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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O Evangelho Segundo "Q"

Q (da palavra alemã “Quelle”/fonte) é tecnicamente definida como o material que Lucas e Mateus têm em comum que não está presente em Marcos. Com poucas exceções, este material são os ensinos ou ditos de Jesus, levando muitos estudiosos a concluírem que Lucas e Mateus estivessem seguindo uma fonte escrita, talvez as primeiras coleções dos Ensinos do Rabino Yeshua, agrupadas na Palestina antes do ano 50 da Era Comum.

LUCAS / MATEUS

3:7-9,16b-17 / 3:7-10
[4:2b-12] [narrativa] [4:1-11]
6:20-23 / 5:3-12
6:27-37 / 5:43-48
6:37-42 / 7:1-5
6:43-45 / 7:17-20
6:47-49 / 7:24-27
[7:2-3,6-10] [narrativa] [8:5-13]
7:18-23 / 11:2-6
7:24-35 / 11:7-19
9:57-60 / 8:19-22
10:2-12 / 9:37-38, 10:7-16
10:13-15 / 11:21-23
10:16 / 10:40
10:21-22 / 11:25-27
10:23-24 / 13:16-17
11:2-4 / 6:9-13
11:9-13 / 7:7-11
11:14-21 / 12:22-28
11:24-26 / 12:43-45
11:29B-32 / 12:38-42
11:33-36 / 5:15, 6:22-23
11:39-40,42-43 / 23:25-26,23:6-7
11:46-48,52 / 23:4,29,13
11:49-51 / 23:34-36
12:2-3 / 10:26-27
12:4-5 / 10:28
12:6-7 / 10:29-31
12:8-10 / 10:32-33,12:32
12:11-12 / 10:19-20
12:22-31 / 6:25-33
12:33-34 / 6:19-21
12:39-40 / 24:43-44
12:42-46 / 24:45-51
12:51-53 / 10:34-36
12:57-59 / 5:25-26
13:20-21 / 13:33
13:24 / 7:13-14
13:25-29 / 25:10b-12,7:22-23
13:34-35 / 23:37-39
14:16-23 / 22:1-10
14:26-27 / 10:37-38
15:4-7 / 18:12-14
16:13 / 6:24
16:16 / 11:12
16:17 / 5:18
17:3-4 / 18:15,21-22
17:5-6 / 17:20
17:23-37 / 24:26-27,34-41
19:12-13,15-26 / 25:14-16,19-30
22:28-30 / 19:28

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A CRÍTICA BÍBLICA

Por muitos séculos os cristãos têm considerado a Bíblia como “Escritura Sagrada” e a têm estudado sem críticas, como se fosse um documento sacrossanto cujas narrativas são todas historicamente verdadeiras e cujos mandamentos são todos divinos, e portanto devem ser obedecidos. Esta filosofia, conhecida como Fundamentalismo, não é exclusiva ao Cristianismo, mas no contexto cristão, ela enfatiza a infalibilidade e inerrância da Bíblia em todos os seus detalhes, vendo a Bíblia como a verdade de Deus. Como resultado disso, aqueles que abraçam esta visão crêem que nada na Bíblia possa ser negado, ignorado ou questionado. A origem de um movimento explicitamente conhecido como “Fundamentalismo” é geralmente identificado com a publicação entre 1910 e 1915, nos Estados Unidos, de doze volumes conhecidos como “Os Fundamentos” - que surgiram no Evangelicalismo em reação à teologia liberal nas igrejas, ao darwinismo e às mudanças nos valores culturais.

A Crítica Bíblica (um termo técnico para o estudo histórico moderno da Bíblia) é a expressão mais comumente usada para o estudo da Bíblia que não acredita que essa abordagem literalista seja verdadeira para com os fatos, e que busca, por meio de uma análise mais científica, chegar a uma opinião crível de como e quando os livros da Bíblia surgiram.

Muitas pessoas podem ter a impressão de que a abordagem crítica ao texto bíblico seja um fenômeno comparativamente moderno, mas eles estariam incorretos; tais estudos nos escritos de estudiosos judeus e cristãos já aconteciam no século V da era cristã, apesar de ter sido no século XVIII que o processo começou a acelerar. No século XIX, o alemão Julius Wellhausen propôs a Hipótese Documental, declarando que o Pentateuco foi composto em vários estágios (a cada um do qual ele deu um título), que se estenderam de um período dos séculos IX ao VI a.C.. Ele descobriu inconsistências textuais, repetições, uso de diferentes nomes divinos, e outros fatores para substanciar suas opiniões.

Também no século XIX, o crescimento dos estudos arqueológicos no Oriente Médio levou a descobertas fascinantes (como o épico babilônico da Criação e a narrativa babilônica do Dilúvio) que substanciaram a opinião de que a Bíblia não fosse um texto único, mas um que fosse parte de seu ambiente cultural e histórico; mas que também corroborou a historicidade de muitas de suas narrativas, especialmente aquelas que datam de séculos mais recentes, como Reis, Isaías e Jeremias.

A obra de Wellhausen inspirou outros a olharem de forma crítica para o resto dos livros da Bíblia, e sua análise objetiva de textos específicos os esclareceu e o contexto nos quais foram escritos, assim como sua provável data.

Inevitavelmente tal ataque por parte dos estudiosos “objetivos” inspirou uma reação fundamentalista, e alguns indivíduos notáveis se puseram a desaprovar as teorias de Wellhausen e de seus discípulos. Quão convincentes eles conseguem ser é uma questão de preferência pessoal. Mais de cem anos depois de Wellhausen ter proposto suas teorias, elas não têm mais o nível de influência que já tiveram no biblicismo acadêmico, apesar de terem aberto (sem dúvida alguma) a porta para a compreensão acadêmica do texto bíblico que é seguido pela maioria hoje e ao qual, de forma mais ou menos extensa, a maior parte dos judeus e cristãos de mentes abertas subscrevem.

Para um cristão fundamentalista, todas essas teorias são anátemas, e um insulto à autoria e autoridade divinas; retire essas (a autoria e autoridade divinas), e você retira qualquer razão para se seguir a Bíblia, e até mesmo para se viver uma vida cristã.

