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segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Cristianismo e Senso Comum (3)

O Deus Que “Estala Os Dedos”


"...Então aconteceu um furacão que de tão violento rachava as montanhas e quebrava as rochas diante do Senhor. No entanto, o Senhor não estava no furacão. Depois do furacão houve um terremoto. O Senhor porém não estava no terremoto. Depois do terremoto, apareceu fogo, e o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo, ouviu-se uma voz mansa." (I Reis 19:11b-12)


Certamente todos concordaríamos que precisamos de uma forma de falar a respeito do que Deus é e faz que seja sensível e fiel. Esta é uma das metas básicas aqui. Mas antes de podermos chegar a isso, primeiro temos de abrir o caminho, entendendo o que Deus não é e não faz. E não é consistente nem com nosso senso comum nem com a manutenção da forma como a fé cristã fala a respeito de Deus como um Deus que “estala os dedos”. Ou seja, não é nem sensível nem fiel conceber Deus como um “intrometido”, como alguém que intervém em ocasiões específicas para propósitos específicos nos eventos físicos finitos de nosso mundo.


Muitas pessoas sensíveis e fiéis crêem que Deus faça exatamente isso, seja ocasionalmente ou controlando cada coisa particular que aconteça. Portanto, sou obrigado a mostrar como isso é inconsistente com nossa razão e nossa fé. Isto é um assunto relativamente simples em relação à nosso senso comum. Mas a questão de consistência com nossa fé cristã nos levará a confrontar as áreas sombrias da vida enquanto lidamos com o problema do sofrimento.


O Senso Comum e o Estalar dos Dedos


Voltemos à nossa velha amiga, a tempestade. Supondo que você concorde que nosso senso comum é de que este fenômeno seja explicado pela meteorologia e não pela referência à ira de Deus – por quê? Por que pensamos assim? Por que não consultamos oráculos além de meteorólogos?


Além da resposta sociológica de que pensamos assim por termos sido ensinados a fazê-lo por nossa sociedade, há também um princípio importante aqui. É conhecido em filosofia como o “princípio de economia” ou “navalha de Ockham”.1 O princípio é este: que qualquer evento ou estado de coisas deve ser explicado da maneira mais simples possível, e uma vez se tenha explicado de uma maneira, não se tenta explicá-lo mais uma vez postulando outras causas “mais profundas” para ele.


Explicação “mais simples” não significa simples no sentido de que seja mais simples dizer “Deus foi a causa da tempestade” do que tentar entender a ionização e a umidade, e coisas do gênero. Em vez disso, o que se quer dizer é que primeiro tentamos explicar eventos físicos finitos buscando causas físicas finitas, buscando o tipo de causa que sabemos existir e operar em nosso mundo. Estas causas naturais e humanas são “mais simples” que qualquer causa sobrenatural que possamos sugerir. Assim, por exemplo, se pudermos pensar em causas físicas naturais para explicar um evento, então não precisamos e não devemos postular mágicas, milagres, ou mistérios.


Provavelmente, você diria que isso é o senso comum. Quase isso. Este não foi sempre o caso. Ademais, além de estarmos cientes de que parte de nosso senso comum recebe o nome filosófico charmoso de “princípio de economia” (o que realmente não importa), é importante que estejamos cientes dos princípios da razão com os quais operamos, para que possamos assegurar nossa própria consistência (o que importa).


Agora, com a navalha de Ockham em mãos, retornemos à tempestade. Nós a explicamos como o resultado de condições físicas atmosféricas. Isso é suficiente. Não há espaço algum para Thor, nenhuma necessidade para se pensar na ira de Deus.


Mas suponha que durante essa tempestade alguém seja atingido por um raio e morra. Quando isso acontece, muitos de nós deixamos nossas navalhas caírem. Buscamos um outro tipo de explicação. Podemos falar sobre o destino ou a vontade de Deus.


Se uma árvore estiver sozinha num campo e for atingida por um raio, nos satisfazemos com uma explicação simples de causas físicas. Mas se uma pessoa estiver sozinha em um campo ou se abriga embaixo dessa árvore durante a mesma tempestade e é atingida por um raio, muitos de nós buscarão um tipo muito diferente de explicação. Quando o sofrimento pessoal é envolvido, e especialmente quando uma pessoa morre, precisamos sentir que haja um propósito para isso, que haja “mais” que uma razão que mero acaso ou má sorte. Frequentemente nos tranquilizamos dizendo que Deus está no controle, então esta deve ser a vontade de Deus, e então (concluímos) deve haver uma boa razão para isso. Quanto maior o impacto em nossa vida, maior nossa necessidade de sentir isso.


Mas descargas elétricas não distinguem entre uma árvore e uma pessoa, então se você pode explicar a árvore sendo atingida por um raio de maneira simples, então a mesma explicação funcionará para a pessoa – exceto que você se pergunte por quê a pessoa não teve o senso de sair da chuva – mesmo se essa pessoa for seu cônjuge ou seu filho. Buscar um outro motivo aqui, uma razão “mais profunda”, é tentar encontrar motivos e objetivos em processos naturais da mesma forma como buscaríamos estes em pessoas.


Nosso senso comum é de que eventos físicos finitos tenham causas físicas finitas. Se for este o caso, não faz sentido repentinamente postular causas sobrenaturais ou propósitos metafísicos quando esses eventos têm um grande impacto em nossas vidas. Isso é verdade falemos nós em tempestades, enchentes, incêndios, guerras, ou acidentes automobilísticos. Não faz sentido perguntar o “por quê” de uma tempestade ou um incêndio. Não faz sentido perguntar por quê seu filho morreu quando foi atingido por uma barra de aço que se movia a cem quilômetros por hora. Não podemos esperar que as leis da natureza façam uma exceção em nosso caso particular, ou que tenham um objetivo particular em mente.


Faz sentido, claro, perguntar o “por quê” em se tratando de ações de seres humanos. Esta é uma das duas maiores exceções permitidas por nosso senso comum à regra geral de que eventos físicos finitos sejam explicáveis por causas físicas finitas. De certa forma, isto não constitui uma exceção: ainda é a ação física de um humano que faz surgir um resultado físico. Mas faz sentido procurar por propósitos e motivos de forma que não seja aplicável a fenômenos naturais, e a causa pela qual estamos interessados provavelmente se encontrará no pensamento ou sentimento de outra pessoa. Queremos saber por quê o assaltante atirou em nós, não por quê um tubo detonou pólvora ou como isto faz com que um projétil de chumbo voe em alta velocidade.


A segunda maior exceção à regra geral de que efeitos físicos tenham causas físicas está na área de saúde e doença. Reconhecemos que nossa mente e nosso corpo estejam interligados, e que o estado mental e emocional possa afetar a saúde física de muitas maneiras, e que possa até mesmo se tornar uma questão de vida ou morte sob algumas condições. Não se pode pegar hepatite sem a exposição física ao vírus, mas sabemos que nossa recuperação dependeria em parte em nossa própria atitude mental. Também sabemos que o estresse emocional ou a depressão grandemente aumentam o risco de desenvolvermos alguma doença séria. Os sábios entre nós sabem que as pessoas realmente morrem de tristeza.


Nosso senso comum não está amarrado ao puramente mecânico, ele definitivamente reconhece essas duas categorias de possíveis causas não-físicas para eventos físicos. Depois podemos discutir como Deus pode ou não pode agir em relação a essas duas categorias. Entretanto, com a possível exceção dessas duas áreas, nós explicamos eventos físicos finitos com causas físicas finitas. Portanto, devemos concluir que não é consistente com nosso senso comum falar de Deus “estalando os dedos” no mundo físico.


Nossa Fé e o Estalar dos Dedos


Falar de Deus dessa forma também não condiz com o conceito cristão de uma Deidade amorosa.


É possível pensar em Deus intervindo em nossos assuntos terrenos e nos acontecimentos físicos de acordo com dois diferentes modelos: como um constante “puxador-de-cordas” cósmico que controla todo e cada evento de qualquer importância (seja por causá-lo ou por conscientemente permitir que aconteça), ou como um intrometido ocasional e “estalador de dedos”, limitado (talvez por autodomínio) a intervir em um certo número de casos.


A primeira dessas duas concepções, a de que Deus exercite controle sobre pelo menos todos aqueles eventos de importância, é comumente a suposição por trás daqueles que crêem que haja razões ou explicações “mais profundas” para aqueles eventos que nos causam alegria ou tristeza. Consequentemente, discutiremos esta idéia primeiro. O problema que confrontamos aqui é realmente o problema do sofrimento, pois é para as nossas dores que mais precisamos de alguma justificação, alguma explicação satisfatória. Chamo isso um problema de:


Dor, Honestidade e Fé

Dor, honestidade, e fé. Separadamente, cada uma delas pode representar um problema para nós. Eu sei que cada uma delas tem sido um problema para mim. Juntas, elas se constituíram em um problema especial. Se você não é cego nem engana a si mesmo, juntas elas constituem um problema especial para você também.


Primeiramente, há o problema da dor. Cedo ou tarde todos nos ferimos, e nos ferimos dolorosamente, fisicamente, emocionalmente ou os dois. (Espero que todas as suas dores sejam pequenas. Mas eu duvido que todas sejam.) E isto representa um problema para nós: como lidamos com isso? Por quê isso aconteceu comigo? Como encontramos o sentido disso?


