gibson

sábado, 7 de novembro de 2009

Verdade Relativa?

Um desconhecido enviou-me uma mensagem que demonstrava uma certa preocupação com o que ele chamou de “relativização da verdade” - o fato de o cristianismo liberal não pregar uma “verdade absoluta”, válida para todos os tempos.


Por uma razão bem compreensível, o termo “relativo” soa muito negativo aos ouvidos de cristãos ditos “tradicionais” (devo dizer que esta forma de identificação soa extremamente simplista e ingênua, já que eu mesmo me vejo como um cristão tradicional – um cristão tradicional liberal, é verdade, mas tradicional assim mesmo! Seja como for, por falta de termo mais abrangente, utilizarei este mesmo.), tendo para alguns o mesmo sentido de “mentira”. Então quando falo em alguns ensinos ou tradições cristãs como sendo uma “verdade relativa” (ou mesmo uma “verdade metafórica”), alguns pensam que com isso queira dizer que são mentira pura e simples.


Uso “relativo” com o sentido de “relacionado”, ou seja, as declarações de crenças dos primeiros cristãos, contidos no Novo Testamento, nos credos, etc, não são um conjunto de verdades absolutas válidos para todos os tempos e lugares; são, antes de tudo, a maneira como aqueles primeiros cristãos deram voz às suas convicções a respeito das coisas que pareciam ser mais importantes para eles. São verdades relativas por estarem relacionadas ao seu tempo e circunstâncias. Algumas daquelas declarações, se entendidas como verdades absolutas e incontestáveis, não fazem o mínimo sentido para muitas pessoas ou sociedades hoje em dia, e seriam e são rejeitadas como algo primitivo. Entretanto, quando se olha para aquelas declarações como um produto humano, condicionado por seu tempo e pelas circunstâncias que cercavam seus autores, ao mesmo tempo em que se reconhece a “inspiração” divina lá, podemos compreender mais plenamente sua importância.


O desconforto que aquele correspondente desconhecido sente com a noção de “verdade relativa” ou “verdade metafórica” tem mais a ver com sua própria compreensão de “inspiração” – como demonstrado ao longo de sua mensagem. Para ele, as palavras da Bíblia são palavras inspiradas por Deus – em sua visão, Deus, de alguma forma, ditou as palavras aos autores dos textos bíblicos.


Para nós, cristãos liberais, entretanto, a inspiração se refere ao mover do Divino nas vidas dos autores dos textos bíblicos, e na resposta que essas pessoas e comunidades deram a esse mover divino. No primeiro século, e em todos os séculos subsequentes, a igreja deu sua resposta ao que sentia ser o mover de Deus entre eles; e hoje, da mesma maneira, nós cristãos liberais também sentimos que podemos dar nossa resposta àquilo que sentimos ser o movimento divino entre nós – como é o caso quando pensamos a respeito da posição das mulheres na igreja, na recepção de pessoas que antes eram rejeitadas por serem parte de um grupo estigmatizado, como gays e lésbicas, por exemplo.


Como indivíduo, faço escolhas quanto àquelas coisas que sinto serem verdades válidas para mim (à propósito, é isso que quero dizer quando digo que sou um cristão herege - “heresia”, em sua origem grega, quer dizer “escolha”; a partir do momento que faço escolhas teológicas, não aceitando imposições dogmáticas, torno-me um “herege”). Renuncio muitas das antigas crenças cristãs, por percebê-las como produto de uma época e circunstância específica – muitas delas estão na Bíblia, algumas outras estão nos credos e nas declarações de fé e confissões da igreja cristã. Para outras pessoas, ou grupos, essas declarações continuam válidas, e por isso mesmo, são vistas como verdades absolutas e inquestionáveis. Novamente, o que nos distingue é a compreensão distinta que damos a muitos termos, como “verdade”, “história”, “realidade”, “relativo”, “condicionado”, “temporário”, etc.


Nossa noção de verdade está sempre condicionada ao tempo e circunstâncias nas quais vivemos. A história humana, e aquilo que é parte dessa história, como a religião, por exemplo, é um produto humano, é uma fabricação humana. Há várias motivações para esse produto – no caso da religião, há aquilo que chamamos de “inspiração divina” (que pode significar uma quantidade quase infinita de diferentes coisas, dependendo de quem dê uma explicação) – mas nada jamais mudará o fato (nem mesmo as afirmações dogmáticas feitas por muitos devotos religiosos) de que nossas Escrituras, nossas tradições, nossas crenças, e até mesmo “nosso Deus” (isso é, a imagem que fazemos de Deus), não passam de construções humanas (construções que apontam para uma verdade maior, mas mesmo assim, construções!).

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Morte e Ressurreição


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Um dos temas que mais aparecem nas mensagens que recebo de meus interlocutores virtuais é a questão da “vida pós-mortal”. Por inúmeras razões, esse é um tema central na teologia dessas pessoas. Na verdade, esse tema – a vida pós-mortal e o que acreditar e/ou fazer para ser salvo – é uma das bases da teologia cristã dita tradicional e ortodoxa.

Como a maioria já sabe, ideias tão abstratas e dogmáticas como noções de “vida pós-mortal”, “céu”, “inferno”, “ressurreição”, e coisas semelhantes, não são interpretadas por mim como verdades factuais ou mesmo como elementos essenciais à minha fé (se entendidas de forma literal). Sempre prefiro enxergar essas ideias como verdades metafóricas – imagens que representam de forma acessível uma verdade maior que não pode ser esgotada pela linguagem verbal.

Por essa razão, crer que a vida consciente do “espírito” humano continuará após a morte física é um supérfluo para minha fé pessoal. Na verdade, até mesmo crer que haja espacialmente um outro componente que constitua minha personalidade e que não pode ser espacialmente confirmado, e que geralmente chamam de “espírito” ou “alma” - o verdadeiro “eu”, é um supérfluo em minha teologia pessoal. Com “supérfluo”, refiro-me a algo completamente irrelevante, algo que, se retirado, não altera muita coisa e não faz falta.

Eu, obviamente, compreendo as razões que levam as pessoas, mesmo em nosso tempo, a se preocuparem com temas como esse. Também compreendo plenamente porque esse mesmo tema se torna tão essencial para a teologia dominante no meio cristão. Teologicamente falando, nossas noções a respeito da natureza de Deus, de Cristo, do homem e de seu destino, se entrelaçam e são interdependentes, tornando a crença numa vida após a morte física e as exigências para se assegurar a “salvação” (que variam de grupo para grupo) um ponto essencial.

Resta-me reconhecer que essas noções estão bem enraizadas na tradição cristã. Tome o texto em I Coríntios 15:19 como exemplo. Lá o autor, discutindo a respeito da ressurreição, afirma que “se nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens”.

Eu não poderia discordar do autor daquele texto da Primeira Carta aos Coríntios. Jesus simboliza, para nós cristãos, o caminho da vida eterna – é por meio dele, seguindo seus passos, que encontramos Deus; e se encontramos Deus, e Deus é a vida, logo, a esperança que nos é oferecida por Jesus é a de uma outra vida após a vida que agora vivemos (uma vida que é alcançada percorrendo-se o caminho da morte e da ressurreição, o caminho metaforicamente percorrido pelo próprio Jesus).