Tais atitudes são inaceitáveis e desnecessariamente monolíticas. Para os Cristãos Progressistas, a crítica bíblica tem sustentado o que para nós é uma realidade óbvia, que a Bíblia é um documento humano. Sentimo-nos livres para dizer que há muito nela de inspirador, eterno, e além da reprovação; mas a análise dos estudos bíblicos acadêmicos também nos têm encorajado a dizer que há muitas coisas que são imperfeitas, triviais, e enraizadas em culturas e políticas antigas. Recusamo-nos a aceitar que o Deus no qual cremos tenha proposto alguns desses conceitos e leis, como, por exemplo: o apedrejamento até a morte de um filho rebelde; o ostracismo permanente da comunidade israelita para com os membros das antigas tribos canaanitas; as idéias machistas presentes nos ensinos do Novo Testamento; o exclusivismo cristão; etc. Só podemos compreendê-los como tendo emanado de uma mente humana, e como estando enraizados na cultura e na moralidade de seu tempo.

Isto não significa dizer que necessariamente excluamos a possibilidade de inspiração divina no texto bíblico, longe disso; a Bíblia é, apesar de tudo, um documento notável, repleto de sabedoria e discernimentos e expressa pensamentos e ideais que não podem ser facilmente concebidos como tendo emanado de algo que não fosse um extraordinário intelecto. Para muitos, o reconhecimento de que a Deidade esteja por trás dessa coleção de livros é nada menos que o óbvio, mas de nenhuma forma isso diminui o sentimento de que seja a obra de seres humanos e de que deva ser respondida como tal.

Especialistas da crítica bíblica, e os arqueólogos e outros cujo trabalho complementa o daqueles, têm libertado os cristãos e judeus modernos das correntes do dogma fundamentalista, têm acentuado a dignidade da Bíblia enquanto demonstram que ela é uma obra ricamente composta que deve sua inspiração a Deus, e têm mostrado a historicidade de muitos de seus textos em grau inigualável.

Suas teorias podem ser rejeitadas por tradicionalistas, para quem a análise científica e o dogma religioso sejam incompatíveis, mas elas são difíceis de rejeitar sob quaisquer outras alegações. Devemos muito à coragem daqueles cuja busca pela verdade os levou a tomar uma posição contrária à sabedoria recebida de forma não-crítica, e dos frutos de cuja pesquisa somos todos beneficiários.

domingo, 7 de outubro de 2007

AS AFIRMAÇÕES DE PHOENIX

(Versão Resumida)

A face pública do Cristianismo na América hoje tem pouco a ver com a fé histórica de nossos ancestrais. Representa ainda menos nossa própria fé como cristãos que continuam a celebrar os dons de nosso Criador, revelado e personificado na vida, morte, e ressurreição de Jesus Cristo. Encorajados por nossa experiência da presença transformadora do Espírito Santo de Cristo em nosso mundo, nos encontramos em um tempo e lugar onde não mais estaremos em silêncio. Nós, portanto, pomos um fim ao nosso silêncio, fazendo as seguintes afirmações:

Como pessoas que são alegre e não-apologeticamente cristãs, nos comprometemos completamente ao caminho do Amor. Nos esforçamos para expressar nosso amor, como Jesus nos ensina, de três maneiras: amando a Deus, ao próximo, e a nós mesmos.

(Mateus 22:34-40 // Marcos 12:28-31 // Lucas 10:25-28; Cf. Deuteronômio 6:5; Levítico 19:18)

O amor cristão a Deus inclui:
1. Caminhar completamente no caminho de Jesus, sem negar a legitimidade de outros caminhos que Deus possa prover à humanidade;

2. Ouvir a Palavra de Deus que vem através de oração e meditação diária, e do estudo dos testemunhos antigos que chamamos de Escritura, e observando a atividade presente de Deus no mundo;

3. Celebrar o Deus cujo Espírito permeia e cuja glória é refletida em toda a Criação de Deus, incluindo a terra e seus ecossistemas, o sagrado e o secular, o cristão e o não-cristão, o humano e o não-humano;

4. Expressar nosso amor na adoração que é tão sincera, vibrante, e engenhosa quanto é bíblico.

O amor cristão ao próximo inclui:

5. Incluir as pessoas autenticamente, como Jesus fez, tratando a todos como criações feitas à imagem de Deus, independentemente de raça, gênero, orientação sexual, idade, habilidade física ou mental, nacionalidade, ou classe econômica;

6. Ficar ao lado, como Jesus fez, do excluído e do oprimido, do denigrido e do afligido, buscando a paz e a justiça com ou sem a ajuda de outros;

7. Preservar a liberdade religiosa e a habilidade da Igreja de falar profeticamente ao governo, resistindo a combinação de igreja e Estado;

8. Caminhar humildemente com Deus, reconhecendo nossas falhas enquanto honestamente buscando entender trazer à tona o melhor nos outros, incluindo aqueles que nos consideram seus inimigos;

O amor cristão a si mesmo inclui:

9. Basear nossas vidas sobre a fé que em Cristo todas as coisas são tornadas novas e que nós, e todas as pessoas, são amadas muito além de nossa imaginação – pela eternidade;

10. Afirmar a sacralidade de nossas mentes e de nossos corações, e reconhecer que fé e ciência, dúvida e crença servem a busca da verdade;

11. Cuidar de nossos corpos e desfrutar dos benefícios da oração, reflexão, adoração, e recreação, além do trabalho;

12. Agir com a fé de que nascemos com um significado e propósito; uma vocação e ministério que serve para fortalecer e estender o domínio de amor de Deus.