Segundo, há o problema da honestidade. Quero dizer honestidade consigo mesmo: também poderia chamá-la de integridade intelectual. Significa não negar o que seus olhos vêem, o que seus ouvidos ouvem, o que seu coração sente, ou o que sua mente raciocina. Mais difícil ainda, significa não negar seus olhos em favor de seu coração, ou seus ouvidos em favor de sua mente, ou nem sua mente ou seu coração em favor do outro.


Terceiro, há a fé. Talvez se você não trouxer a dor e a honestidade, para que seja consistente com o que sua mente raciocina e o que seu coração sente e o que seus olhos vêem, então talvez a fé não seja um problema para você. Mas se pudéssemos ter uma fé que não negasse a dor nem se escondesse na desonestidade, então deveríamos dar uma olhada mais longa e dura no fato do sofrimento. Comecemos examinando o desejo que freqüentemente temos de ter uma justificação ou razão “mais profunda” para nosso sofrimento.


"Deve Haver Uma Razão"


Deve haver uma razão. Quando acontece um desastre, quando a tragédia rasga o tecido de nossas vidas, exigimos uma razão. Exigimos saber como tal coisa pode ter acontecido, por que se permitiu que ocorresse. Nós queremos, e talvez precisemos, saber que havia uma razão, que não foi meramente um acaso sem sentido.


Por que o rio encheu além de suas margens? Por que aqui? Por que nossa casa foi destruída? Por que tio João morreu?


Às vezes é suficiente ter as respostas simples, casuais, freqüentemente mecânicas que a navalha permite como suficientes: o rio transbordou porque tempestades pesadas derramaram dois metros de chuva num período de quarenta e oito horas ao mesmo tempo que a represa rompeu. Esta região foi inundada por causa dos contornos do vale. O serviço meteorológico emitiu avisos, mas você se recusou a acreditar que o dique não agüentaria, se recusou a acreditar que isso realmente aconteceria aqui. Sua casa foi destruída porque este é o resultado natural de duas braças de água atingindo uma casa de madeira. Tio João morreu porque ele nunca aprendeu a nadar e, assim, não pode enfrentar a água com segurança.


Às vezes esse tipo de resposta é inadequada. Quando uma tragédia acontece com uma outra pessoa, quando você não está envolvido nos efeitos imediatos, quando nem você nem aqueles próximos a você sofrem qualquer perda pessoal, esse tipo de resposta é provavelmente tudo o que você precisa. Quando o mesmo desastre atinge muitos outros além de você, quando você não se sente sozinho, esse tipo de resposta pode eventualmente parecer adequada também.


O problema é quando você se sente sozinho na dor e no sofrimento: quando a sua família é atingida pelo câncer, quando o seu filho é atropelado por um motorista bêbado, quando o seu cônjuge tem um ataque emocional, quando você é paralisado da cintura para baixo pelo resto da vida. Quando uma coisa desse tipo acontece, o tipo de resposta simples e casual que demos acima provavelmente parecerá total e obviamente inadequada. Podemos perguntar, “Por que?”, mas não estamos interessados em ouvir a respeito dos limites da medicina moderna ou no inevitável resultado de ter dois mil quilos de aço impactando sobre a pele ou ossos. Até certo ponto o nosso “Por que?” nem chega a ser uma pergunta, é apenas um grito de protesto, raiva e angústia. Se for uma pergunta, estamos perguntando: “Por que eu? Por que isso aconteceu comigo?”


Dois fatores contribuem com nosso sentimento de que esse “Por que?” seja uma pergunta legítima que exige mais do que uma resposta que possa ser dada por causas físicas. De um lado, parecemos ter a sensação de que o bem-estar seja normal, que ele deva ser esperado. Não importando quantas vezes falemos em contar nossas bençãos, geralmente os damos por certo. Mesmo que o neguemos, sentimos a vida nos “deva” o bem-estar e mesmo a alegria. Portanto, o sofrimento é tido como algo injusto, e o nosso “por que?” assume uma tonalidade moral que busca uma resposta que nos mostre propósito e justiça.


Também freqüentemente encaramos o sofrimento como uma punição. A razão pela qual nos sentimos assim se relaciona com a mesma crença de que merecemos o bem-estar, e talvez também tenha a ver com nossa experiência da infância de recompensas e punições, e com idéias sobre Deus aquinhoando bem e mal. Seja qual for a razão, o sofrimento parece ser uma punição. E por isso exigimos saber “por que?”, apesar de, mais uma vez, isso ser mais um protesto que uma pergunta, pois sabemos que não fizemos nada monstruoso o suficiente para merecer passar por esse tipo horrível de punição.


Mas se não podemos explicar esse sofrimento como uma punição merecida, a maioria de nós ainda pensa ser inaceitável e insuportável a explicação alternativa: que não há nenhuma razão mais profunda para nosso sofrimento, que não passa de acaso e má sorte, que (em um senso moral) não tem sentido algum. Queremos evitar esta conclusão. Se não pudermos evitá-la aceitando que o sofrimento seja uma punição merecida, então frequentemente tentamos evitá-la dizendo que o sofrimento é para o nosso próprio bem, ou para o bem do mundo. Afinal, Deus funciona de maneiras misteriosas. Contanto que saibamos que Deus é bom, justo e que está no controle, então sabemos que o que acontece é para o melhor, mesmo que nunca entendamos como ou por quê.


Se o sofrimento não é uma punição merecida ou outra coisa é para o bem, então faz sentido para nós. É aceitável para nós. E a afirmação de que todo sofrimento, independentemente de quão grande seja, seja um ou outro faz sentido eminente se você acredita que Deus é bom e onipotente, e que Deus exercita esta onipotência para controlar eventos aqui na terra. Eu, pessoalmente, não posso acreditar nisso. Seria desonesto: desonesto com o que meus olhos têm visto, com o que meu coração tem sentido, e com o que minha mente é capaz de raciocinar. Entretanto, essa é uma convicção antiga que tem sido expressa desde tempos antigos.


"O Senhor não deixa que o justo passe fome, mas reprime a ambição dos injustos.”

"Para o injusto acontece o que ele teme; para os justos é dado o que eles desejam."

"O temor do Senhor prolonga os dias, porém os anos dos injustos serão abreviados.”

"A esperança dos justos acaba em alegria, mas a esperança dos injustos termina em fracasso.”

"O caminho do Senhor é refúgio para o íntegro, mas para os malfeitores é terror.”

"O justo nunca vacilará, mas os injustos não habitarão na terra.”

"Cedo ou tarde, o mau será cobrado, mas a descendência dos justos será salva."

"Ao justo nada de mal acontece, mas os injustos vivem cheios de desgraças.”

"A vida se encontra no caminho da justiça; o caminho da injustiça conduz para a morte.”

"A desgraça persegue os pecadores; a paz e o bem perseguem os justos.”

"A herança do bom permanece na sua família, mas a riqueza do pecador está reservada para o justo.”

"O injusto tropeça na sua própria maldade, mas o justo se refugia na sua própria integridade.”

(Provérbios 10:3, 24, 27-30; 11:21; 12:21, 28; 13:21-22; 14:32)


Os bons são prósperos e felizes; os maus sofrem por seus pecados. O Senhor que controla os destinos dos seres humanos distribui boa ou má sorte em porções justas àqueles que merecem. Deus recompensa o bem com uma vida longa e feliz e pune o mal com desgraça e sofrimento.


Há de se admitir que este é um sistema completamente satisfatório. Quem poderia reclamar de um mundo onde os bons são recompensados e os maus são punidos? De nossa parte é desejável, e da parte de Deus é meritório. É tudo que se pode querer.


Claro, há um problema muito importante com tudo isso: o mundo simplesmente não funciona assim. Não importa o quão desejável ou meritório seja, as coisas nem sempre funcionam de acordo com esse plano. Você sabe disso tão bem quanto eu sei. E apesar da impressão dada pelos Provérbios, muitos dos antigos judeus percebiam isso também.


Por um tempo, quaisquer inconsistências aparentes na justiça divina podiam ser explicadas fazendo-se referência a ancestrais infames. Afinal de contas, o Senhor não havia dito “Sou um Deus ciumento: quando me odeiam, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos” (Êxodo 20:5)? Então, se você sofresse qualquer infortúnio desmerecido, poderia sempre pensar que um de seus oito bisavós tivessem secretamente cometido alguma iniqüidade perniciosa que só agora estava recebendo a retribuição apropriada. Não que isso pudesse oferecer muito conforto pessoal, mas você poderia ao menos crer que sua família, de fato, merecia esse sofrimento e que o sistema de justiça divina ainda prevalecia.


Mas esse tipo de explicação não poderia sobreviver ao surgimento do individualismo, o senso da dignidade de cada indivíduo por seu próprio mérito. A idéia de uma pessoa sofrer pelos pecados de uma outra pessoa se tornou uma afronta aos sensos de justiça e responsabilidade individual das pessoas, e os profetas atacaram esta idéia:


Recebi a seguinte palavra do Senhor: “Que sentido tem para vocês este ditado que se repete na terra de Israel: 'Os pais comeram uva verde, e a boca dos filhos ficou amarrada'? Juro por minha vida, diz o Senhor Deus, que vocês não vão repetir mais esse ditado em Israel. Todas as vidas são minhas, tanto a vida do pai como a vida do filho. O indivíduo que pecar, esse é que deverá morrer”. (Ezequiel 18:1-4)


O filho nunca será responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho. O justo receberá a justiça que merece e o injusto pagará por sua injustiça. (Ezequiel 18:20. veja também Jeremias 31:29-30)


Isso é justo, e nos faz voltar ao sistema de justiça divina descrito nos Provérbios: os bons são recompensados e os maus são punidos nesta vida pelo Senhor todo-poderoso dos destinos humanos. Mas se não pudermos culpar exceções óbvias a este sistema sobre os pecados de nossos ancestrais, então ele é deixado sem defesas diante das duras realidades da vida. O mundo simplesmente não funciona desta forma. É este problema é o que é confrontado no Livro de Jó.