Morte e ressurreição são elementos essenciais na teologia cristã. Não se pode entender plenamente a mensagem cristã sem citar essas duas importantes metáforas tão repetidas em nossa tradição. O caminho para Deus, como ensinado e exemplificado por Jesus, é o caminho da “morte” e da “ressurreição”. A morte do eu interior – que não pode e não deve ser confundida com uma repressão ao “eu” e aos seus desejos legítimos – e o renascimento para uma nova forma de ser e para uma nova identidade centrada no Divino. Esse caminho de morte e de ressurreição não é apenas ensinado pelo cristianismo. Todas as grandes tradições espirituais da humanidade falam a respeito desse processo de morrer espiritualmente antes de morrer fisicamente, e de ressurgir para uma nova vida. A beleza dessa verdade metafórica é obscurecida pela (in)compreensão dogmática literalista, que interpreta esse processo de morrer e ressurgir como algo factual, como algo físico e espacial. Ou seja, o foco em uma morte e uma ressurreição que aconteceriam fisicamente no futuro subtrai de nossas vidas a experiência de morrer para nós mesmos e de ressurgir para uma nova maneira de ser, ver, e viver a vida aqui e agora.

Morte e ressurreição tornam-se, assim, uma metáfora para um processo de profunda transformação pessoal. E essa metáfora está profundamente enraizada na tradição teológica e litúrgica cristã. O sacramento ou ritual do batismo, por exemplo, personifica esse processo, quando simboliza a morte do antigo eu e o nascimento de uma nova identidade, usando elementos e movimentos físicos.

Se pensarmos nas divisões presentes no mundo greco-romano e judaico do primeiro século de nossa era – as divisões nacionais, raciais, econômicas, sexuais, etc – e observarmos, por exemplo, a mensagem do autor da Carta aos Gálatas, alargaremos nossa visão de morte e ressurreição:

“De fato, vocês todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vocês, que foram batizados em Cristo, se revestiram de Cristo. Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo.” (Gálatas 3:26-28)

Se nos “revestirmos de Cristo”, e pudermos afirmar como faz o autor (2:20) que Cristo vive em nós, então estaremos derrubando as paredes que nos separam, as paredes de discriminação que destroem esperanças e constroem o medo entre nós. Somos “filhos de Deus” quando reconhecemos que absolutamente todos o são, quando alargamos as entradas de nossos corações, quando escancaramos as portas para receber a absolutamente todos. E assim, nos revestindo de Cristo, ou seja, fazendo aquilo que nossa tradição ensina que Jesus ensinou por meio de suas palavras e ações, demonstramos nossa fé nele, e demonstramos que entendemos a sua mensagem e desejamos segui-la.

Na época na qual aquele texto foi escrito, aquele mundo social estava profundamente dividido entre livres e escravos, homens e mulheres, este ou aquele grupo nacional. Até certo ponto, essas mesmas divisões permanecem, e muitas vezes até se alargam. Em se tratando de morrer e ressuscitar hoje, o que poderia a comunidade cristã (a igreja) fazer?

Pessoalmente, creio que além das propostas em Gálatas, poderíamos adicionar ainda mais, e por isso mesmo reescrevo em meu coração aquele trecho:

“De fato, todos somos filhos de Deus em nossa própria natureza, pois ao nascermos, nos revestimos da presença divina. Não há absolutamente nenhuma diferença entre cristãos e não cristãos, entre ricos e pobres, entre os humanos das mais diferentes cores e origens, entre instruídos e não instruídos, entre homem e mulher, entre heterossexuais e homossexuais ou qualquer outra expressão emociono-sexual humana, entre crentes e descrentes, pois todos somos membros de uma grande família e temos nossa existência no mesmo Deus.” (Minha reconstrução de Gálatas 3:26-28)

Como morrer e ressuscitar representam, metaforicamente falando, um processo, creio ser necessário morrer e ressuscitar muitas vezes. Sempre haverá novas paredes a serem derrubadas para que possamos receber a Deus entre nós – já que toda vez que recebemos alguém, estamos, metaforicamente, recebendo o próprio Deus.

Hoje reconheço que não apenas a maneira como cuido de outros seres humanos reflete um processo de morte e ressurreição. A maneira como cuido deste planeta também deve ser fruto de um alargamento de visão desse processo. Aproveitar o tempo que tenho neste mundo para aprender e apreciar mais deve ser um dos frutos disso. Desfrutar a beleza e profundidade da vida deve ser um dos frutos disso. Enriquecer minha vida com os sons, sabores, movimentos, imagens, aromas, etc, da vida deve ser um dos frutos disso. E ajudar outras pessoas a fazerem o mesmo também deve ser um fruto desse alargamento de visão do processo de morrer e ressuscitar. Esse é o caminho que nos leva a Deus – independentemente da concepção individual que tenhamos a respeito de Deus e da espiritualidade.

+Gibson

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Identidade Cristã - Quem é cristão, afinal?


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Há alguns dias atrás conversava com um missionário “evangélico” que veio a uma atividade que realizo mensalmente com jovens de minha comunidade. Ele se interessou em saber a razão de pessoas como eu, cristãos liberais, permanecerem ligados ao cristianismo em vez de simplesmente abandoná-lo (ele parecia ver-me, assim como aos membros de minha comunidade de fé, como um “herege” - no sentido geralmente atribuído à palavra, não tendo compreendido o uso metafórico que faço da mesma em alguns de meus discursos - , então vi-me obrigado a explicar-lhe a diferença entre meu uso da palavra “herege” e o uso que os ditos cristãos tradicionais faziam da mesma).

Sua pergunta não me surpreendeu nem um pouco, já que ela apenas refletia a perspectiva simplista dominante em nossa sociedade, na qual a visão do cristianismo (seja católico ou protestante) é monolítica, ou seja, ser cristão é simplesmente crer numa lista específica de afirmações e ser parte de uma determinada comunidade religiosa, e estar submetido às regras impostas por tal comunidade.

Sua voz reproduzia simplesmente o discurso que já estou acostumado a ouvir de outros cristãos que afirmam que não sou digno de identificar-me como cristão por não crer nesta ou naquela doutrina apregoada por este ou aquele credo, este ou aquele texto bíblico, esta ou aquela confissão, este ou aquele consenso, esta ou aquela compreensão particular do que seja o cristianismo. Suas perguntas reproduziam a esquizofrenia dogmática dos evangelicais fundamentalistas e conservadores que apregoam que sou um “falso profeta” ou um “anticristo” por ensinar o que chamam de falsas doutrinas, e que serei punido com o “inferno” por “separar” pessoas de Deus - como se qualquer pessoa tivesse o poder de “separar pessoas de Deus” (parecem não conhecer o texto de Romanos 8:38-39 – um belíssimo e poético texto, à propósito!).

Essas pessoas, ou esses grupos de pessoas, abraçam uma visão bem diferente da identidade cristã, ou seja, do que é ser cristão, daquela abraçada por minha corrente teológica.