CrossWalk America


OS 8 PONTOS DO CRISTIANISMO PROGRESSISTA

Ao chamarmo-nos de cristãos progressistas, queremos dizer que:

1) Tentamos compreender Deus através da vida e ensinos de Jesus;

2) Reconhecemos a fé de outras pessoas que têm outros nomes para o caminho que as leva a Deus, e reconhecemos que seus caminhos são verdadeiros da mesma maneira como nossos caminhos são verdadeiros para nós;

3) Compreendemos que o partilhar do pão e do vinho em nome de Jesus seja uma representação de uma antiga visão do banquete de Deus para todos os povos;

4) Convidamos todas as pessoas a participarem em nossa comunidade e em nossa vida de adoração, sem insistir que elas se tornem como nós para serem aceitas, incluindo, mas não se limitando a:
  • crentes e agnósticos;
  • cristãos convencionais e céticos;
  • mulheres e homens;
  • aqueles de todas as orientações sexuais e identidades de gênero;
  • aqueles de todas as raças e culturas;
  • aqueles de todas as classes e habilidades;
  • aqueles que esperam um mundo melhor e aqueles que perderam a esperança;

5) Sabemos que a maneira como tratamos uns aos outros é a expressão mais completa do que cremos;

6) Encontramos mais graça na busca por entendimento do que em certeza dogmática, mais valor na dúvida que em absolutos;

7) Organizamo-nos em comunidades dedicadas a equipar-nos para o trabalho que sentimos sermos chamados a realizar: esforçar-nos pela paz e justiça entre todas as pessoas, proteger e restaurar a integridade de toda a criação de Deus, e trazer esperança àqueles que Jesus chamou de os menores de seus irmãs e irmãos; e

8) Reconhecemos que ser seguidores de Jesus é custoso, e implica amor desinteressado, resistência consciente ao mal, e renúncia de privilégio.

©The Center For Progressive Christianity - http://www.tcpc.org/


UMA ORAÇÃO COLETIVA

Oramos pela criança solitária que não tem seus pais.
Oramos por aqueles que não têm um lugar onde morar.
Oramos por aqueles que vivem o terror da AIDS.
Oramos pelas vítimas de guerras e violência.
Oramos por aqueles que são vítimas de discriminação.
Oramos por aqueles que já perderam a esperança.
Oramos por aqueles que movidos pelo desespero, escolheram o erro.
Oramos por nossas irmãs e irmãos de todas as crenças.
Oramos por aqueles de quem discordamos.
Oramos por aqueles que amamos,
E por aqueles que ainda estamos aprendendo a amar.
Oramos por aqueles que estão felizes.
Que possamos ver em seus rostos o rosto de Deus.
Que possamos aprender que todos somos teus filhos, ó Eterno.
Que possamos aprender a ser tua presença na vida de nosso próximo.
Fica com todos nós, Senhor.
Amém.

LIÇÃO 3 - HISTÓRIA E METÁFORA

Nesta lição movemos das formas de ver a Bíblia ao tópico mais específico de leitura da Bíblia. De forma resumida, chamo o método que desenvolveremos de “abordagem histórico-metafórica”. Ele pressupõe as afirmações centrais sobre a Bíblia feitas na lição anterior: sua origem como uma resposta humana a Deus, seu status para os cristãos como escritura sagrada, e suas funções de alicerce do mundo cristão e sacramento do sagrado.


A ABORDAGEM HISTÓRICO-METAFÓRICA

Os dois adjetivos na frase “abordagem histórico-metafórica” são crucialmente importantes. Compactamente definirei ambas antes de descrevê-las mais detalhadamente.

Com “abordagem histórica”, quero dizer todos os métodos que são relevantes ao discernimento dos antigos significados históricos dos textos bíblicos. A principal preocupação da abordagem histórica é a pergunta no tempo passado: “O que este texto significava no antigo cenário histórico no qual foi escrito?” - Por “abordagem histórica”, quero dizer mais amplamente uma forma não-literal de ler os textos bíblicos. Uma leitura metafórica não se confina aos sentidos literal, factual e histórico de um texto. Ela move-se além rumo à pergunta: “O que esta narrativa significa como estória, independente de sua factualidade histórica?”


A Abordagem histórica

A abordagem histórica focaliza-se na iluminação histórica de um texto em seu contexto primevo. Como uma ampla categoria, esta abordagem cobre todos os métodos de criticismo histórico que têm sido desenvolvidos por estudiosos da Bíblia nos últimos séculos. A palavra “criticismo” talvez seja infeliz, simplesmente porque no uso popular ela freqüentemente tem um significado negativo de busca de erros. Mas na frase “criticismo histórico”, “criticismo” significa “discernimento” - em outras palavras, se trata do julgamento discernido sobre assuntos históricos.

O Que É. A abordagem histórica inclui os métodos tradicionais de criticismo de fontes, criticismo de formas, criticismo de redação, e criticismo canônico. Também inclui métodos inter-disciplinários mais recentes de estudo histórico. Às vezes chamados de “criticismo social-científico”, estes envolvem o uso de modelos e análises derivados de estudos das sociedades agrícolas pré-industriais, antropologia cultural, etc. Estes métodos inter-disciplinários são especialmente úteis para a construção do contexto antigo no qual textos bíblicos foram falados ou escritos. Eles nos ajudam a entender os diferentes mundos culturais nos quais a Bíblia se originou.

O foco de uma abordagem histórica é duplo: o significado histórico de um texto e seu contexto histórico. O contexto no qual palavras são ditas ou escritas, ou ações são feitas, dão ampla forma a seu significado. A palavra “contexto” sugere muito: o prefixo latino CON significa “com”. Sendo assim, con-texto é aquilo que vai com um texto.

Por quê é Importante. Apesar de o uso devocional da Bíblia poder ser bem independente da abordagem histórica, a segunda é indispensável para genuinamente se ouvir a Bíblia como uma coleção de documentos do passado. Ela reconhece que a Bíblia como um todo e seus textos individuais são artefatos históricos: coisas feitas no passado. Para dizer o óbvio, eles são artefatos do passado distante. A Bíblia Hebraica foi escrita entre aproximadamente meados do décimo século antes da era cristã e meados do segundo século antes de Cristo. O Novo Testamento foi escrito de aproximadamente 50 d.C. até o princípio ou meados do primeiro século da era cristã (Muitos estudiosos datam as porções mais antigas da Bíblia Hebraica, encontradas no Pentateuco, como sendo de cerca de 900 a.C., e datam as porções mais ulteriores – o livro de Daniel – como sendo de cerca de 165 a.C.. O documento mais antigo do Novo Testamento é provavelmente a primeira carta de Paulo à sua comunidade em Tessalônica, escrito por volta dos anos 50 d.C., e o documento mais recente é II Pedro, escrito entre 125 e 150 d.C.).