"Era uma vez um homem chamado Jó, que vivia no país de Uz. Era um homem íntegro e reto, que temia a Deus e evitava o mal” (Jó 1:1). Este era Jó, merecedor do bom destino, se alguém era. Mas, então, no espaço de um dia toda a sua fortuna foi roubada ou destruída e todos os seus filhos foram mortos. Logo depois ele mesmo foi afligido com feridas da cabeça à planta do pé.


Na introdução prosaica desse livro esse sofrimento é descrito como um teste. Deus, depois de se vangloriar de Jó, permite a Satã fazer o que quiser para testar a fé de Jó. (“Teste” ainda é uma explicação comum ao sofrimento que consideraremos mais tarde.) Entretanto, o corpo principal do Livro de Jó não tenta explicar o sofrimento desta forma. Em vez disso, ele nos dá uma imagem poética da colisão entre os fatos da vida e da crença de que o sofrimento seja uma punição de Deus. Jó argumenta a favor da realidade enquanto alguns de seus amigos ficam ao lado da crença tradicional.


Elifaz, Baldad, e Sofar vêm visitar seu amigo sofredor, como amigos devem fazer. Eles são bons homens religiosos que sabem que Deus é justo e que controla o que acontece. Eles estão confiantes de que entendem as obras da justiça de Deus; os bons são recompensados nesta vida e os maus são punidos. Então eles estão convencidos de que o sofrimento que aflige Jó pode apenas ser a punição merecida por algum mal que ele tenha feito. E, portanto, eles demonstram sua preocupação por Jó pedindo que ele se arrependa dos pecados que ele deve ter cometido, pois apenas se ele se arrepender, eles vêem alguma esperança para seu amigo.


Jó também acredita que Deus tenha controle sobre o que acontece com ele, mas ele sabe que não fez nada para merecer aquilo, assim como nós, leitores, sabemos. Ele é inocente. Portanto, diferentemente de seus amigos bem intencionados, ele não pode aplaudir a justiça de Deus. Não apenas ele sofre sem ser culpado de nenhum pecado significativo, como ele também vê os maus prosperarem ao seu redor. Ele sabe disso, e sabe que isso não é justo.


Os amigos de Jó não se deixam persuadir. Eles continuam a insistir que ele merece esse sofrimento – ele tem que merecer! Ele tem que ser culpado, e seria melhor se ele deixasse de protestar e se arrependesse. Suas admoestações bem-intencionadas têm a feição de um tormento cruel e insensível à luz do que sabemos.


Não importa o quanto desejemos que Deus assegure um bom destino para os bons e um mau destino para os maus, simplesmente não funciona dessa forma. Este é um ponto de grande importância feito pelo Livro de Jó.


Mas então como explicamos o sofrimento de Jó? Esta, obviamente, é a pergunta que atormenta o próprio Jó. Ele nunca duvida que sua má sorte esteja sob o controle de Deus. Na verdade, ele ainda tem tanta fé na justiça de Deus que chega a apelar por uma audiência, confiante de que Deus reconhecerá sua inocência, e assim a injustiça de seu sofrimento, e que assim revocá-la-á.


Como regra, se uma pessoa em posição de poder é responsável pelo sofrimento de uma pessoa justa e inocente, isso pareceria razão suficiente para acusar aquela pessoa de injustiça. Neste caso, entretanto, ao insistir que é inocente, Jó está acusando Deus de injustiça. Então Jó recebe uma pungente repreensão.


Esta vêm por meio de Eliú, um jovem que primeiramente dá voz à sua irritação junto aos três amigos por falharem em dar uma resposta apropriada a Jó, e depois condena Jó por se justificar em vez de justificar a Deus. Ele não explica como o sofrimento de Jó poderia possivelmente ser merecido, mas simplesmente afirma: “Longe de Deus praticar o mal, longe do Todo-poderoso praticar a injustiça. Deus paga ao homem conforme as suas obras e retribui a cada um conforme a sua conduta. Deus, na verdade, não age de modo injusto. O Todo-poderoso nunca viola a justiça” (Jó 34-10-12).


Eliú aparentemente sente que essa afirmação não esteja sujeita a desafio por meros fatos. Ademais, ele insiste, independentemente de Jó ter ou não estado sem culpa previamente, ele agora é culpado de rebelião e orgulho por desafiar a justiça de Deus e pôr sua própria sabedoria a par com a do Todo-poderoso. Jó continua não-convencido, teimosamente se prendendo ao fato de sua própria inocência e à implicação lógica de que o Deus responsável por seu sofrimento agiu injustamente. Mais uma vez ele apela a Deus, e finalmente Deus lhe responde. Mas não é a resposta que Jó esperava:


Então o Senhor, do meio da tempestade, respondeu a Jó e disse: “Quem é esse que escurece o meu projeto com palavras sem sentido? Se você é homem, esteja pronto: vou interrogá-lo e você me responderá. Onde você estava quando eu colocava os fundamentos da terra? Diga-me, se é que você tem tanta inteligência!

Você sabe quem fixou as dimensões da terra? Quem a mediu com a trena?

Onde se encaixam suas bases, ou quem foi que assentou sua pedra angular, enquanto os astros da manhã aclamavam e todos os filhos de Deus aplaudiam? Quem fechou o mar com uma porta, quando ele irrompeu, jorrando do seio materno? Quando eu coloquei as nuvens como roupas dele e névoas espessas como cueiros? Quando lhe coloquei limites com portas e trancas, e lhe disse: 'Você vai chegar até aqui, e não passará. Aqui se quebrará a soberba de suas ondas'?” (Jó 38:1-11)


Deus” segue esta tendência por quatro capítulos, descrevendo as maravilhas da criação e o poder, infinita sabedoria, e providência amorosa do Todo-poderoso. Confrontado com esta magnífica demonstração da majestade e sabedoria de Deus, e repentinamente estando ciente de sua própria insignificância e ignorância, Jó volta atrás:


Eu reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus projetos fica sem realização... Eu falei sem entender... Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te vêem. Por isso, eu me retrato e me arrependo, sobre o pó e a cinza.” (Jó 42: 2, 3, 5-6)


A Desculpa de Jó


Sim, Jó volta atrás e se arrepende. Não importa que ele seja abençoado com riqueza e filhos novamente. Foi um erro seu. Não é o que ele deva ter feito. É, na verdade, uma desculpa, uma clara desculpa.


Não que Jó ou qualquer outra pessoa pudesse responder ao desafio de Deus ou às perguntas de Deus. O universo está muito além de nossa compreensão. Não conhecemos o começo ou o fim dele, nem suas bases, nem o Deus de tudo isso, nem mesmo nosso próprio papel nele de qualquer forma adequada. Não podemos presumir ser capazes de cumprir o desafio de Deus. Podemos apenas, juntamente com Jó, humildemente confessar nossa ignorância, nossa visão limitada, nossas falhas.


Mas se Jó não tem todas as respostas, ele ainda conhece um fato importante, e isso lhe traz um questionamento importante que ele não consegue largar facilmente. Deus pode conhecer as profundezas do universo, mas Jó sabe que ele sofreu terrivelmente e que ele, um homem justo, não merecia sofrer. Então, se Deus pode perguntar: “Onde você estava quando eu colocava os fundamentos da terra?”, Jó então pode perguntar – na verdade, se ele é humano ele deve perguntar - “Onde estava você, ó Deus, no dia no qual todos os meus rebanhos foram tomados e todos os meus servos e meus filhos foram mortos? E onde você tem estado desde aquele dia, enquanto eu tenho sofrido de uma dor interior e de uma terrível doença no exterior, sem nenhuma ajuda ou conforto? Não, eu não estava lá quando você colocou os fundamentos da terra, mas onde estava você quando eu estava ferido, temeroso e desesperado, e clamava a você em vão?”


Isto é o que Jó deve perguntar se quiser ser honesto a respeito de sua dor e suas convicções. Eu não gosto desta pergunta. Faz com que me sinta desconfortável e inseguro. Lembra-me de coisas que eu preferiria não lembrar. Mas a pergunta está lá, e se somos honestos, devemos fazê-la: “Se Deus é um Deus amoroso e todo-poderoso, então porque este Deus permite que tanto sofrimento aconteça?”


Que resposta Deus pode dar a isso? Ou melhor, que resposta podemos dar a favor de Deus?


Se insistirmos em Deus ser responsável pelo sucesso e pelo infortúnio, pela saúde e pela doença, pela vida e pela morte, e se também acreditamos que Deus seja amoroso, então como é possível explicar o sofrimento desmerecido? Afirmemos ou não que qualquer sofrimento seja merecido, é óbvio que há um significante volume de sofrimento que simplesmente não pode ser descrito como merecido ou justo de acordo com qualquer padrão razoável de justiça. Não se pode justificar grandes sofrimentos apontando pequenas falhas morais, que todos nós temos, especialmente quando muitos com falhas iguais ou maiores sofrem menos.