Sua compreensão da identidade cristã poderia ser comparada com um estereótipo do que seja ser um brasileiro: um amante de samba, que come feijoada ou churrasco no almoço de domingo depois de ir à praia, que bebe água-ardente, dorme numa rede, e que mal pode esperar pelo carnaval; alguém que tenha um sobrenome português, e que tenha o idioma português como língua materna, e que se enquadre num perfil “étnico” padrão; alguém semi-alfabetizado ou com um nível de instrução pouco elevado; alguém adepto do catolicismo, do evangelicalismo pentecostal, do espiritismo kardecista ou de alguma tradição afro-brasileira; um adepto de alguma corrente política dita “esquerdista”, etc. Se abraçarmos essa visão da identidade brasileira, o que faremos com aqueles, também brasileiros, que têm sobrenomes alemães, italianos, japoneses ou árabes, por exemplo, e que não tenham o português como seu idioma materno? O que faremos com os brasileiros que não gostam de samba, que são vegetarianos ou simplesmente não comam feijoada? Com aqueles que não celebram o carnaval e que nunca viram o mar na vida? E sobre aqueles que não são católico-romanos, evangélicos ou espíritas? Com aqueles que possuam um pós-doutorado? O que faremos com aqueles brasileiros que preferem vinho a água-ardente? E com aqueles que não votaram em Lula da Silva nas últimas eleições presidenciais? Serão eles acusados de não serem brasileiros por simplesmente não se enquadrarem num perfil pré-determinado? Serão eles acusados de traição nacional, sendo banidos da pátria?... É muito semelhante às afirmações de que se pode ser cristão apenas de uma forma; que para ser digno da identidade cristã tenhamos que nos encaixar dentro de certos limites culturais ou ideológicos, doutrinários ou dogmáticos.

A identidade cristã, ou seja, ser cristão, não decorre de apenas ser membro de uma comunidade ou de apenas crer em uma lista de doutrinas. A identidade cristã é construída a partir do sentido que socialmente damos à fé, e da constante revisão das tradições; ao mesmo tempo em que também é construída a partir daqueles aspectos da tradição que continuam a ser significativos e relevantes para a igreja cristã e para o indivíduo.

Muitos apostam na continuidade como sendo a base para a estabilidade da igreja cristã num mundo que se remodela a cada dia. Essas pessoas, ingenuamente, pensam que a fé cristã tem sido a mesma desde sua origem até hoje, e que continuará a mesma até “os fins dos tempos” (seja lá o que isso signifique!). Essa é uma visão deveras romântica e utópica da realidade, e ignora a maneira como a história humana é construída – sim, porque a história (e o cristianismo e todas as outras tradições religiosas, são parte da história humana) é uma construção humana e não um fato inato e determinado.

O cristianismo, se visto como um sistema de crenças e práticas, foi sendo construído no decorrer de séculos de história, e, na verdade, ainda se encontra neste constante processo de construção e revisão, à medida que novas perguntas surgem, que deparamo-nos com novos problemas que nunca tiveram de ser enfrentados nos primeiros séculos da história cristã. E o que divide os cristãos, por exemplo, nós liberais daqueles mais conservadores, não é muito a lista de crenças que vemos como sendo essencial, mas, antes de tudo, é a maneira como vemos a história e sua origem. Essa visão da história dirige nosso entendimento da Divindade, de nossas relações com outros humanos e com a vida em si, e, consequentemente, nossa visão do cristianismo e do que é ser cristão.

Como um cristão liberal, entendo o cristianismo como sendo basicamente uma construção humana, mesmo que uma construção humana inspirada pela Presença Eterna. O cristianismo, incluindo aí nossas Escrituras, rituais, sacramentos, tradições, etc, é nossa tentativa de construir uma resposta ao que ou quem entendemos ser Deus. É nossa tentativa de encontrar e formular respostas às grandes questões que nos cercam e nos movem. É nossa tentativa de, juntos, construirmos uma comunidade baseada naquelas fontes que nos inspiram e moldam. Assim sendo, sei que não pode haver uma única compreensão válida do que é ser cristão, apenas uma explicação válida da identidade cristã. Há uma ampla diversidade de opiniões e compreensões no cristianismo, e apesar de muitas dessas compreensões e opiniões me fazerem sentir muito desconfortável e, por vezes, me chocarem, não posso descrever seus defensores como mais ou menos cristãos que eu próprio ou outros, pois se o fizesse, estaria negando minha compreensão de como a história humana é criada, estaria negando o que conheço a respeito da história cristã e, consequentemente, estaria abandonando minha visão de mundo mais básica.

Como sempre, penso ser necessário afirmar que não tenho muito interesse por religião organizada, se o que se entende por isso for um conjunto certo e indiscutível de doutrinas. Considero o dogmatismo uma “esquizofrenia social” (em um sentido teológico para a expressão), e por essa razão, distingo fé de dogma. A fé parece-me suficientemente segura para lidar com quaisquer tipos de questões. A fé nunca é ameaçada por perguntas ou dúvidas. O dogma, ao contrário, é sempre ameaçado pelas perguntas e dúvidas porque é duro, é rígido, é petrificado, é vigiado e controlado, e quebra-se sob a luz do questionamento, e, portanto, merece ser ameaçado pelas perguntas e dúvidas.

Então, como resposta à pergunta daquele missionário, se ser cristão significa submeter-me a um sistema dogmático certo e indiscutível, onde não há espaço para dúvidas, para perguntas, para opiniões pessoais, então não quero ser contado como um cristão, pois não estou disposto a abraçar uma “esquizofrenia social”, não estou disposto a abandonar algo que considero ser parte integrante de minha identidade social: minha liberdade e integridade intelectuais.

Se, entretanto, ser cristão for compreendido como ser seguidor dos ensinamentos e exemplos de vida atribuídos à figura de Jesus de Nazaré, e ser membro da grande e diversa comunidade de seus discípulos cujas compreensões estão num permanente processo de reflexão, reconstrução, e, por que não?, reafirmação, então, sim, eu sou um cristão devoto e fiel.

Minha identidade cristã é moldada por minha maneira de ver a história, de entender a fé e tradição cristã, e por minhas ações, que, por sua vez, são moldadas e amparadas por minha maneira de crer e por minha maneira de interpretar a vida e minha relação com tudo o que é parte da vida. Outras pessoas compreenderão sua fé e o mundo ao seu redor de outra forma, e utilizarão outros instrumentos para ajudá-los nesse processo. As respostas encontradas por essas pessoas podem não ser muito adequadas para mim, mas elas não são mais ou menos importantes na vida dessas pessoas que as respostas que eu mesmo encontro são para mim, e é por essa razão que (mesmo discordando de e criticando essas ideias) sempre me disponho a apreciar o que essas pessoas têm a ensinar e oferecer de bom para o mundo. Temos (cristãos liberais e outros cristãos) muito mais em comum do que a maioria de nós consegue enxergar, e podemos aprender muitíssimo uns com os outros. É realmente uma pena que não possamos ver isso!

Seja qual for a opinião pessoal de meus interlocutores, e a minha própria, a verdade é que há muitas diferentes maneiras de ser cristão. O cristianismo, tendo a história e a extensão que tem, possui variedades das mais impressionantemente belas às mais horrivelmente repugnantes (em minha visão). Todas as pessoas que, da sua forma, encontram na grande Tradição Cristã o seu caminho, são cristãos para mim – e ponto final. Não me sentarei na cadeira de juiz para decidir a sinceridade ou correção das crenças de quem quer que seja, no que toca a serem cristãos ou não. E da mesma maneira, não permitirei que o julgamento de outras pessoas interfira na forma como enxergo a minha própria identidade religiosa. Eu sou um cristão, um cristão liberal.