O estudo histórico leva a sério a vasta distância histórica e cultural entre o passado bíblico e nós. Ele procura entender a Bíblia como uma coleção de documentos antigos produzidos em mundos muito diferentes do nosso.

O estudo histórico da Bíblia é uma das glórias dos estudos modernos. Tem sido muito iluminador. Sem ele, muito da Bíblia continuaria simplesmente opaco. Pôr passagens bíblicas em seu contexto antigo as faz tomar vida. Permite-nos ver significados nestes textos antigos que de outra forma estariam escondidos de nossa vista. Desenterra significados que de outra forma estariam enterrados no passado. Além do mais, permite-nos ouvir a estranheza destes textos que vêm até nós de mundos que nos são estranhos. Assim nos ajuda a evitar ler a Bíblia simplesmente com nossas agendas atuais em mente e liberta a Bíblia para falar com suas próprias vozes.

Limitações. Ainda assim, a abordagem histórica tem suas limitações. Algumas dessas limitações têm a ver com a maneira como ela tem sido praticada no período moderno. Quando acoplada à visão de mundo moderna, com seu ceticismo a respeito da realidade espiritual e sua preocupação com factualidade, às vezes leva a um “achatamento” dos textos. Que os textos bíblicos possam estar dizendo algo sobre Deus, ou sobre experiências genuínas de Deus, ou sobre eventos que vão além das fronteiras do que é considerado possível pela visão de mundo moderna – estas alternativas são freqüentemente ignoradas.

Além do mais, grande parte dos modernos estudos bíblicos é de natureza técnica e especializada, estudiosos freqüentemente discordam uns dos outros, e pouco parece oferecer infalibilidade. O resultado é que muitas pessoas que foram para um seminário, por exemplo, motivadas por um forte senso de vocação cristã e amor pela Bíblia sentem como se o moderno estudo bíblico tirasse a Bíblia deles. Alguns, tanto membros do clero quanto estudiosos, não se recuperaram. Para alguns, a Bíblia continua em pedaços. Outros lançam ataques ferrenhos contra a crítica histórica, acusando-a de falida. Mas mesmo aqueles que a atacam (a não ser que sejam fundamentalistas) não podem viver sem ela.

Há mais uma limitação, e ela é intrínseca: o criticismo histórico trata apenas do significado antigo do texto. Seu foco, como mencionado anteriormente, é a pergunta no passado: “O que este texto significou na e para a comunidade antiga que o produziu?” A não ser que suplementado por outra abordagem, o criticismo histórico deixa o texto preso ao passado.


A Abordagem Metafórica

A abordagem metafórica permite-nos ver e afirmar significados que vão além da particularidade do que os textos significaram em seu cenário antigo. Como a abordagem histórica, envolve muitas coisas, abraçando muitas disciplinas. O que todas essas disciplinas envolvidas têm em comum é uma maneira de ler a Bíblia que avança além dos significados históricos dos textos.

O Que É. Uso as palavras “metáfora” e “metafórica” em um sentido bem amplo. Em seu significado limitado, “metáfora” refere-se a um tipo muito específico de linguagem comparativa e distingue-se de sua prima próxima “símile”: uma símile explicitamente usa a palavra “como” quando faz uma comparação, enquanto que uma metáfora não o faz. Por exemplo, “Meu amor é como uma rosa vermelha” é uma símile. “Meu amor é uma rosa vermelha” é uma metáfora. Neste curso, entretanto, eu uso “metáfora” e “metafórica” em um sentido muito mais amplo.

A linguagem metafórica é intrinsecamente não-literal. Ela simultaneamente afirma e nega: x é y, e x não é y. A afirmação “Meu amor é uma rosa vermelha” afirma que o(a) meu(minha) amado(a) seja uma rosa mesmo negando-o. O(a) meu(minha) amado(a) não é uma rosa, salvo se eu estiver literalmente apaixonado por uma flor. Entretanto, há algo a respeito de meu(minha) amado(a) que é como uma rosa.

Esta compreensão leva a uma segunda característica da linguagem metafórica: ela tem mais de uma nuança de significado. Em termos de suas raízes gregas, “metáfora” significa “levar com”, e o que a metáfora leva ou carrega são ressonâncias ou associações de significado. O uso do plural é deliberado: uma metáfora não pode ser reduzida a um único significado. (Se pudesse alguém poderia simplesmente expressar aquele significado em linguagem não-metafórica.) Para retornar ao exemplo da rosa mais uma vez, dizer, “Meu amor é uma rosa vermelha”, evoca mais de uma associação. A metáfora pode apontar para a beleza do meu(minha) amado(a), para o seu aroma agradável, para a sua exuberância; pode também apontar para sua natureza efêmera e finita (já que, como uma rosa, meu-minha amado-a definhará e morrerá); pode até mesmo estar apontando para dificuldades, pois há espinhos entre as rosas. Em resumo, a linguagem metafórica é intrinsecamente multivalente, com uma pluralidade de associações.

“Metáfora” também significa “ver como”: ver algo como uma outra coisa. A metáfora é uma arte lingüística ou verbal. Se puder agüentar o exemplo da rosa por mais uma vez, eu vejo meu(minha) amado(a) como uma rosa. Ou, para usar um exemplo bíblico, nós podemos ver a narrativa do êxodo como uma narrativa metafórica da relação divina-humana, descrevendo o apuro humano e os meios de livramento.

Uma abordagem metafórica da Bíblia enfatiza, assim, metáforas e suas associações. Enfatiza a ação de ver e não a ação de crer. O ponto não é o de crer numa metáfora, e sim ver em luz dela.

Finalmente, metáforas podem ser profundamente verdadeiras, mesmo que não sejam literalmente verdadeiras. A metáfora é uma poesia mais(x), e não uma factualidade menos(x). Ou seja, a metáfora não é menos que o fato, e sim mais. Algumas coisas são melhor expressas em linguagem metafórica; outras podem ser unicamente expressas em linguagem metafórica.

Uma abordagem metafórica da Bíblia é de importância fundamental para muitos tipos de interpretações modernas. Estes tipos incluem teologia narrativa, que centraliza-se no significado de estórias como estórias, e algumas formas de crítica literária, nos quais o foco está em como os textos funcionam como literatura independente de seus significados históricos originais.