É possível reconciliar este sofrimento desmerecido com um Deus amoroso, que está “no controle”? Seria, se este sofrimento pudesse ser explicado como sendo de uma forma ou de outra para o bem. Se o sofrimento não é merecido, ainda poderia ser para o bem, seja do indivíduo ou do mundo. Apenas se o sofrimento for para o bem podemos afirmar que um Deus amoroso esteja no controle dos eventos no mundo.


Antes de tentarmos explicar ou justificar o sofrimento, devemos perceber o que ele é e o que faz com as pessoas. Devemos nos certificar que temos uma compreensão adequada dele. Certamente todos nós já aprendemos algo a respeito do sofrimento com nossas próprias experiências. Mas também somos muito bons em reprimir nossas lembranças de dor e agonia, então precisamos nos relembrar o que significa viver no Vale da Sombra da Morte.


O Vale da Sombra da Morte


Este é o vale no qual todos vivemos. A sombra emitida pela morte em nossas vidas nos dá a consciência de nossa própria finitude, o conhecimento de que todos nós morreremos. Eu morrerei e você morrerá. Esta é a principal certeza que temos nisso que chamamos de vida.


Todos temos que morrer com este conhecimento. Significa que quando algo frustra nossa única oportunidade, quando um acidente, azar, doença, ou simplesmente circunstâncias determinam que nossa única oportunidade será retorcida, ou será dolorosa ou abreviada... bem, é isso. É definitivo. Não há nenhuma corte de apelação, nenhum recurso de litigação. É isso.


Como regra geral, claro, a sombra não é tão escura assim. Mas para a jovem viúva com filhos, para o rapaz sofrendo uma agonizante morte com câncer, para a pessoa cheia de vida e esperança que é incapacitada por esclerose múltipla, ou para a criança que tem de iniciar a vida com um “deficiência” incorrigível, a regra geral não é o que importa. Se o sofrimento que você conheceu foi do tipo que passa depois de alguns meses ou mesmo – quão difícil pode ser! - depois de alguns anos, lembre-se que há aqueles para quem o sofrimento pode nunca passar.


Lembre-se, também, do que a dor pode fazer. A dor física é capaz de grande destruição. A dor severa em apenas uma pequena parte de seu corpo – o tipo que queima e penetra – pode agir como um grande peso sobre você. Drena a sua energia, devora a sua ambição, e está presente em cada movimento que você faça. Esgota você até que tudo o que você quer é se sentir confortável, até que tudo o que você quer é que a dor pare. Devora os esforços de você viver a vida que você quer e sabota os esforços de fingir que você é “normal”. Quando ela explode, irradia como veneno por todo o seu ser, e tanto o seu corpo quanto sua mente são infectados por ela. Você pode chegar ao ponto no qual tudo o que você quer da vida é ser normalmente saudável, mesmo sabendo que isso é algo que você nunca será.


Isto é apenas a dor simples e descomplicada. Não deveríamos nos surpreender com o fato de que geralmente é complicada – pela depressão, solidão, frustração, dificuldades financeiras, e outros problemas.


A incapacitação, mesmo sem qualquer dor, pode ser tão má quanto a dor. Não podemos realmente imaginar o que seja não ser capaz de usar o corpo, não ser capaz de dar uma caminhada ou brincar com os filhos, ou ter um emprego, ser completamente dependente de uma outra pessoa, dependendo de sua disposição em esperar nossas vontades ou necessidades. Não é fácil imaginar isso. Mas há pessoas ao nosso redor que não têm que imaginá-la, que têm que viver com ela como parte de sua vida.


E ainda há o sofrimento e o aleijamento emocional: o não amado, o solitário, o desolado, o rejeitado; pessoas com sonhos destruídos e pessoas com psiques perturbadas. A dor profunda na alma humana, às vezes causada por aquilo que nos ocorre, pode aleijar uma pessoa e destruir uma vida tão efetivamente quanto qualquer doença física.


Se uma pessoa tem dificuldade em lidar com os problemas “normais” da vida diária, podemos chamar isso de doença emocional. Isto pode ser um resultado de eventos traumáticos prévios na vida daquela pessoa ou pode ser devido a um desequilíbrio químico herdado em seu sistema. Freqüentemente pensamos que “doença emocional” signifique “loucura”. Freqüentemente não é esse o sentido. O que significa, mais que qualquer outra coisa, é dor: dor nas profundezas de nossas psiques, dor que em alguns casos nunca permite a uma pessoa viver uma vida normal.


Talvez apenas os casos extremos sejam tão difíceis assim. Se este for o caso, há muitos casos extremos. E há muitos mais que, se não tão extremos, ainda são inegavelmente exemplos de sofrimento desmerecido.


Todos nós temos nosso exemplo favorito de alguém ferido, aleijado, ou desolado que através de muita determinação e esforços corajosos conseguiu vencer todos os obstáculos e continuar a levar uma vida útil e significativa e talvez uma vida de alegria. Estas pessoas merecem toda a honra. Mas eles são apenas um pequeno número que conseguiu vencer. Os muitos que não foram tão sortudos, tendem a se esconder de nossa vista.


Quanto àqueles que foram atingidos por eventos ou por uma doença que não pode ser vencida apenas por meio do trabalho duro ou da força de vontade, que são condenados a sofrer as conseqüências – sim, como você, já fui surpreendido e impressionado pelo ânimo e humor que algumas dessas pessoas demonstram. E não é surpreendente que eles não vivam falando ou reclamando de sua doença, dor, frustração ou desespero?


Mas eu aprendi algo a respeito disso. Talvez você já saiba disso. Essa face de alegria não é vestida para você ou para mim. Não é mantida pelo benefício de outras pessoas. E apesar de ser mantida apenas com muito esforço e energia, todo o esforço vale a pena. Esta face de alegria representa sua pretensão de normalidade, não para outras pessoas, mas para eles próprios. É sua defesa contra o constante confronto com o fato de sua própria infelicidade interior, um esforço corajoso e, muitas vezes, bem-sucedido em negar e se esconder da inescapável tragédia de suas próprias vidas.


Não gostamos de confrontar o sofrimento humano dessa maneira. Eu pessoalmente penso ser extremamente doloroso. Mas se quisermos ser honestos conosco mesmos, devemos lembrar quão escura a sombra é em algumas vidas. Temos de nos lembrar o que é este sofrimento enquanto consideramos as explicações que podem ser oferecidas para reconciliá-lo com a existência de um Deus amoroso que controla os eventos do mundo.


As Justificativas Para o Sofrimento


É possível reconciliar a existência do sofrimento desmerecido com a existência de um Deus amoroso que é responsável pela vida e pela morte, pela boa sorte e pelo infortúnio, apenas se todo esse sofrimento for adequadamente explicado como (1) um teste, (2) como sendo para o próprio bem daquele que sofre, ou (3) como sendo para o bem do mundo, sendo de qualquer forma sempre para o “bem”. Argumentarei aqui que essas explicações são inadequadas e insustentáveis. Isso não é argumentar contra Deus. É argumentar a favor de Deus, é libertar Deus de algumas idéias humanas que fazem injustiça para com Deus e para conosco mesmos.


1. O Sofrimento como um Teste

Uma explicação possível para o sofrimento é que ele seja um teste. Um teste de nossa fé, a nós imposto por Deus.2 Mas se isso tem que se encaixar com a imagem de um Deus amoroso, deve haver uma boa razão, então, para que um Deus amoroso nos teste. Qual seria essa razão?


Por quê precisamos saber? Por quê não podemos simplesmente dizer que Deus nos testa com o sofrimento por uma razão perfeitamente boa e amorosa, e que não temos nenhuma idéia de que razão possa ser?


Claro que qualquer um que queira pode dizer simplesmente isso. Mas isso seria o mesmo que dizer: “Eu creio que Deus tenha uma boa razão para nos testar porque eu quero acreditar nisso, independentemente de como isso se encaixe com a realidade ou com a razão”. Enquanto qualquer um possa dizer isso, eles não podem esperar que o resto de nós se deixe levar por seu argumento.


Quando temos duas proposições que parecem superficialmente ser irreconciliáveis, o peso da prova está com aqueles que oferecem uma conciliação. Certamente o mal do sofrimento no mundo e o controle amoroso de Deus no mundo não são facilmente e obviamente reconciliáveis. Qualquer pessoa que afirme que são, deveria pelo menos indicar como isso é possível.


Então, a não ser que queiramos deixar de pensar cuidadosamente, precisamos nos perguntar quais seriam as razões possíveis para que Deus nos teste com o sofrimento, e estas razões se encaixam com o fato de Deus ser bom e amoroso? Até onde posso ver, há apenas uma razão para que Deus teste alguém: para averiguar se aquela pessoa está qualificada para, ou se merece, certas recompensas ou privilégios. Assim, estudantes devem ser testados para se ver se dominaram um assunto suficientemente bem para receberem uma nota de aprovação. Antes que qualquer um receba uma carteira de motorista deve mostrar que é capaz de dirigir um veículo e que está familiarizado com as leis de trânsito, então o candidato é testado nessas duas áreas. Freqüentemente candidatos para um emprego são testados. Em todos esses casos as habilidades e conhecimentos necessários são testados e a recompensa é concedida ou não, de acordo com os resultados do teste.