Rev. Gibson da Costa

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O que significa "Amar a Deus"?


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Uma resposta à Maria C.

Querida Maria C.,

Você falou em duas de suas mensagens a respeito da obrigação que os cristãos têm de “amar a Deus”, e disse que isso se demonstra através de nossa obediência aos mandamentos do mesmo Deus. Você ainda deixou claro que fazia aqueles comentários por pensar que cristãos como eu, que reinterpretam a tradição cristã, rejeitam, de alguma maneira, os mandamentos de Deus e, dessa forma, demonstram que não o amam.

“E ame o Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força.” (Marcos 12:30)

De acordo com o Evangelho, Jesus reafirmou isso aos seus compatriotas e seguidores. Ele reafirmou algo que era ensinado há séculos e séculos em sua tradição religiosa, o judaísmo. E a tradição cristã tem dado voz a esse ensinamento durante toda a sua história, apesar de nem sempre ser com os melhores exemplos práticos.

A minha pergunta é: Afinal de contas, o que significa “amar a Deus”? Como você acha que demonstramos nosso amor a Deus?... Aparentemente, a sua resposta é simples: obedecer aos mandamentos de Deus. Mas que mandamentos são esses?

Eu gosto da resposta dada por Jesus nessa mesma passagem de Marcos (leia Marcos 12:28-31), quando ele reafirma que os dois maiores mandamentos são o amor a Deus e o amor ao próximo. Para mim, fica claro que “amar a Deus” é simplesmente amar aquilo que Deus ama, é se importar com aquilo com o qual Deus se importa, é cuidar daquilo que Deus criou e cultiva. Por que “amar ao próximo” é tão importante quanto “amar a Deus”? Porque é simplesmente impossível “amar a Deus” sem amar aquelas pessoas que são, isso é, que existem, por causa de Deus (independentemente de nossa compreensão do nome “Deus”), que carregam em seu próprio ser as marcas de Deus. Se a mensagem cristã afirma que “Deus é amor”, não se pode conhecer – e, consequentemente, amar a Deus, sem que se “pratique” Deus (isto é, sem exercer o amor!).

No espírito da mensagem cristã encontro quatro afirmações básicas a respeito da humanidade: 1) ela foi criada por Deus; 2) os homens e mulheres são filhos e filhas de Deus; 3) a humanidade é amada por Deus; e 4) a humanidade é aceita por Deus.

Como cristão, quando olho para as outras pessoas é isso que eu vejo. Eu vejo indivíduos que têm uma origem divina, já que sua origem está naquela mesma Realidade que é o centro de minha visão religiosa. Por esses indivíduos terem sua origem em Deus, também reconheço o fato de Deus – essa Realidade que não me atrevo a tentar definir – ser o Pai ou a Mãe dessas pessoas, e que por essa razão, Deus os ama e os aceita plenamente.

Só que a criação de Deus não é expressa apenas pela humanidade. Como cristão, afirmo que o próprio universo é criação de Deus. Se o universo é criação daquela Realidade, é também seu filho, e meu cuidado, atenção, e amor, deve se estender ele. Se eu destruo, desnecessariamente, uma parte da vida deste planeta para construir um parque aquático, eu estou demonstrado que não amo aquilo que Deus ama. Se eu saio para fazer caçadas, pelo simples prazer de me divertir com a morte de criaturinhas indefesas, não estou demonstrando amor para com o objeto do afeto de Deus. Se apoio a ideologia da violência e da guerra, da exploração de seres humanos, da destruição do meio ambiente, se viro as costas àqueles que são pisados e humilhados, se me calo quando deveria abrir minha boca contra os barões deste mundo, eu estou demonstrando minha falta de atenção, cuidado, e amor para com aquilo que representa o objeto do afeto de Deus (para usar uma linguagem um tanto poética).

É muito simples falar em amor a Deus como sendo uma renúncia às coisas deste mundo, criando-se listas daquilo que representariam essas coisas. Você se junta a um grupo cristão, e de repente te dão uma lista de “pecados” aos quais se deve renunciar para que você seja capaz de demonstrar seu amor a Deus. Mas amar alguém (ou alguma coisa) não é apenas um “não fazer”, constitui também “um fazer” - ao menos, em minha visão de “amor”. Nos preocupamos tanto com listas de “não fazer” por ser mais conveniente do que nos preocuparmos com a lista de “fazer” - na realidade, quando se trata de relacionamentos, e não seria diferente com Deus, não há uma lista do “fazer”, mas uma lista do “se envolver”. É mais fácil abrir mão de um hábito social do que se engajar de corpo e alma no cuidado a alguém ou alguma coisa – e esse engajamento de corpo e alma com as coisas que são importantes para Deus (de acordo com o que foi proclamado pela tradição bíblica) é a maior e melhor demonstração do que seja “amar a Deus” em minha visão de mundo.

Paz!

+Gibson

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sugestão de Leitura - Setembro de 2009

Gostaria de me desculpar com meus amigos aqui, a quem prometi fazer sugestões de leituras mensalmente. Tenho estado muito ocupado nos últimos meses, e por esta razão não tenho escrito para meu blogue com tanta frequência.


Este mês, gostaria de sugerir um livro do qual gosto muito, e cuja autora já conheço há alguns anos. Irshad Manji, autora de minha recomendação do mês de setembro, é uma muçulmana que se sentiu excluída por uma cultura opressiva e, mesmo assim, decidiu redescobrir o Islã. O resultado disso é o livro que escreveu – cujo título recebeu uma tradução um tanto problemática em português para alguns (“Minha Briga Com o Islã”), já que o título original é “O Problema com o Islã – O Clamor de Uma Muçulmana por Reforma em Sua Fé”. Irshad Manji lidera hoje um dos muitos movimentos pelo retorno à tradição do Ijtihad (uma livre interpretação da fé islâmica) – o tema que tem sido de meu interesse há muitos anos (já que tenho muitas ligações com a tradição islâmica, por muitas razões).


Então fica a sugestão:


Manji, Irshad. Minha Briga com o Islã – o Clamor de uma Mulher Muçulmana Por Liberação e Mudança. Editora Francis, 2004. ISBN: 9788589362542

Disponível na Livraria Cultura online: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=783494&sid=9881281961191602751623032&k5=25C9CB1&uid=


Uma Comparação Simplista Entre as Crenças Unitaristas Com a de Outros Cristãos

DEUS


Outros Cristãos: três pessoas, conhecidas como Pai, Filho, e Espírito Santo; ideia que deve ser aceita pela fé e é conhecida como o Dogma da Trindade; é vingativo e amoroso, ao mesmo tempo; é um ser supremo, e talvez em forma humana; deve ser satisfeito pelo sacrifício de Jesus Cristo na cruz; da forma descrita anteriormente, é uma concepção cristã; se torna conhecido ao homem através da terceira parte da Trindade, o Espírito Santo.