O criticismo arquetípico, um terceiro tipo de abordagem metafórica, envole o estudo de símbolos e estórias arquetípicas, que são tipicamente transculturais. O criticismo arquetípico (ou crítica arquetípica) mais obviamente leva a uma leitura psicológica dos textos bíblicos. Mas vai além do psicológico também, pois tais narrativas e símbolos às vezes se conectam também à realidades sociais.

Uma abordagem metafórica também inclui alguns tipos antigos de interpretação. Os escritores do Novo Testamento freqüentemente usavam textos da Bíblia Hebraica de uma forma não-literal. A prática continuou na leitura “espiritual” ou “alegórica” da escritura que se disseminou no cristianismo do segundo século à Idade Média. Durante esses séculos, teólogos cristãos freqüentemente falavam de quatro níveis de interpretação dos textos bíblicos: o literal, o alegórico, o anagógico, e o tropológico. Os detalhes desses níveis não importam para o meu presente propósito, que é apenas indicar o escopo e antiguidade da interpretação metafórica.

Justificativa. A justificativa para uma abordagem metafórica é dupla. Primeiro, algumas das narrativas bíblicas são manifestamente metafóricas e, assim, requerem uma interpretação metafórica. Esta compreensão não é moderna. No terceiro século, um teólogo cristão e estudioso bíblico chamado Orígenes distinguia entre os significados “espirituais” e “físicos” da Bíblia. Por “significados espirituais”, ele queria dizer aproximadamente o que eu quero dizer por metafóricos. Por “significados físicos”, ele queria dizer significados literais-factuais. Usando estas distinções, Orígenes argumentava que enquanto a Bíblia como um todo deva ser lida em um sentido espiritual, algumas partes não devem ser lidas em um sentido físico.

Mas mesmo quando uma narrativa bíblica não é manifestamente metafórica, há justificativas para lê-la com uma abordagem metafórica. A razão é que a Bíblia é um “clássico religioso”. Um clássico é uma obra literária que perdurou através do tempo e foi (e continua a ser) lida e relida em novos cenários. Por definição, um clássico tem um excesso de significados. Seu significado não é confinado à intenção de seu autor ou ao seu cenário original.

Limitações. A limitação básica de uma abordagem metafórica é o perigo de a imaginação vagar muito livremente, produzindo interpretações descontroladas e fantasiosas que tenham pouco ou nada a ver com o texto real.

Um exemplo clássico é a interpretação de Agostinho da parábola do Bom Samaritano no evangelho de Lucas (10:29-37 - A interpretação de Agostinho está em sua Questiones Evangeliorum II.19). Jesus conta a narrativa de um homem que enquanto viajava de Jerusalém a Jericó é atacado e espancado por ladrões, e deixado quase morto na estrada. Dois oficiais do templo (um sacerdote e um levita) aproximam-se e passam pelo outro lado da estrada. Então um samaritano, um membro de um grupo desprezado, aproxima-se, cuida das feridas do homem, põe-lhe sobre um jumento, e lave-o a uma hospedaria. Para Jesus, é uma estória sobre o que significa ser compassivo.

Agostinho lê a narrativa de forma bem diferente. Menciono aqui apenas alguns dos significados que ele encontrou. O homem que viajava de Jerusalém a Jericó é Adão. Os ladrões que o atacaram são o demônio e seus anjos. Eles espancam Adão persuadindo-o a pecar e o desnudam de sua imortalidade. O sacerdote e o levita que passam pelo homem são representantes da antiga dispensação, que não podem prover salvação. O samaritano que vem a sua ajuda é Jesus. O óleo com o qual ele unge as feridas de Adão é o conforto da boa esperança. O animal sobre o qual Adão é posto é a carne da encarnação. A hospedaria à qual Adão é levado é a igreja, e o hospedeiro é São Paulo. Assim, na leitura de Agostinho, a parábola se torna uma alegoria da narrativa cristã da salvação da queda de Adão através de Jesus.

Essa leitura é engenhosa. O problema, claro, é que essa leitura não tem nada a ver com o texto. Não se pode imaginar que Jesus ou o autor de Lucas quisessem dizer algo neste sentido. Não apenas é completamente fantasiosa, como obscurece o significado da parábola e, assim, de certa forma destrói o texto.

Sendo assim, a abordagem metafórica precisa de controles: não se pode fazer uma leitura metafórica que não possua ligações expressas no texto. Entretanto, os controles devem ser “leves”, já que uma das principais funções da abordagem metafórica é evitar que um texto seja confinado ao passado.

Os controles necessários são providos em parte pela abordagem histórica e em parte pelo discernimento da comunidade à qual a interpretação é oferecida. Alguns fatores entram no discernimento da comunidade: sua percepção do significado da Bíblia como um todo, sua compreensão da narrativa cristã como um todo, e seu senso de “propriedade”. Se uma interpretação não fizer sentido a ninguém mais além do indivíduo que a oferece, dificilmente terá qualquer importância.

Em resumo, as abordagens histórica e metafórica à leitura da Bíblia se necessitam mutuamente. A histórica necessita da metafórica para que o texto não seja aprisionado ao passado. A metafórica necessita da histórica para que não se torne fantasia subjetiva.

No restante desta lição, eu tenho dois propósitos. O primeiro é sugerir que a Bíblia seja uma combinação de história e metáfora e que, portanto, requer esta abordagem. O segundo é ilustrar o tipo de leitura que resulta desta abordagem.


A BÍBLIA COMO HISTÓRIA E METÁFORA

A Bíblia é uma combinação de história e metáfora. Só para dizer o mesmo de maneira um pouco diferente, a Bíblia é uma combinação de memórias históricas e de narrativas metafóricas.

O significado de “história relembrada” ou “memórias históricas” é óbvio. Alguns eventos reportados na Bíblia realmente aconteceram, e as antigas comunidades de Israel e do movimento cristão preservaram a memória desses relatos como fatos que realmente ocorreram. Na realidade, a narrativa bíblica está baseada na história dessas duas comunidades.

O significado de “narrativas metafóricas” requer mais explicação. Na Bíblia, tais narrativas se encaixam em duas categorias. A primeira inclui narrativas nas quais um evento que ocorreu (ou que possa ter ocorrido) às quais são dados significados metafóricos. A segunda cobre narrativas puramente metafóricas.