Então, se Deus nos testa, deve ser um teste de nossa fé ou de nossa bondade por uma necessidade de saber se somos merecedores de certas recompensas possíveis. Isso certamente se encaixaria com o amor e a justiça desde que os testes fossem administrados de maneira justa e fossem apropriadamente recompensados. Mas há dois problemas com isso.


Problema nº1: Isto exige que você diga que Deus precisaria testar nossa fé para que soubesse quão forte ela é. Isto é o mesmo que dizer que Deus não conhece todas as coisas, que não conhece nosso ser interior ou que não saiba como reagiríamos a certos eventos. Se Deus soubesse disso, o teste não seria necessário. Claro, para certas pessoas não há nenhum problema em afirmar que o conhecimento de Deus seja limitado desta maneira, mas você deveria saber que esta é a implicação aqui.


Problema nº2: O teste do sofrimento não é administrado de maneira justa nem é apropriadamente recompensado. Não é administrado de maneira justa porque nem é dado igualmente a todos, nem é dado apenas àqueles cuja fé ou bondade sejam seriamente questionáveis. Lembre-se de Jó.


E como se pode afirmar que “passar” no teste do sofrimento possa ser recompensado? Todos sabemos que a aprovação nesse teste nem sempre é recompensada nesta vida. Na realidade, em muitos casos ela destrói uma vida. Então, qualquer recompensa deve vir em uma vida após a morte. Mas aqueles dentre nós que acreditam em uma vida após a morte também acreditam que ela esteja disponível pelo menos a todos os fiéis. Como, então, são os fiéis que sofreram mais recompensados mais que os fiéis que sofreram menos? É concebível que aqueles que sofreram mais nesta curta vida estejam conseqüentemente melhores na eternidade? Se este for o caso, então é manifestamente injusto que apenas alguns de nós tenhamos que ser testados dessa maneira.


Conclusão: para que expliquemos como um Deus amoroso nos causasse o sofrimento como uma forma de teste, temos de supor que o conhecimento de Deus seja limitado, temos de explicar a aparente seleção aleatória de pessoas para que sejam testadas, e temos que postular um complicado sistema de recompensas na vida após a morte para que os diferentes graus de severidade do teste sejam apropriadamente recompensados. E ainda teríamos de explicar como seria justo que alguns tivessem uma oportunidade de receber estas recompensas enquanto outros não.


Não acredito que isso seja possível. É muito embaraçoso e muito complicado. Força-nos a ver Deus como um maquinador ou como um programa de escolha aleatória. O conceito de Deus que tudo isso exige não se encaixa com o Deus amoroso de nossa fé cristã.


2. O Sofrimento é Para o Nosso Próprio Bem

A segunda explicação possível é a de que o sofrimento seja para o nosso próprio bem. Ou seja, mesmo que não seja merecido como punição, ele nos traz alguma melhora de forma que estamos melhores por conta do que aconteceu.


Um exemplo claro disso seria uma pessoa que estivesse indo para o aeroporto para uma viagem de férias, e que se envolve num acidente de trânsito e acaba indo parar no hospital com uma perna quebrada, apenas para descobrir que o avião que pegaria caiu e todos abordo morreram. Obviamente, a dor de uma perna quebrada e de férias fracassadas é mais do que compensada por se ter a vida salva.


Um outro exemplo poderia ser a doença que ataca um profissional dinâmico e trabalhador que tem buscado o sucesso material à custa da exclusão de sua família e de outros interesses, excluindo aquilo que é importante na vida. Se um problema cardíaco ou outra doença física o força a diminuir suas atividades por um tempo, e se isso lhe dá a oportunidade de observar sua própria vida e ele percebe que ele tem deixado de lado as coisas importantes da vida pelas coisas menos importantes, então qualquer dor física e qualquer dano à sua carreira seria mais que compensado pela recuperação de seu senso de valores, pela reparação de seu próprio ser.


Coisas assim realmente acontecem. Às vezes uma experiência dolorosa se torna um momento de sorte para nós. Às vezes, uma ocasião particular de sofrimento claramente produz um resultado muito desejado. Com muito mais freqüência, o sofrimento oferece uma lição muito valiosa para nós. Pode melhorar nosso caráter, dar-nos humildade e paciência, ajudar-nos a conhecer a nós mesmos, e fazer com que compreendamos o sofrimento de outras pessoas.


Tudo isso é verdade. O sofrimento pode realmente levar ao bem. Pode ser até que algo bom venha da maioria dos sofrimentos. Mas essa não é a questão. A questão é, algo de bom realmente vem do sofrimento ao ponto de podermos atribuir o seu mal a um Deus amoroso?


Em alguns casos, sim. Uma vida salva é obviamente mais importante que uma perna quebrada. E certamente há muitos casos de sofrimento nos quais o significativo crescimento da maturidade ou sensibilidade ou o redirecionamento de uma vida são mais importantes que a dor sofrida. Mas devemos ser cuidadosos aqui. Devemos evitar dizer que já que o bem decorrente do sofrimento excede em valor o mal em algumas circunstâncias das quais estamos cientes, deva ser verdade que o bem decorrente exceda em valor o mal em todas as ocasiões. Essa seria uma generalização injustificada, pois também há exemplos de sofrimento nos quais não há nenhum bem discernível para o sofredor ou muito pouco para o preço pago.


Considere a experiência muito comum de se perder um cônjuge por meio da morte. Pode ser que com o tempo a viúva ou viúvo desenvolva novas habilidades, ou uma fé mais profunda, ou um melhor caráter, ou pelo menos sensibilidade e compaixão por outros. Algo de bom pode surgir que de outra forma não surgiria. Mas a perda de um cônjuge é uma experiência violenta e perturbadora, e eu duvido que os benefícios excedam a dor.


Ou considere uma forma de incapacitação qualquer. Dois anos disso é suficiente para ensinar a uma pessoa tudo o que ela pode aprender a respeito de paciência, caráter, e compaixão. E depois disso? O que pode surgir de bom depois de longos anos adicionais de sofrimento? Que bem possível pode recompensar uma pessoa por ter de passar sua única vida na prisão da incapacitação?


Ou considere aqueles que morrem jovens. Que bem poderia surgir disso para aquele que teve sua vida encurtada? Isso apenas poderia ser para o bem daquela pessoa se de outra forma ela ou tivesse sofrido indescritivelmente ou se tornasse má e perdesse uma recompensa divina. Mas então, por quê Deus permitiria que outros sofressem tanto e se tornassem maus? E se Deus está no controle, isso não poderia simplesmente ser evitado?


Eu simplesmente não acredito que todo jovem que morre teria, de outra maneira, sofrido muito ou se tornado mau. Não posso acreditar que todo evento de sofrimento desmerecido seja equilibrado ou apagado pelo bem que resulta dele para o sofredor. Meus olhos, minha mente, e meu coração me dizem uma outra coisa. E isto é apenas em resposta aos casos individuais de sofrimento, sem nem mesmo considerar a fome, a calamidade, a guerra, e a destruição.


Uma resposta comum a isso seria algo assim: “Claro que não podemos ver o bem nisso. Não sabemos todas as coisas. Não vemos com os olhos de Deus. Não sabemos o que teria acontecido com essas pessoas, se elas tivessem continuado saudáveis ou tivessem vivido mais tempo. Mas se não podemos saber isso, Deus sabe. Deus vê que da maneira como as coisas acontecem realmente é para o bem, mesmo que não entendamos como”.


Isso constitui a terceira explicação possível para o sofrimento desmerecido para aqueles que acreditam que Deus é amoroso e está no controle.


3. É Para o Melhor

Dizer que seja “para o melhor” é afirmar que mesmo que não seja o melhor para o sofredor individual, as conseqüências desse sofrimento são tais que o mundo está melhor por causa dele. Esta afirmação deve ser feito a respeito de todo e cada caso de sofrimento desmerecido. Isso é mais fácil do que se poderia esperar, pois os proponentes desta linha linha de pensamento geralmente não pensam ser necessário sugerir como este sofrimento poderia ser para o melhor, apenas sugerem que é melhor.


Assim, esta explicação de como um Deus amoroso e que está no controle pode ser harmonizado com o sofrimento é mais uma afirmação de crença que uma explicação do que quer que seja. Apela mais para nossas necessidades emocionais que para nossa lógica. Temos de escolher entre duas compreensões do mundo – uma na qual um Deus amoroso é responsável pelo sofrimento, que portanto nos assegura que é “para o melhor”, e outra na qual é simplesmente aparente que todo esse sofrimento não poderia ser para o melhor.


Não importa o quanto eu gostaria de acreditar que tudo seja para o melhor, penso ser isso impossível de se fazer. Como poderia ser possível? Como poderia ser “para o melhor” de alguém morrer uma morte lenta e agonizante de câncer? Como pode este tipo de morte ser melhor para aquela pessoa, ou para sua família, ou para o mundo, do que se tivesse morrido de maneira menos dolorosa? E mesmo que ocasionalmente um grande benefício espiritual resulte de um desses casos, e o que dizer de todos os outros? É realmente possível que possa haver algo indescritivelmente terrível reservado para cada pessoa que morre dessa forma, ou para o mundo, que apenas esse tipo de sofrimento e morte possa evitar? É concebível que o futuro do mundo dependa do sofrimento de cada um desses indivíduos? É possível que o universo seja construído de forma tal e que esteja em perigo de um horror tão inimaginável que esteja muito melhor por causa da morte num acidente de trânsito em Iowa, e da vítima de tortura na América do Sul, e da criança faminta na Etiópia? Quando esses são multiplicados por milhões?