Unitaristas: Os cristãos unitaristas estão abertos a múltiplas interpretações teológicas a respeito de Deus; Deus é amor; é espírito; não precisa ser satisfeito; é o Deus de todas as pessoas; se torna conhecido a todos por meio de suas experiências pessoais, sociais, e religiosas na vida.


JESUS


Outros Cristãos: é Deus, a segunda pessoa da Trindade; é o Salvador de todos os que acreditam nele; pode vir de novo em pessoa; foi ressuscitado física ou espiritualmente e ascendeu ao céu.


Unitaristas: foi um homem – um gênio religioso; foi um mestre e um exemplo da boa vida; ensinou princípios de verdade eterna, das quais o mundo ainda precisa; proclamou uma mensagem que nos influencia ainda hoje.


A HUMANIDADE


Outros Cristãos: nasce no pecado, pois sua natureza herdade é má e depravada; precisa ser salva por meio da aceitação pessoal de Cristo, um Salvador-Deus, dado como o filho unigênito de Deus para pagar pelos pecados da humanidade; nasce para glorificar a Deus, para fazer sua vontade Divina e para trazer os pecadores a “Cristo”.


Unitaristas: nasce sem pecados; apesar de nascer sem pecados, adquire a capacidade tanto para o bem quanto para o mal, mas nunca está eternamente perdida; “salvação” pessoal é uma questão de crescimento e desenvolvimento social; está aqui para construir o Reino de Deus, ou seja, a boa sociedade, reconhecendo os laços da humanidade.


A VERDADE


Outros Cristãos: encontra sua base na Bíblia e/ou nos dogmas da igreja.


Unitaristas: é encontrada em todas as experiências humanas; é descoberta na busca e raciocínio de todas as pessoas.


A BÍBLIA


Outros Cristãos: é a Palavra de Deus revelada, inspirada pelo Espírito Santo e frequentemente considerada como fonte suficiente do que se precisa saber para alcançar a salvação; está aberta a interpretações, mas em geral deve ser aceita como a “Santa Palavra” de Deus; é a fonte autorizada de verdade religiosa revelada por Deus e essencial para a “salvação”; pode antever o futuro da existência da humanidade e o fim do mundo.


Unitaristas: é uma coleção de livros que registram o crescimento moral e religioso de dois grupos de povos (os antigos hebreus e os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré); é uma narrativa franca das variadas experiências de um povo no decorrer de sua história; é uma das várias fontes de valores éticos e religiosos; registra as várias ideias de um povo particular a respeito da vida aqui e no porvir.


O REINO DE DEUS


Outros Cristãos: chegará através da miraculosa vinda de Cristo no fim do mundo; é concebido como sendo plenamente possível apenas na vida futura; será futuramente governado por Deus em benefício daqueles que tiverem sido “salvos”.


Unitaristas: é alcançado por meio dos esforços humanos; é concebido como sendo plenamente possível aqui na terra; será compartilhado por todas as pessoas.


PECADO


Outros Cristãos: é herdado por todas as pessoas como parte de sua natureza; será punido em algum estado futuro.


Unitaristas: é a rejeição deliberada da humanidade de fazer o bem; carrega sua própria punição.


A IGREJA


Outros Cristãos: é o meio básico de salvação; é a Santa Instituição.


Unitaristas: é uma comunidade unida em favor do crescimento moral e espiritual e uma escola de religião; é um grupo de pessoas organizadas para adorar a Deus e para servir a humanidade.


A IMORTALIDADE


Outros Cristãos: é um lar no céu onde o espírito humano individual vive para sempre.


Unitaristas: é uma ideia aberta à interpretação e aceitação pessoal.


A ORAÇÃO


Outros Cristãos: é uma comunicação e uma comunhão com Deus, que é concebido como sendo um ser sobrenatural que pode mudar a ordem natural do universo em favor da humanidade.


Unitaristas: é uma expressão dos pensamentos, sentimentos e aspirações mais profundas de alguém, uma tentativa de conhecer o certo e fazê-lo.


OS SACRAMENTOS


Outros Cristãos: para alguns, são dois, para outros, são sete; poder sobrenatural se faz presente em cada um deles, por virtude da presença do Espírito Santo.


Unitaristas: ordenanças não são consideradas como sendo mágicas; são símbolos humanos, criados para ajudar uma pessoa em sua busca pela boa vida.


NOTA: Como explicado no próprio título, esta comparação é muito geral e deveras simplista a respeito das crenças de outros cristãos e de cristãos unitaristas. Preparei esta lista apenas como uma forma didática (muito simplista e limitada) para ajudar a responder algumas perguntas que me são feitas com muita frequência pelos leitores deste blog.


+Gibson

quarta-feira, 1 de julho de 2009

COMPROMISSO CRISTÃO BRASILEIRO

“Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.” (Miqueias 6:8)


Nós, cristãos livres brasileiros, declaramos nossa intenção de fortalecer nossos laços e dar uma voz comum ao nosso movimento. Para tanto, assumimos o compromisso de nos guiarmos pelos seguintes princípios:

• Encontramos nos ensinamentos atribuídos a Jesus e nos relatos a respeito de sua vida nossa porta para o caminho que nos leva a Deus, sem, contudo, deixar de reconhecer que outras pessoas podem encontrar seu caminho para Deus por meio de outras portas e que, para elas, seu caminho é tão verdadeiro quanto o nosso é para nós;

• Reconhecemos e afirmamos a dignidade e o valor de TODOS os indivíduos, convidando todas as pessoas a fazerem parte de nossa comunidade sem insistir que se tornem como nós para que sejam aceitas;

• A busca por compreensão através do questionamento é, para nós, mais valiosa e graciosa do que a certeza dogmática e, por esta razão, encontramos nossos laços de união no espírito das Boas Novas de Jesus e não em afirmações ou definições dogmáticas;

• Reconhecemos que a maneira como nos tratamos e a maneira como tratamos outras pessoas e a criação como um todo é a expressão mais plena do que acreditamos;

• Comprometemo-nos a trabalhar pela justiça e paz entre todas as pessoas, protegendo e restaurando a integridade de toda a criação de Deus, e levando eperança àqueles que Jesus chamou de os “menores” de suas irmãs e irmãos;

• Reconhecemos que seguir Jesus exige amor altruísta, resistência consciente ao mal, e renúncia de privilégios.

Redigido e assinado em 1º de julho de 2009, pelos seguintes subescritos, membros de várias comunhões cristãs, presentes à celebração eucarística na capela dos Discípulos:
Rev. Gibson da Costa
Vinicios da Costa
Isabel de Castro
Rev. Peter González
Elias Santana
Rev. Tadeu da Costa
Jandira Maia
Alicia Phelps
Paulo Maciel
Silvia S. Prado
Adalberto da Silva
Ana da Silva
Tiago Tenório
Vítor Leão
Bruna Lopes
Maria Lopes
Carlos Brandão
Tatiana Monteiro
Rev. Paulo Justino

Assinaturas Posteriores:
Alessandra Valêncio Lira
Sandro da Silva
Aline Pereira
Éder Douglas de Pinto
Gerd Jakobovitsch
Rosa Farias

(Caso queira subscrever a este compromisso, escreva-me, fornecendo seu nome completo, idade, e endereço eletrônico.)

terça-feira, 12 de maio de 2009

O Meu Cristianismo

Já me perguntaram, muitas vezes, o por quê de eu ainda ser cristão. Muitas das pessoas que continuamente me fazem essa pergunta enxergam o cristianismo como aquela tradição religiosa autoritária e opressiva, que já foi responsável por tantos males no mundo, e que se opõe às descobertas que a ciência tem feito, se tornando, assim, um obstáculo ao desenvolvimento da humanidade (ou, pelo menos àquela parte da humanidade que o segue).