Narrativas Que Metaforizam a História

O primeiro tipo de narrativa metafórica é um relato que combina história e metáfora; e resulta no que poderíamos chamar de “história metaforizada”. Um evento histórico está por trás do relato, mas a forma na qual o história é contada dá à narrativa um significado metafórico também. Por exemplo, eu penso que haja boas bases históricas para se dizer que Jesus realmente tenha restaurado a visão de algumas pessoas cegas. Uma ou mais das narrativas que reportam tal evento provavelmente refletem memória histórica. Mas a maneira como estes eventos são contados dá a eles um significado metafórico também.

A maneira como o autor do evangelho de Marcos conta os eventos dos dois homens cegos a quem Jesus deu a visão fornece um exemplo esclarecedor. As duas narrativas dão forma à grande divisão central daquele evangelho – uma divisão que descreve a viagem final de Jesus a Jerusalém, contém três ditos solenes sobre sua iminente morte e ressurreição, e fala do discipulado como sendo o seguimento a Jesus nessa jornada (Marcos 8:27 – 10:45).

No início desta divisão, Marcos coloca o evento do homem cego de Betsaida. Jesus restaura sua visão em duas etapas. Depois da primeira, o homem vê pessoas, mas não claramente: “Estou vendo homens; parecem árvores que andam.” Após Jesus pôr suas mãos sobre ele uma segunda vez, o homem vê tudo “claramente” (Marcos 8:22-26).

No final da divisão está a narrativa do homem cego, chamado Bartimeu. Ele grita: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!” Jesus pergunta: “O que você quer que eu faça por você?” Em linguagem deveras evocativa, Bartimeu expressa seu desejo mais profundo: “Eu quero ver de novo”. Então, se nos conta: “Bartimeu começou a ver novamente e seguia Jesus pelo caminho” (Marcos 10:46-52).

Ao colocar estas narrativas onde ele as coloca, o autor de Marcos dá a elas um significado metafórico, mesmo que uma delas ou ambas reflitam a 'história relembrada': ter a visão restaurada – ver novamente – é ver o caminho de Jesus. Esse caminho, essa rota, envolve caminhar com ele da Galiléia a Jerusalém, o lugar de morte e de ressurreição, de fins e de começos. Ver isso é ter os olhos abertos.

Dessa forma, a maneira como Marcos usa estas narrativas resulta em história metaforizada. Além do mais, a divisão como um todo provê ainda um outro exemplo de história relembrada e metaforizada. História relembrada: Jesus realmente fez uma viagem final a Jerusalém. História metaforizada: a forma como a narrativa daquela viagem é feita torna-lhe uma narrativa metafórica sobre o caminho do discipulado.


Narrativas Puramente Metafóricas

O segundo tipo de narrativa metafórica consiste de narrativas que são puramente metafóricas. Nenhum evento histórico particular se esconde por trás delas. Do contrário, as narrativas como um todo são metafóricas ou simbólicas. Exemplos desta categoria na Bíblia Hebraica são as narrativas da criação e do início da humanidade, a narrativa arespeito de Jonas e do peixe enorme que o engoliu, e a narrativa a respeito do sol parado no céu no tempo de Josué. Exemplos no Novo Testamento incluem algumas das narrativas contadas pelo movimento cristão primitivo a respeito de Jesus – seu nascimento, sua caminhada sobre as águas, a multiplicação dos pães e peixes, a transformação da água em vinho, etc.

A decisão sobre se ou não ver uma narrativa como sendo puramente metafórica envolve dois fatores. O primeiro centra-se nos elementos presentes na própria narrativa. A narrativa aparenta estar relatando algo que aconteceu, ou há sinais dentro da narrativa sugerindo que ela seja lida simbolicamente? As narrativas israelitas do início do mundo contêm muitos desses sinais, e as narrativas a respeito de Jesus mencionadas fazem uso de ricos temas simbólicos extraídos da Bíblia Hebraica.

O segundo fator envolve um julgamento sobre o que chamo de “os limites do espetacular”. Eu deliberadamente falo de “o espetacular” em vez de “milagres”. O entendimento comum moderno de milagres, aceito tanto por aqueles que os aceitam como por aqueles que os negam, pressupõe um entendimento do universo como sendo um sistema fechado de leis naturais. Milagres são entendidos como sendo intervenções sobrenaturais de um Deus “lá em cima” em um sistema natural de causa e efeito, de outra forma completamente previsível. Por eu não aceitar esta forma de pensar a respeito da relação de Deus com o universo, eu evito o termo “milagres”. “O Espetacular”, por outro lado, simplesmente se refere a eventos que vão além do que nós comumente pensamos ser possível.

Sendo assim, a questão sobre se há “limites para o espetacular” seria: “Há coisas que nunca acontecem em nenhum lugar?” - E enquanto pensamos a respeito desta questão, é importante não por limites muito estreitos, como a visão de mundo da modernidade faz. Mais coisas são possíveis, e mais coisas acontecem, do que a moderna visão de mundo permite.

Por exemplo, eu penso que Jesus realmente tenha realizado curas paranormais e que elas não possam simplesmente ser explicadas em termos psicossomáticos. Eu estou até mesmo disposto a considerar que fenômenos espetaculares, tais como levitação, possam acontecer. Mas nascimentos virginais, multiplicação de pães e peixes, e transformação de água em vinho, acontecem em algum lugar? Se eu me persuadisse de que elas acontecem, então eu estaria alimentando a possibilidade de que as narrativas a respeito de Jesus que relatam tais eventos também conteriam história relembrada. Mas o que não posso fazer como um historiador é dizer que Jesus poderia fazer tais coisas mesmo quando nenhuma outra pessoa tenha sido capaz de fazê-lo. Assim, eu as considero narrativas puramente metafóricas.