Eu simplesmente não posso acreditar nisso.


Não é possível harmonizar a crença num Deus amoroso com a crença num Deus que esteja no controle de eventos na terra. Temos de escolher um ou outro. Já que Jesus Cristo ministrou em favor do Deus de amor e não a serviço do Deus de poder terrestre, nós que seguimos Jesus deveríamos escolher o Deus amoroso. Não podemos fielmente crer num Deus que seja um constante puxador-de-cordas e que seja controlador dos eventos terrestres, pois fazê-lo é negar que este Deus seja amoroso.


Pode Deus Ocasionalmente “Estalar Os Dedos”?


Não poderia a crença num Deus como interventor intermitente se harmonizar com nossa fé num Deus amoroso?


Penso que não. Se Deus intervém em apenas algumas circunstâncias e não em outras, devemos perguntar o por quê. Seria uma coisa se nos fosse mostrado que Deus é limitado a certas intervenções por algum princípio moral importante, ou pela natureza dos eventos, ou pelas habilidades limitadas do próprio Deus. Se fosse este o caso, poderíamos pelo menos dizer que Deus faz tudo que é possível ou apropriado.


Mas se algumas curas, ou reconciliações, ou fugas estreitas são o resultado da intervenção de Deus, então o que dizer de casos semelhantes onde não há cura, não há reconciliação, não há fuga, não há intervenção? Se Deus pudesse intervir em alguns casos, qual poderia ser a razão por não intervir em outros casos nos quais uma intervenção fosse necessária? Não podemos dizer que Deus não possa fazer isso, se dissermos que ele o fez em outras ocasiões. Dizer que seja “para o melhor” ´é voltar aos argumentos fracos considerados acima. Certamente aqueles que se beneficiam de supostas intervenções não são mais merecedores que muitas outras pessoas que não são tão afortunadas.


Deus como um interventor ocasional é tão mau quanto Deus em pleno controle de tudo, o que nos dá uma imagem de um ator arbitrário e caprichoso, evitando, às vezes, ajudar as pessoas que mais merecem ajuda que é desesperadamente necessária. Isto não está em harmonia com nosso conceito de um Deus amoroso.


Conclusão


Aqui fomos forçados por nossa honestidade e integridade a confrontar o problema do sofrimento. Essa não é uma tarefa prazerosa, mas uma fé que não possa fazer isso não é merecedora do nome. E podemos repetir que usualmente a vida não é tão escura assim para as pessoas. Mais importante, devemos clarificar o papel de nossa fé aqui. Não somos chamados para explicar ou justificar o infortúnio. O que somos chamados a fazer é levar nosso amor àqueles que estão na dor, ajudar aqueles em necessidade, clarear os dias escuros e as vidas escuras com a luz de nosso cuidado. Esse é o papel crucial de nossa fé em resposta ao sofrimento – isso, e sofrer com as pessoas em nosso cuidado por elas. O dever da fé aqui é ser honesta a respeito do problema e assim ser capaz de ministrar àqueles que sofrem. E podemos trazer luz, alegria e amor às vidas das pessoas.


Iniciamos dizendo que precisamos de uma maneira de falar a respeito de Deus que seja sensível e fiel, e fomos forçados a concluir que falar de Deus como se controlasse todos os eventos neste mundo ou como se esporadicamente interviesse para causá-los não é nem sensível nem fiel. Reconhecemos exceções do senso comum nas áreas de motivação humana e alguns aspectos da saúde e doença, que serão discutidas depois. Entretanto, devemos concluir a este ponto que falar de Deus como se determinasse eventos no mundo, como se constantemente ou ocasionalmente “estalasse os dedos” em nossos processos normais, não é inconsistente nem com nosso senso comum nem com nossa fé cristã em um Deus amoroso.


Isto, claro, dá origem a perguntas a respeito dos milagres na Bíblia. Nos voltaremos a isso, e depois a conseqüentes questões a respeito de Jesus de Nazaré e da doutrina cristã antes de voltarmos a considerar a fala a respeito de Deus.


Notas:

1. William de Ockham foi um filósofo/teólogo do século XIV que disse: “Essentia non sunt multiplicanda praeter necessitatem” (as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário), e que argumentou que a teologia deveria ser racional e lógica, considerando que a fé é uma questão de fé e deve ser mostrada em sua forma de vida. Ao que eu digo “É isso aí, irmão William!”


2. Alguns, sem dúvida alguma, explicariam o sofrimento como um teste de nossa fé pelo “diabo”. Mas se houvesse um “diabo” que pudesse fazer isso sozinho, então Deus não controlaria tudo e não seria responsável por esse sofrimento, que é a conclusão que eu alcanço de qualquer maneira. Se o “diabo” precisa da permissão de Deus, então Deus ainda é o responsável.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Cristianismo e Senso Comum (2)

A Bíblia

"Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho." (Salmos 119:105)

O que é a Bíblia? Qual o seu uso apropriado? Qual sua autoridade para nós, e por quê? Como podemos abordá-la fielmente?

Para começar com algumas declarações com as quais todos concordariam: a Bíblia é uma coleção de dezenas de livros, escritos por muitos autores diferentes em um período de mais de mil anos. Esta coleção de livros passou por um longo, e muitas vezes complexo, processo de seleção (e em muitos casos, edição) antes que chegasse à sua forma presente. Ela contém uma variedade de materiais, incluindo algumas das tradições, histórias, costumes, leis, narrativas, ensinamentos, salmos, e profetas de um pequeno povo do Oriente Médio chamado de Hebreus ou Judeus. Também inclui alguns dos primeiros escritos dos seguidores de Jesus de Nazaré. Estes incluem narrativas de seu ministério e ensinos, reflexões a respeito de quem ele foi, e reflexões a respeito das crenças e práticas apropriadas para seus seguidores.

Esta coleção de escritos também serve como base para a religião cristã.


Fonte de Nossas Verdades Religiosas


Este é nosso ponto de partida: a Bíblia como fonte de nossas verdades religiosas. Isto não é o mesmo que dizer que seja a única fonte, mas os cristãos sempre reconheceram a autoridade da Bíblia para nossas crenças e práticas religiosas, mesmo que possamos nem sempre agir de acordo com ela. Buscamos na Bíblia discernimentos a respeito da natureza de Deus, da natureza de nossa relação com Deus e com o mundo e de uns com os outros, e do tipo de vida que seja apropriada para com estes. Procuramos nela valores e atitudes básicas. Estas são todas as preocupações próprias da religião.

Mas se buscamos na Bíblia verdades religiosas como essas, não significa que também busquemos nela respostas válidas no campo das ciências físicas, ou medicina, ou astronomia, ou geografia. Não buscamos nela respostas a respeito de reparos domésticos, ou tecnologia moderna, ou teoria econômica, ou das leis do Estado de Nova Iorque. E enquanto ela possa ser de ajuda a pessoas estudando história, ou arqueologia, ou sociologia, com respeito a um certo período em uma pequena região do Oriente Médio, ela é muito dificilmente o lugar onde procuraríamos um resumo do conhecimento atual nestas áreas.

Afirmamos que a Bíblia seja a fonte de nossas crenças religiosas. Não precisamos afirmar que ela tenha autoridade em todos os ramos do conhecimento humano.

Mas também a chamamos de a “Palavra de Deus”. O que isto significa? Não significa que a Bíblia deva ser perfeita? Não deve ela, então, estar livre de erros e ser infalível nos temas dos quais ela trata?

Ao chamar a Bíblia de Palavra de Deus, queremos dizer que Deus a escreveu com pena e tinta? Claro que não. Por “Palavra de Deus” nos referimos a verdades a respeito de Deus e de Deus que foram compreendidas e registradas pelos autores bíblicos.

Mas algumas pessoas querem dizer algo bem diferentes disto quando falam em “Palavra de Deus”. Há, na verdade, várias maneiras de delinear o que constitui a Palavra de Deus, e por que. Todas têm um lugar na tradição da Igreja, e todas podem apontar uma base na própria Escritura. Mas nem todas são adequadas para lidar com a diversidade mais ampla da Bíblia, e nem todas se encaixam com o nosso senso comum. Uma idéia tradicional que é muito popular hoje, e com a qual devemos lidar antes de prosseguirmos, é o literalismo ou inerrância bíblica.


Literalismo Bíblico (Inerrância)


O literalismo bíblico afirma que toda a Bíblia é a Palavra de Deus porque ela é divinamente inspirada. Cada escritor de cada livro na Bíblia foi divinamente inspirado e guiado no que ele escreveu, então todas as declarações a respeito de todo assunto em toda a Bíblia é literalmente verdade, sem erro.

Há quatro problemas sérios com o literalismo bíblico: (1) ele nega a centralidade de Cristo; (2) ele exige um conceito de inspiração divina que nega a humanidade do autor; (3) ele requer que acreditemos que a Bíblia não queira dizer o que diz; e (4) ele está em oposição à fé em Deus. Certamente os literalistas bíblicos não intencionam tudo isso. Mas é para aí que sua devoção mal-direcionada e seus esforços mal-orientados com segurança os leva.