Como já é sabido por todos aqueles que me conhecem, eu me encontro numa posição ideológica contrária ao pensamento daqueles cristãos chamados de “fundamentalistas” (me refiro aqui ao sentido teológico dado a esse termo, ou seja, àquele movimento nascido em inícios do século XX nos Estados Unidos, como resposta às afirmações da ciência a respeito das origens da vida, e que parece ter um grande impacto no pensamento protestante brasileiro) e também da maioria dos “conservadores”; mas também é sabido que ideologicamente me encontro bem distante daqueles que se opõem a toda forma de religião.

Eu vejo a vida espiritual como sendo uma necessidade humana. Alimentar o “espírito” (ou seja, o interior do ser) é tão essencial quanto alimentar o corpo. O ateísmo ou o pseudo-humanismo de alguns prega que a religião seja a causa dos problemas no mundo. Eu, como muitos outros, entretanto, creio que não seja a religião a causa desses males; a causa desses males está em nossa falta de compreensão de nossa religião, na falta de autenticidade e hospitalidade (em seu sentido mais amplo) na maneira como praticamos nossa religião.

Para citar um exemplo claro disso, sempre me sinto irritado quando alguém insinua que o islã seja uma religião que pregue o terrorismo e a violência – porque sei que isso não é verdade. Alguns dizem, então, que muita violência é praticada em nome do islã. Os “islamitas” (aqueles envolvidos com movimentos que usam o nome do islã para cometerem atos de violência) matam, sequestram, e cometem todo tipo de violência em nome da religião islâmica. Os críticos não conseguem entender que esses radicais se prendem a uma visão muito estreita de um ponto e que acabam por violar toda a sua tradição religiosa como consequência. Eles não são porta-vozes do islã.

Sempre penso em minha própria religião como sendo uma grande jornada, um eterno êxodo. Nesse sentido, já percorri as rotas mais sombrias do caminho que passam pelos campos mais perfumados, e que posteriormente me lançam em lugares solitários e sombrios, para que novamente possa alcançar mais luz e perfume. Vejo essa como sendo a perpétua jornada do viajante que busca aquele Mais, que chamo de Deus. O cristianismo é minha jornada nessa busca pelo Mais.

Mas, afinal de contas, por que o cristianismo? Por que alguém como eu continuaria a percorrer o caminho do cristianismo e se comprometeria em ensiná-lo a outras pessoas?

Eu seria incapaz de oferecer uma resposta única a essa pergunta. Tenho certeza de que outras pessoas que seguem outros caminhos espirituais também seriam incapazes de resumir suas motivações a apenas um ponto.

Talvez possa começar dizendo que o caminho que sigo é um caminho simples. Meu cristianismo é um cristianismo não acorrentado a definições pré-estabelecidas; é um cristianismo não preso a explicações do passado que meu senso comum seja incapaz de aceitar, e que acabam virando um obstáculo à minha jornada. Creio que não sejam as explicações do sagrado que sejam eternas, mas sim nossa experiência do sagrado – e essa experiência do sagrado sempre ganhará explicações individuais diferentes, em todos os tempos e em todos os lugares.

Me vejo como um seguidor de um rabino judeu que viveu na Palestina no primeiro século de nossa era. Esse mestre espiritual era Jesus de Nazaré, chamado por seus seguidores posteriores de “o Cristo”.

Não. Se você pensa que eu perco meu tempo discutindo as explicações que os seguidores posteriores desse homem deram a respeito de sua natureza, de quem seria seu pai, como se deu seu nascimento, ou se ele sempre existiu em algum lugar do universo antes de sair do ventre de sua mãe... Não. Essas coisas não me interessam. Para mim, Jesus foi um homem normal, como eu mesmo, nascido da mesma maneira que todos os outros humanos – e é por esta mesma razão que ele consegue ser relevante em minha vida espiritual.

Se por um lado eu rejeito as explicações filosófico-religiosas que exaltaram Jesus ao nível divino e que criaram a imagem de um Cristo etéreo e não humano, por outro lado eu abraço as tradições que lhe atribuem palavras e ações que não podemos saber serem factuais ou não (levando em consideração o fato de eu não acreditar que os relatos dos Evangelhos sejam relatos históricos – no sentido que geralmente damos à palavra “história” -, mas que se tratam de testemunhos religiosos).

Àqueles que pensam ser tolice acreditar que Jesus de Nazaré tenha sido um personagem factual (ou seja, que realmente tenha existido no tempo e espaço), respondo: Não faz diferença! Mesmo se Jesus de Nazaré tivesse sido apenas uma criação dos primeiros “cristãos”, o personagem criado e exibido nos Evangelhos ensina uma mensagem poderosa e que tem tido profundo impacto na vida de incontáveis pessoas no decorrer de dois milênios. Tem tido profundo impacto em minha própria vida desde minha infância.

Um dos livros que compõem o Novo Testamento, o Evangelho de Marcos, narra um encontro entre Jesus e um líder religioso de seu tempo (Marcos 12:28-34). Esse líder pergunta-lhe qual seria o mais importante dever de um judeu. Jesus responde: “O primeiro mandamento é este... ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. O segundo mandamento é este: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Não existe outro mandamento mais importante do que esses dois.

AMOR é a palavra que Jesus utiliza para resumir a essência de seu ensinamento. Uma entrega total de si mesmo ao amor a Deus e ao próximo, criando um laço entre o indivíduo e aqueles que o cercam a uma Realidade desconhecida aos olhos mas perceptível ao coração. Essa é a mensagem de Jesus.

Em outro episódio emblemático, Jesus é descrito como tendo ensinado o seguinte a seus seguidores (Mateus 5:3-12):

Felizes os pobres em espírito, porque deles é o reino do céu. Felizes os aflitos, porque serão consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus...”

Que diferença entre esse Jesus dos Evangelhos e aquele outro Jesus dos pregadores de rádio e televisão! É essa imagem do Jesus descrito nos Evangelhos que me faz um de seus seguidores.

Alguém poderia me perguntar se não me sinto desconfortável em ouvir as palavras de uma coleção de livros (a Bíblia) que já foi usada como desculpa para a prática dos atos mais vergonhosos, como a escravidão, a violência contra outras comunidades de fé, guerras, exploração econômica, o sexismo, etc.

Bem, eu acredito que todos nós, incluindo aqueles que dizem acreditar ser a Bíblia literalmente “a palavra de Deus”, fazemos leituras seletivas dos “textos sagrados”, retendo aquilo que pensamos ser bom e descartando aquilo que não nos convém.

Eu, como um cristão liberal, certamente faço isso. Renuncio as visões tribalistas, violentas e, para mim, sem sentido, enquanto abraço de mente e coração abertos aqueles ensinamentos que me fazem sentir mais próximo da Realidade Divina.