O reconhecimento de que a Bíblia contenha tanto história quanto metáfora tem uma implicação imediata: as antigas comunidades que produziram a Bíblia freqüentemente metaforizavam sua história. Na realidade, esta é a forma pela qual eles vestiam suas narrativas de significado. Mas nós, especialmente no período moderno, temos freqüentemente transformado suas metáforas em histórias. Para dizer a mesma coisa de forma um pouco diferente: eles freqüentemente davam um sentido mitológico a sua história (para poder expressar significado), enquanto nós temos tido a tendência de dar um sentido literal à sua mitologia. E quando se dá um sentido literal a uma metáfora ou a um mito, o resultado é o absurdo. Por outro lado, quando se reconhece uma narrativa metafórica como tal, o resultado é uma poderosa narrativa. Isso nos leva diretamente ao próximo ponto.


A BÍBLIA COMO NARRATIVA DO RELACIONAMENTO DIVINO-HUMANO

Apesar de a Bíblia conter mais que narrativas, uma surpreendentemente grande quantidade dela consiste de narrativas. Há centenas de narrativas individuais, além do que chamo de “macro-narrativas”, narrativas que dão forma à Bíblia como um todo. Além do mais, estas narrativas – tanto as individuais quanto as macro – são a respeito do relacionamento divino-humano. A Bíblia Hebraica consiste das narrativas da antiga Israel de seu relacionamento com Deus. O Novo Testamento consiste das narrativas do antigo movimento cristão de seu relacionamento com Deus como revelado em Jesus.

Estas narrativas não são apenas a respeito do relacionamento divino-humano no passado. Elas são também sobre o relacionamento divino-humano no presente. A forma como a narrativa do êxodo é usada na celebração judaica do Pessach (Páscoa) todos os anos ilustra bem isso. Na liturgia que acompanha a refeição do Pessach, as seguintes palavras são ditas:

“Não foram apenas nossos pais e nossas mães que foram escravos do Faraó no Egito, mas nós, todos nós reunidos aqui esta noite, fomos escravos do Faraó no Egito. E não foram apenas nossos pais e nossas mães que foram libertos do Egito pela poderosa mão de Deus, mas nós, todos nós reunidos aqui esta noite, fomos libertos do Egito pela poderosa mão de Deus.”
O que significa dizer que “nós” (e não apenas nossos ancestrais) fomos escravos no Egito e que “nós” fomos libertos da terra de escravidão por Deus? (Isso, claro, no caso dos judeus que usam essa liturgia na noite de Pessach) Não significa que estivessem lá nos corpos de seus ancestrais, como se seus genes ou DNA estivessem presentes. A narrativa do êxodo é entendida como sendo verdadeira em cada geração. Ela apresenta a escravidão como um constante problema humano e proclama a vontade de Deus de que sejamos libertos da escravidão. A narrativa da escravidão de Israel no Egito e sua libertação por Deus é, assim, uma permanente história verídica sobre o relacionamento divino-humano. Ela é sobre Deus e os humanos.


LENDO A BÍBLIA EM UM ESTADO DE INGENUIDADE PÓS-CRÍTICA

Levando em consideração o que foi escrito anteriormente, uma grande necessidade para leitores contemporâneos da Bíblia é mover da ingenuidade pré-crítica através do pensamento crítico para a ingenuidade pós-crítica. Apesar dessas frases soarem como jargão intelectual, elas são muito esclarecedoras. Elas identificam maneiras de ler e ouvir a Bíblia que podemos reconhecer em nossa própria experiência.

Ingenuidade Pré-crítica é um estado da primeira-infância no qual aceitamos como verdadeiras quaisquer coisas que a figura de autoridade (seja ela quem for) em nossas vidas diz-nos ser verdade. Neste estado (se crescemos em um cenário cristão), simplesmente ouvimos as narrativas da Bíblia como sendo histórias verdadeiras.

O Pensamento crítico começa no final da infância e princípio da adolescência. Para que este tipo de pensamento se desenvolva, não é necessário ser um intelectual ou ir para uma faculdade. É uma fase natural do desenvolvimento humano; todos passam por ele (pode ser resistido, entretanto; o Fundamentalismo é a recusa de se aplicar o pensamento crítico à Bíblia; como uma forma de literalismo consciente, o fundamentalismo vê o efeito corrosivo do pensamento crítico moderno sobre a Bíblia e insistentemente o rejeita). Neste estágio, conscientemente ou inconscientemente, examinamos o que aprendemos na infância para avaliar o que deveríamos reter. Há realmente fadas? Os bebês são realmente trazidos por cegonhas (se é que ainda dizem isso às crianças)? A criação realmente só levou seis dias? Adão e Eva foram pessoas reais?

Na cultura ocidental moderna, o pensamento crítico está muito preocupado com factualidade e é, assim, danoso para a religião em geral e o cristianismo e a Bíblia em particular. Como pensadores críticos nessa cultura, a maioria de nós não ouve mais as narrativas da Bíblia como sendo histórias verídicas – ou pelo menos sua vericidade tornou-se suspeita. Agora precisa-se de fé para crer nelas, e fé torna-se no crer em coisas que alguém normalmente rejeitaria.

Ingenuidade pós-crítica é a habilidade de ouvir as narrativas bíblicas mais uma vez como histórias verdadeiras, mesmo sabendo-se que elas podem não ser factualmente verídicas e que sua verdade não depende de sua factualidade.

A ingenuidade pós-crítica não é um retorno à ingenuidade pré-crítica. Ela traz o pensamento crítico consigo. Ela não rejeita os discernimentos do criticismo histórico mas os integra a um conjunto maior.

Deixem-me retornar às narrativas do Natal para ilustrar isso. A ingenuidade pós-crítica é a habilidade de ouvi-las mais uma vez como sendo narrativas verdadeiras, apesar de se saber com razoável segurança que os elementos básicos da estória não sejam historicamente factuais. O pensamento crítico na forma de criticismo histórico vê a estória da concepção virginal de Jesus como uma continuação do tema de nascimentos especiais da Bíblia Hebraica. Ele está ciente de que a narrativa da estrela especial e dos magos trazendo presentes não seja história, mas que seja quase certamente a criação literária de Mateus baseada em Isaías 60.

No estado de ingenuidade pós-crítica, se sabe que a verdade das narrativas de nascimento estão em seus significados como narrativas metafóricas. Usando tanto imagens bíblicas quanto imagens religiosas arquetípicas, as narrativas de nascimento falam sobre o significado de Jesus e sobre o relacionamento divino-humano.