1. Literalismo Bíblico versus A Centralidade de Cristo

O literalismo bíblico nega a centralidade de Jesus, o Cristo. Se somos cristãos, então certamente isso significa que a vida e os ensinos de Jesus, o Cristo, dêem-nos a compreensão mais verdadeira a respeito de Deus, e que esta compreensão seja o ponto de referência contra o qual medimos outras interpretações. Mas se tudo na Bíblia for verdade divinamente inspirada, então tudo é igualmente verdade. Declarações no Antigo Testamento a respeito de Deus ou sobre como tratarmos nosso próximo seriam tão verdadeiras e impositivas quanto aquelas nos Evangelhos.

Para tomar apenas um exemplo, devemos então estar dispostos a dizer que Deus realmente mandou Josué matar todos os homens, mulheres e crianças nas cidades de Jericó e Ai (Josué 6-8). É este o mesmo Deus pregado por Jesus, que nos deu o mandamento de amarmos nossos inimigos? Mesmo que se acredite que Deus falou com Josué, como poderia um cristão acreditar que Deus ordenaria uma carnificina indiscriminada? Não devemos dizer, pelo menos, que Josué ouviu erroneamente, que ele tenha tomado erroneamente o costume cultural de “guerra santa” como mandamento divino? Mas o literalista bíblico não pode fazer isso, e tem que insistir que as palavras de Josué e Elias, Eclesiastes e Jó, são tão verdadeiras quanto qualquer coisa que Jesus tenha dito, e portanto, presumivelmente tão importante quanto. Isso nega a centralidade de Cristo e remove a possibilidade de ele ser nosso ponto de referência.

Muitas pessoas lidam com este problema com a idéia de “revelação progressiva”. Esta é a crença de que nós temos na Bíblia uma revelação de Deus – por Deus – que se torna gradualmente mais completa. Assim, os livros mais antigos da Bíblia refletem a revelação menos completa e menos exata de Deus, com uma progressão para uma revelação muito mais completa nos grandes profetas, e culminando na revelação final e completa em Jesus Cristo.

Em geral, não parece haver um avanço na compreensão de Deus com o progredir da Bíblia. Mas isto não é uniforme; eu estaria mais propenso a tomar Provérbios ou Eclesiastes que Isaías. E mesmo que haja, de forma geral, uma compreensão melhorada a respeito de Deus, dizer que isto seja por causa de uma revelação divina progressiva e não por causa de nossa própria melhor compreensão com o passar dos anos é o mesmo que dizer que nossa ignorância prévia seja culpa de Deus por não nos revelar logo, parece muito pouco necessário por a culpa da ignorância humana na reserva divina, ou imaginar Deus racionando cuidadosamente crescentes doses de auto-revelação.

De qualquer maneira, “revelação progressiva” também significaria que compreensões mais antigas a respeito de Deus eram inadequadas até certo ponto. Isto nos deixa precisando de critérios pelos quais decidir o que no Antigo Testamento é realmente Palavra de Deus. Enquanto eu penso que isso seja apropriado e necessário, seria uma opção muito improvável para o literalista bíblico, para quem todas as partes da Bíblia são igualmente verdadeiras.


2. Literalismo Bíblico versus A Humanidade dos Autores

O Literalismo bíblico requer uma compreensão de inspiração divina que nega a humanidade dos autores e desafia o senso comum.

As pessoas que escreveram os diferentes livros da Bíblia eram seres humanos. Eles tinham preconceitos, eles compartilhavam da maioria das opiniões de seu lugar e tempo particulares, e eles cometeram erros. Ainda assim, pedem-nos que acreditemos que quando eles escreveram a respeito da captura de Ai ou da vida de Jesus eles repentinamente deixaram de ser afetados por aqueles preconceitos e pressuposições. Como é que uma pessoa que é tão humana quanto você ou eu poderia repentinamente se tornar livre de erros, quando escrevendo um livro que seria mais tarde incluído na Bíblia? (Lembre-se que esses livros não foram reconhecidos como Escritura até uma data posterior.)

A única forma que isso poderia ocorrer seria se algum poder infalível tomasse esses escritores, suprimisse sua humanidade, e os usasse como instrumentos de escrita da mesma forma como você e eu usamos uma caneta. Não posso ver como essa idéia de usar as pessoas pode se encaixar com a visão cristã de Deus. Nem se encaixa com nosso senso comum.

Ademais, parte da grande atração da Bíblia está precisamente na diversidade humana que ela exibe. Alguém precisa apenas abordá-la com uma mente aberta para ver que seus autores não eram meros robôs, mas seres humanos com seus próprios discernimentos, virtudes, costumes, fé, e – como todas as pessoas – suas próprias concepções errôneas e enganos. O valor, sabedoria e charme da Bíblia está em ver seu povo e seus autores lutando com sua fé, da mesma forma como você e eu fazemos. Dizer que o que essas pessoas escreveram é perfeito como está é removê-los dessa luta que compartilhamos como humanos.

É possível, claro, entender inspiração divina de forma tal que não nos torne robôs. Mas tal compreensão não pode servir de base para a inerrância bíblica.


3. Literalismo Bíblico versus A Bíblia

O literalismo bíblico requer que acreditemos que a Bíblia não queira dizer o que ela diz. Essa não apenas não é uma abordagem fiel, mas também significa que o literalismo bíblico nega a verdade literal da Bíblia que ela pretende defender.

Vejamos um exemplo disso: A primeira de muitas contradições na Bíblia está logo no começo, nos dois primeiros capítulos de Gênesis. Gênesis 1 conta-nos que as pessoas foram criadas por Deus depois de todas as plantas e de todos os outros animais. Gênesis 2 conta-nos que Adão foi criado antes de todas as plantas e animais. O que fazemos com isso?

Pessoalmente, eu não estou nem um pouco perturbado com isso. O tempo e o lugar da origem da espécie humana não é uma questão religiosa. Não é uma questão para a qual eu busque resposta na Bíblia. É uma questão para a ciência, para ser respondida por paleo-antropólogos, se e quando eles forem capazes de ter informações suficientes.

O que fazemos com essa diferença nas duas narrativas da criação é, primeiro, reconhecê-la, e segundo, explicamos que as duas estão lá porque cada uma foi parte de uma das duas ou três tradições sacras unidas por um editor para formar o livro de Gênesis. Cada uma delas era tradição sacra; nenhuma podia ser descartada. Ademais, cada uma faz declarações religiosas importantes – e diferentes. Esses são os aspectos das narrativas que têm autoridade para nós. O capítulo 1 conta-nos a respeito da bondade da criação (o mundo nem deve ser evitado, nem adorado) e de nossa relação com Deus. O capítulo 2 conta-nos a respeito de nossa necessidade mútua, a respeito de nossa mordomia para com a Terra, e que o conhecimento do bem e do mal é o que nos separa de outros animais e o que nos torna humanos.

Então, as contradições quanto à ordem da criação em Gênesis 1 e 2 não afetam os pontos religiosos. Mas o literalista bíblico não pode admitir essa contradição. Ele ou ela tem de insistir que as duas declarações – a de que as pessoas foram criadas depois de todas as plantas e animais, e a de que foram criadas antes – sejam verdadeiras. Isso, claro, é manifestamente impossível.

O literalista bíblico está, entretanto, disposto a admitir que haja aparentes contradições na Bíblia. Em muitos casos a contradição é, de fato, apenas aparente, e um estudo mais atencioso do contexto e sentido mostrará que esse é o caso. Mas em muitos outros casos não é tão facilmente resolvida. Destemido, o literalista assume o desafio de mostrar que que opostos podem concordar. Isso é feito recorrendo-se ao argumento da “compreensão mais elevada”, que funciona como segue: "Se você pensa que essas duas passagens se contradizem, então você não as entende realmente. Em nossa compreensão humana limitada elas parecem se contradizer. Mas na verdadeira compreensão, uma “compreensão mais elevada” que a nossa, que nossas mentes limitadas podem nunca alcançar, não há contradições nas Escrituras”.

Eu prontamente admito que minha própria compreensão não é perfeita. Entretanto, minha compreensão limitada é suficiente para saber que “depois” é o oposto de “antes”. Dizer que “depois das plantas” não seja o oposto de “antes das plantas” é dizer que “antes” e “depois” não signifiquem “antes” e “depois”. Dizer que a narrativa da criação na qual os humanos foram criados por último não contradiga a narrativa na qual Adão é criado antes das plantas e dos animais, é dizer que a Bíblia não quer dizer o que diz. Isso, claro, é negar que ela seja literalmente verdadeira. Assim, para defenderem sua visão, os “literalistas” têm na verdade que negar a verdade literal da Bíblia!

Confrontados com inegáveis contradições se tomarmos as palavras da Bíblia em seu sentido normal, muitos defensores do literalismo bíblico escolhem defender a inerrância da Bíblia abandonando seu sentido literal. Essa é uma forma abstrata de inerrância que mantém que a Bíblia seja verdadeira, não que ela diga o que ela diz, e faz uso desenfreado do argumento da “compreensão mais elevada”. No caso de aparentes contradições e erros, nos é garantido que a verdadeira interpretação dessas passagens, a “compreensão mais elevada”, os eliminará.