Abro meus ouvidos para as vozes de Miqueias, Isaías, Jesus, Tiago, e Paulo, que nos ensinam a amar, servir, alimentar, vestir, e abrigar nosso próximo. Essa é minha maneira seletiva de ouvir a Bíblia.

Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.(Miqueias 6:8)

... acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente...(Isaías 58:6-10)

...Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar... todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram...(Mateus 25:31-46)

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição...(Tiago 1:27)

... no amor fraterno, sejam carinhosos uns com os outros... sejam solidários... se aperfeiçoem na prática da hospitalidade. Abençoem os que perseguem vocês e não amaldiçoem. Alegrem-se com os que se alegram, e chorem com os que choram. Vivam em harmonia uns com os outros... Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos os homens... Vivam em paz com todos... se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber... Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem.(Romanos 12:10-21)

Essas passagens da Bíblia indicam o cristianismo que considero minha jornada, o caminho que me leva ao Divino. Não é muito uma crença dogmática, mas uma fé que toma forma em um modo de vida. Outras pessoas talvez prefiram os credos, as declarações de fé, a crença na perfeição e infalibilidade de todas as palavras da Bíblia. Eu, entretanto, escolho um caminho mais simples e, para mim, mais objetivo. Escolho acreditar que exista um Mais além de tudo isso que meus olhos podem ver. Não tenho interesse algum em definir esse Mais, mas escolho chamá-lo de Deus ou Pai/Mãe. Jesus é, para mim, a porta para essa Realidade – mas reconheço que outras pessoas encontrem sua porta para esse Mais em outros lugares, e a porta que encontram pode ser tão verdadeira para elas como a minha é para mim.

Minha religião, isto é, meu cristianismo, é a compaixão, o amor, a misericórdia, a hospitalidade, a paz entre eu e os outros – absolutamente TODOS os outros.

Tenho muito a aprender, a praticar, a transformar para que possa tornar minha vida um reflexo dessa fé, uma expressão dessa religião, mas, como disse antes, minha religião é uma jornada, meu cristianismo é um contínuo êxodo.

+Gibson

domingo, 10 de maio de 2009

Salvação, Amor e Universalismo

Há alguns dias atrás, eu conversava com um amigo meu, um cristão batista, sobre religião. Na verdade, conversávamos a respeito de uma doutrina muito importante para o cristianismo como um todo: a salvação. E, como vocês podem esperar, tivemos uma conversa apaixonada a respeito de nossas diferentes concepções – o que não poderia ser diferente quando dois "teólogos", que abraçam visões religiosas tão diferentes, se trancam em uma sala para discutir religião.

Meu amigo batista não compartilha de minha visão universalista de salvação, e, até aquela data, não conhecia muito bem as concepções e a história da tradição universalista no cristianismo.

A primeira pergunta interessante que me fez meu amigo a respeito do tema não foi exatamente a respeito da concepção universalista da salvação em si. Ele me perguntou qual era a relação entre o unitarismo e o universalismo – já que sou um unitarista que sempre fala a respeito do universalismo.

Expliquei-lhe que o unitarismo (como uma tradição cristã independente), apesar de ser diferente do universalismo em muitos pontos e ênfases, abraça uma visão soteriológica universalista – traduzindo para bom português: o unitarismo ensina que todas as pessoas serão “salvas”, apesar de (talvez) o unitarismo e o universalismo – se vistos como diferentes tradições cristãs – oferecerem diferentes explicações do que seja essa “salvação” e de como ela ocorra.

Para aqueles que estão mais familiarizados com a liturgia mais tradicional de nossa congregação, posso citar as palavras da oração de ação de graças, onde agradecemos a Deus pela “redenção do mundo por meio dos ensinamentos de Jesus Cristo”. Observem que não citamos a morte de Jesus, ou seu “sacrifício” - como diria a maioria dos outros cristãos – como sendo o instrumento de redenção ou salvação do mundo. Para nós é a vida de Cristo, e não sua morte, o que nos redime. São os ensinamentos de Jesus, a sua mensagem, que reconheço não ser exclusiva dele (já que outros mestres espirituais pregaram mensagens semelhantes em outras épocas e lugares), o que nos transforma e nos salva.

O universalismo cristão, abraçado por esta congregação, ensina que Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Para aqueles que costumam nos criticar, dizendo que rejeitamos a tradição cristã, cito um nome da tradição cristã como um dos maiores exponentes dessa ideia universalista: Orígenes.

Orígenes, que defendeu longamente o universalismo em sua obra De principiis (“Primeiros Princípios”), suspeitava de toda forma de dualismo – ou seja, de qualquer sistema de crença que reconhecesse a existência de dois poderes supremos, um bom e outro mau. Essa crença era característica de muitas formas de gnosticismo, e foi muito influente no mundo Mediterrâneo oriental em fins do segundo século.

Argumentando que o dualismo era fatalmente falho, Orígenes observou que isso tinha importantes implicações para a doutrina cristã da salvação. Rejeitar o dualismo é rejeitar a ideia de que Deus e satanás (um ser real para o pensamento da maioria dos cristãos) governem seus respectivos reinos por toda a eternidade. No fim, Deus vencerá o mal e restaurará a criação à sua forma original. Em sua forma original, a criação estava sujeita à vontade de Deus. Segue-se, então, com base nesta soteriologia “restauracionista”, que a versão redimida final da criação não possa incluir nada semelhante a um “inferno” ou “reino de satanás”. Tudo “será restaurado à sua condição de felicidade... para que a raça humana... possa ser restaurada àquela unidade prometida pelo Senhor Jesus Cristo”.

Levando em consideração as diferentes concepções e vocabulário entre unitaristas e outros cristãos universalistas, não poderia deixar de citar o grande John A. T. Robinson, o teólogo britânico que publicou em 1968 o livro “In The End God”. Neste livro, Robinson considera a natureza do amor de Deus:

“Não podemos imaginar um amor tão poderoso que, no fim, ninguém será capaz de resistir à entrega livre e grata?”

Essa noção de amor onipotente funciona como a ideia central do universalismo de Robinson. No fim, o amor conquistará tudo e todos, tornando a existência do inferno uma impossibilidade.

“Em um universo de amor não pode haver um céu que tolere uma câmara de horrores”.

Nossa concepção universalista de salvação não significa que pensemos que não faz diferença que crença uma pessoa abrace. Eu posso garantir que há muita diferença entre uma crença pacífica e outra violenta. Entre uma religião que ensina seus adeptos a amar a todos e aquela que ensina a discriminação, e consequentemente o ódio.

O que a noção universalista ensina é que Deus, essa realidade infinitamente inexplicável, não perderá sua criação. Deus é um amor tão profundo que será capaz de transformar a tudo e a todos, e será capaz de redimir e salvar sua criação. Eu não poderia acreditar numa Realidade diferente disso. Não poderia chamar de Deus uma Realidade que não fosse capaz de transformar os corações humanos.