Há vários problemas com isso. O primeiro, como já notamos, é que isso envolve negar o sentido literal dessas passagens. Se duas passagens aparentemente contraditórias são verdadeiras na compreensão mais elevada, isso significa que pelo menos uma delas não queira dizer o que diz, o que significa que seja verdade (na “compreensão mais elevada”) precisamente porque é falsa (no sentido literal).

O segundo problema é que em muitos casos temos que admitir que nossas mentes limitadas não podem descobrir a “compreensão mais elevada” que resolve as contradições. Isso significa que estamos defendendo a verdade da Bíblia ao custo de ala não fazer nenhum sentido. Mas se não sabemos o que ela queira dizer, por que importaria se é verdadeira? Você sabe o que “xbvlg” significa? Faz então algum sentido estar preocupado a respeito de sua verdade? E não é aí que estamos se “antes” não for o oposto de “depois”?

O terceiro problema é que essa “compreensão mais elevada” dá às pessoas rédeas livres para reinterpretarem a Bíblia a fim de que ela signifique o que eles quiserem, contanto que possam argumentar que essa seja a verdadeira e “mais elevada” compreensão. Isso é precisamente usar a Bíblia para se encaixar às nossas próprias noções, retorcê-la para justificar nossas próprias idéias preconcebidas em vez de estarmos abertos à mensagem que ela traz. E é ainda uma outra forma de que essa defesa da “verdade” da Bíblia seja possível apenas sacrificando a integridade de seu sentido.

Muitas pessoas que se voltam para o literalismo/inerrância, reconhecem que esses problemas existem. Afinal, como se pode defender a Bíblia, insistindo que ela não diga o que diz? Algumas dessas pessoas evitam isso, postulando que a versão original de cada livro era divinamente inspirada e era literalmente verdadeira e inerrante. Quaisquer erros ou contradições se devem aos erros dos editores e escribas que transmitiram esse material.

Entretanto, cada versículo na Bíblia passou por muitos escribas, e em alguns casos editores, antes mesmo que nossas mais antigas cópias existentes fossem feitas. Portanto, é deixado para nós decidirmos sobre cada passagem em sua forma presente como se a inspiração divina não tivesse sido reivindicada. Isso nos faz perguntar por que alguém reivindicaria inspiração divina para uma versão original “imaculada” que eles admitem não existir mais.


4. Literalismo Bíblico versus Fé em Deus

Na análise final, o literalismo bíblico fica em oposição à fé em Deus e à adoração de Deus, pois substitui estas com a idolatria da Bíblia.

A verdadeira razão pela qual tantas pessoas insistem na infalibilidade divinamente inspirada da Bíblia é muito compreensível e muito humana: eles estão tentando preencher sua necessidade de segurança. Se você tem um livro perfeito em suas mãos ou ao lado de sua cama, isso certamente deve aliviar um pouco da ansiedade de lidar com este nosso mundo imperfeito e frequentemente confuso. Algumas pessoas adicionam a isso o conforto de ter todas as respostas logo ali naquele livro, o que faz-lhes evitar o desconforto agudo de terem de pensar sozinhas ou tomar suas próprias decisões morais. É muito mais seguro ter Deus em um livro perfeito do que ter de buscar Deus nas áreas sombrias e nas incertezas do mundo! Mas não é este nosso antigo desejo de possuir Deus, de capturar Deus em algum tipo de gaiola humana (ou estátua, ou livro) para garantir nossa segurança?

O literalista bíblico afirmará que ele ou ela confia em Deus mais do que eu. Na realidade o oposto é a verdade, pois eles estão dispostos a confiar em Deus apenas se esses milhões de palavras escritas num período de séculos de dois a três milênios atrás forem todas literalmente verdade, enquanto que minha fé em Deus não depende disso.

Seu argumento segue assim: “A Bíblia é a Palavra de Deus. Se Deus é confiável, então a Palavra de Deus deve estar livre de erros. A Bíblia, então, constitui o único guia perfeito em um mundo de incerteza e imperfeição. Por outro lado, se a Palavra de Deus não for confiável, não apenas não há guia certo neste mundo, mas também Deus não é confiável, e assim não é merecedor de nossa fé”.

Mas o que eles realmente estão dizendo é isso: “Declaro ser a Bíblia a Palavra de Deus, e com isso quero dizer que a Bíblia é literalmente verdadeira e sem erros. E se eu estiver errado, então não posso confiar em Deus”.

Claro, isto não faz nenhum sentido. Se fizermos uma afirmação particular a respeito da Bíblia, e estivermos errados, isto levanta dúvidas a respeito de nosso conhecimento, ou nossa confiabilidade neste campo. Nosso erro de forma alguma afeta a confiabilidade de Deus. Mas muito frequentemente insistimos em crer no que queremos a respeito de Deus, e tratamos qualquer ameaça a nosso sistema de crença como um desafio a Deus.

Na verdade, frequentemente precisamos ter nossas próprias crenças desafiadas precisamente para abrirmos nossas mentes e corações à real grandeza de Deus. Então, um desafio às nossas crenças pode ser um apoio a Deus, e não um ataque a Deus. Esta é uma possibilidade que devemos manter em mente se não quisermos nos tornar intolerantes, farisaicos, e fechados à possibilidade de crescimento em nossa compreensão.

Ainda assim, podemos com certeza compreender o anseio que motiva o literalista, o anseio por segurança e por um guia certo. Quem entre nós nunca sentiu esta profunda necessidade de algo eterno e imutável ao qual se segurar? Quem nunca desejou a resposta perfeita e indubitável?

Este anseio não é facilmente satisfeito, e perde seu verdadeiro objetivo se se baseia em qualquer coisa além de Deus. Se basear em qualquer outra coisa é falhar. Atribuir perfeição ou veracidade eterna a qualquer coisa neste universo finito, muito menos coisas feitas por humanos ou possuídas por humanos, é insensatez. Ademais, clamar este tipo de perfeição ou infalibilidade para algo é adorá-lo, é clamar divindade para ele. E adorar qualquer coisa além do único Deus é idolatria. Não importa quão grande seja nossa necessidade por este tipo de segurança, Deus é muito grande para ser possuído por nós.

Afirmar que a Bíblia seja perfeita e infalível é substituir Deus por ela, é se envolver em idolatria, e fechar-nos à verdadeira fé em Deus. Nosso chamado é buscar Deus, usando a Bíblia como um guia. Nosso chamado não é buscar a Bíblia ou adorar a Bíblia. Devemos buscar Deus nos mares abertos da vida diária, com todas as suas incertezas e confusão e áreas sombrias, confiantes de que a grandeza de Deus esteja presente em todas as situações da vida.


A Alternativa Fiel

Qual é a alternativa ao literalismo bíblico como uma maneira de abordar a Bíblia? Uma alternativa, claro, é ir para o extremo oposto e rejeitar o livro inteiro como indigno de nossa atenção. Para aqueles que preferem escolhas preto-e-brancas, é certamente mais fácil ou aceitar inquestionavelmente ou rejeitar a Bíblia completamente. Mas a área de abordagem razoável para pessoas pensativas e investigadoras está entre estes dois extremos.

Na verdade, a abordagem mais fiel à Bíblia é também nos atrelarmos ao nosso senso comum. É mais fiel, e mais honesto e mais provável de resultar em compreensão própria para aceitar a Bíblia pelo que ela é, em vez de reivindicar em favor dela aquilo que queremos.

O que então é a Bíblia? Uma resposta do senso comum seria que é uma coleção de livros escritos por pessoas que, como nós, eram pessoas de seu tempo, e que como nós eram capazes de compreensões errôneas e enganos além de grandes discernimentos. E eles estavam, como nós, lutando com o sentido de sua fé e com sua compreensão de Deus em meio a triunfos e derrotas, alegria e desespero, estabilidade e caos. Descobrimos que nossa própria fé é informada e inspirada por suas lutas e fidelidade. E já que uma de nossas intenções em abordar os ricos e diversos recursos desse livro é entendê-lo melhor, então desejaremos saber como esses escritos surgiram, e o que os autores originalmente queriam dizer, e como foram afetados pelas crenças e eventos de seus tempos. Para fazer isto, receberemos todas as ferramentas que estão disponíveis para nós para iluminar a Bíblia: estudos de arqueologia, história e costumes antigos, e outras religiões do Oriente Médio, assim como os vários tipos de “criticismos” bíblicos que podem nos informar sobre o passado, desenvolvimento, e sentido do próprio texto.

Isto ainda deixa a questão de autoridade bíblica sem resposta. Para os cristãos, a resposta a isto depende do papel e autoridade que atribuímos a Jesus de Nazaré. Na realidade, a questão básica não é a respeito da autoridade da Bíblia mas a respeito da autoridade de Jesus Cristo.

Então, a tarefa é desenvolver uma interpretação da centralidade de Jesus que esteja de acordo com nosso senso comum. Antes de fazermos isso, devemos primeiro considerar como Deus age ou não, e o que isso significa para os milagres e outras formas de intervenção divina. Então examinaremos as formulações tradicionais da centralidade de Jesus que estão enraizadas em um senso comum diferente. Somente então, tentaremos uma reconstrução apropriada tanto de nossa fé como de nossa razão que nos dará uma forma de explicar a centralidade de Jesus.

Neste ponto, nos voltamos à questão de um Deus que “estala os dedos” - Deus intervém no mundo em ocasiões específicas?