Como o cristão que sou, afirmo que Jesus oferece um caminho que leva a Deus. Jesus é uma porta à “salvação de Deus”. Para mim, como cristão, seguir o exemplo e os ensinamentos que lhe são atribuídos é seguir um caminho que leva a Deus, que me salva, que me redime. Para algumas outras pessoas, essa Realidade que chamo de Deus, ofereceu uma outra “porta” para a “salvação”. Essa porta se chama para alguns o Buda, para outros talvez seja a mensagem pregada pelo profeta Muhammad, para outros talvez seja a Torá revelada ao profeta Moisés. Eu creio que Deus seja maior que todas as concepções que temos a respeito dele(a) – para mim Deus não é uma pessoa, é uma Realidade, é a Base da Existência. Eu, obviamente, creio que Jesus também compreendia Deus dessa forma, e foi por essa razão que reafirmou (como fizeram outros grandes mestres hebreus) que os maiores mandamentos eram o amor a Deus e o amor a nosso próximo. O amor é a salvação pregada por Jesus de Nazaré. Jesus não disse que nosso amor deva se limitar àqueles que são como nós. Devemos amar como Deus o faz, e seu amor está sobre todos, absolutamente todos.

sábado, 9 de maio de 2009

Universalismo Cristão - Uma Breve Definição


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Muitas pessoas hoje entendem o termo "Universalismo", em se tratando de religião, como uma palavra que designe a crença de que "todas as religiões sejam igualmente verdadeiras, boas, e que todas igualmente levem a Deus". Essa definição de "Universalismo" poderia ser melhor descrita como "Universalismo Pluralista" e poderia ser equalizada ao "humanismo secular".

Essa definição de "Universalismo" não deve ser confundida com o sentido original de "Universalismo" no Cristianismo. O sentido original de "Universalismo" na tradição cristã poderia ser agora melhor descrita usando-se o termo "Universalismo Cristão".

A definição de Universalismo Cristão inclui a crença de que Deus "quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Timóteo 2:4).

O termo "Universalismo Cristão", em seu sentido teológico, é a doutrina da salvação universal; ou em outras palavras, da santidade e felicidade final de toda a humanidade, a ser efetuada pela graça de Deus, por meio do ministério de Jesus Cristo.

Essa doutrina é tão antiga quanto o próprio Cristianismo, e tem sido ensinada por alguns dos maiores mestres da Igreja Cristã, e em quase todos os períodos de sua história. Essa era a doutrina da maioria dos primeiros cristãos durante os primeiros cinco séculos depois de Cristo. Das seis principais escolas teológicas existentes do segundo ao quarto século, quatro delas acreditavam e ensinavam os conceitos do Universalismo Cristão, uma ensinava a aniquilação, e apenas uma ensinava o tormento eterno (a escola de Roma). Pode-se encontrar membros de quase todas as comunhões cristãs - gregos, romanos, luteranos, anglicanos, presbiterianos, metodistas, batistas, unitaristas, quacres, etc -, mesmo que diferindo em muitos aspectos, concordando com esta doutrina divina, a de que Deus ama todas as pessoas e que salvará a todas elas.

Há, pelo menos, cinco princípios básicos abraçados por cristãos universalistas desde que o movimento universalista cristão tomou forma a partir da Reforma Protestante. Esses princípios são a crença na:

1 - Paternidade Universal de Deus;

2 - Autoridade e liderança espiritual de Jesus Cristo;

3 - Confiança na Bíblia como contento uma revelação de Deus;

4 - Certeza na justa retribuição pelo pecado;

5 - Harmonia final de todas as almas com Deus.

domingo, 5 de abril de 2009

Sugestões de Leitura - Abril de 2009

Esta é mais uma minúscula lista de sugestões de leitura àqueles que visitam estas páginas. Como prometi no mês passado, tentarei fazer sugestões ao menos a cada mês, incluindo livros que têm sido parte de minha própria lista pessoal de leitura.


Mais uma vez, sugiro o sítio da Livraria Cultura como um bom lugar para começar sua busca, já que sempre tenho boas experiências com ela: http://www.livrariacultura.com.br/



ALÉM DE TODA CRENÇA – O Evangelho Desconhecido de Tomé

Pagels, Elaine – Editora Objetiva, 2004.

ISBN: 9788573025910


Tenho sido há muito um leitor das obras de Elaine Pagels. Não poderia deixar de incluir esta em minhas sugestões de leitura. Nesta obra, Pagels nos faz pensar a respeito do que teria acontecido com a tradição cristã se a “doutrina” tivesse sido estabelecida usando-se outras fontes que não os evangelhos dito “canônicos”. Uma viagem pela história para uma redescoberta do cristianismo que só uma autora como Pagels poderia oferecer.



1001 PÉROLAS DE SABEDORIA BUDISTA – Ideias que iluminam e trazem paz interior

The Buddhist Society – Publifolha, 2007.

ISBN: 9788574028367


Uma coletânea inspiradora de citações budistas e não-budistas que ensinam o caminho para o encontro da paz e equilíbrio interior. A coletânea faz jus ao título escolhido, e tem sido uma fonte de inspiração pessoal em minha disciplina espiritual diária.



365 MENSAGENS DE SABEDORIA E COMPAIXÃO

Dalai Lama – Editora Sextante, 2007.

ISBN: 9788575422830


Quando se trata de uma coletânea de citações de um dos mais importantes líderes espirituais de nossa era, não pode haver indiferença, não importando as diferenças culturais ou religiosas que haja entre nossas tradições. A voz do Dalai Lama sempre foi ouvida entre os unitaristas, e creio que não deve ser diferente entre outros cristãos também. Essa coletânea traz um pensamento para cada dia do ano, lançando o leitor numa jornada rumo à busca de uma vida mais plena e ativa.



A ARTE DE LIDAR COM A RAIVA – O Poder da Paciência

Dalai Lama – Editora Campus, 2001.

ISBN: 9788535207620


O Dalai Lama ensina técnicas para o desenvolvimento da paciência, que é apresentada como o antídoto para a ira. Mais uma obra inspiradora baseada nos discursos do grande mestre budista.



BONDADE, AMOR E COMPAIXÃO

Dalai Lama – Editora Pensamento, 2006.

ISBN: 9788531500596

Como sempre, aqui encontramos a sabedoria budista nas palavras do discurso de Sua Santidade, o Dalai Lama. Uma coletânea de vinte palestras que nos enchem de esperança, visualizando o potencial do espírito humano. Sua Santidade fala de valores que são tão apreciados por todos os seres humanos, independentemente de sua crença religiosa ou falta da mesma. Bondade, amor, compaixão – não são valores budistas, cristãos, judaicos, etc, apenas. São valores que toda a civilização humana tem abraçado em sua busca de si mesma. Os ensinos de Sua Santidade são reflexo desse espírito verdadeiramente humano, que de tão humano chega a ser idealizado como sendo algo divino. Extremamente inspirador.



PRÁTICAS DE SABEDORIA – Seguindo O Caminho de Buda

Dalai Lama – Editora Nova Era, 2006.

ISBN: 9788577010554

A diferença entre o caminho ensinado pelo Buda e o caminho ensinado por outros mestres espirituais de seu tempo e lugar estava no fato de o caminho da “iluminação” ser o caminho de busca pela sabedoria, enquanto outros estarem focados nos rituais de auto-punição. É através da sabedoria que extinguimos o sofrimento e alcançamos a felicidade – esse é o ensinamento do Buda.