Apesar de o mover da ingenuidade pré-crítica ao pensamento crítico ser inevitável, não há nada inevitável em se mover para um estado de ingenuidade pós-crítica. Pode-se ficar preso ao estado de pensamento crítico por toda a vida, como um significante número de pessoas no período moderno ficam. O movimento inicial em direção ao pensamento crítico é freqüentemente experimentado como libertador, mas se alguém permanece nesse estado década após década, ele se torna um lugar muito árido e estéril no qual viver.

Precisamos ser levados ao estado de ingenuidade pós-crítica. Ele não ocorre automaticamente. Essa é uma das maiores tarefas em nosso tempo enquanto aprendemos a ler a Bíblia usando as abordagens histórica e metafórica.

LIÇÃO 2 - A BÍBLIA E DEUS

Os cristãos sempre afirmaram um relacionamento próximo entre a Bíblia e Deus, da mesma forma que outras religiões afirmam um relacionamento próximo entre o sagrado e suas escrituras sagradas. Aqui, começarei a descrever uma maneira de ver e ler a Bíblia focando em como vemos o relacionamento entre a Bíblia e Deus. Quatro tópicos são centrais: a Bíblia como uma resposta humana a Deus, a Bíblia como escritura sagrada, a Bíblia como sacramento do sagrado, e a Bíblia como a Palavra de Deus.

A Bíblia Como Uma Resposta Humana a Deus

Fundamental para uma leitura da Bíblia é uma decisão de como ver sua origem. Vem de Deus, ou é produto humano? Devemos ver e ler o que ela diz como um produto divino ou como um produto humano?

Através das lentes do literalismo natural e seus descendentes modernos, a Bíblia é vista como um produto divino (como já enfatizei na aula passada). A inspiração da escritura é entendida como significando que Deus guiou a escrita da Bíblia, diretamente ou indiretamente. O que a escritura diz, no final das contas, vem de Deus.

A alternativa, claro, é ver a Bíblia como um produto humano – o produto de duas antigas comunidades. Esta é a lente através da qual eu vejo a escritura. A Bíblia Hebraica (O Velho Testamento cristão) é o produto da Israel antiga. O Novo Testamento é o produto do movimento cristão primitivo. O que a Bíblia diz são as palavras daquelas comunidades, não as palavras de Deus.

Ver a Bíblia como um produto humano não nega, de forma alguma, a realidade de Deus. Na verdade, uma das premissas centrais deste curso é que Deus é real e que pode ser experimentado. Correndo o risco de ser repetitivo, o que quero dizer é que Deus (ou “o sagrado” ou o “Espírito”, termos que uso sinonimicamente) é uma realidade conhecida na experiência humana, e não simplesmente uma criação ou projeção humana. Claro que seja lá o que dizemos sobre o sagrado é uma criação humana. Não podemos falar a respeito de Deus (ou de qualquer outra coisa), a não ser que usemos palavras, símbolos, estórias, conceitos, e categorias conhecidas por nós, pois eles são a única linguagem que temos. Entretanto, nós também temos experiências do “santo”, do “divino”, do “sagrado”. Estas experiências vão além de nossa linguagem, a ultrapassando, a relativizando. Estou convencido que a Bíblia, como a literatura sacra em geral, origina-se em tais experiências. Também estou convencido que a Bíblia (como todas as outras coisas expressas em palavras) é uma construção humana.

Há uma terceira forma de ver a relação entre Deus e a escrita da Bíblia: não há uma relação, pois não há Deus. Para esta posição, a Bíblia é, obviamente, um produto humano, mas ela não tem nenhum significado religioso além do que nos diz sobre o que estas pessoas antigas erroneamente pensavam. Esta não é a forma como vejo a escritura.

Eu vejo a Bíblia como uma resposta humana a Deus. Em vez de ver Deus como o autor da escritura, eu vejo a Bíblia como a resposta dessas duas antigas comunidades à sua experiência de Deus. Como tal, ela contém suas narrativas a respeito de Deus, suas percepções do caráter e vontade de Deus, suas orações e louvor a Deus, suas percepções da condição humana e os caminhos para a libertação, suas práticas religiosas e éticas, e sua compreensão do que fidelidade a Deus envolve. Como o produto dessas duas comunidades, a Bíblia nos diz sobre como eles viam as coisas, não sobre como Deus vê as coisas.

A Diferença Que Nossas Perspectivas Sobre A Bíblia Faz

As justificativas para ver a Bíblia como um produto humano são atrativas. Basicamente, para mim parece que uma leitura cuidadosa da Bíblia torna impossível pensar que o que ela diz venha diretamente ou indiretamente de Deus. Então, em vez de tentar convencer que a Bíblia é um produto humano, oferecerei cinco ilustrações da diferença que estas duas formas de ver e ler a Bíblia fazem.

A primeira ilustração é uma história. Havia um programa em uma rádio sobre a Bíblia e questões éticas, que eu ouvi uma vez. Em resposta à ligação de um ouvinte, o apresentador disse: “Vamos ver o que Deus diz a respeito disso”, e então citou uma passagem da Bíblia (uma passagem escrita por Paulo). Eu me “assustei” do pulo que o apresentador deu de Deus para a Bíblia, mesmo tendo compreendido. Afinal de contas, ele via o que a Bíblia diz como vindo de Deus. Mas a diferença entre ver a Bíblia como um produto divino e vê-la como um produto humano é clara nesta ilustração: Uma passagem de Paulo nos diz o que Deus diz ou como Paulo via as coisas?

Minha segunda ilustração concerne às narrativas da criação do Gênesis. Se virmos a Bíblia como um produto divino, então estas são as narrativas de Deus a respeito da criação. E como narrativas de Deus, elas não podem estar erradas. Se descermos muito por essa estrada, podemos encontrar-nos atraídos ao criacionismo científico (a tentativa de mostrar que um certo tipo de “ciência” apóia a leitura literal do Gênesis). Podemos até nos tornar envolvidos em conflitos sobre se o Gênesis deveria ser ensinado junto com a teoria da evolução em cursos de biologia nas escolas públicas, como ocorre em partes dos Estados Unidos.

Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, então lemos os capítulos iniciais do Gênesis não como a narrativa de Deus da criação, mas como as estórias da criação da antiga Israel. Como a maioria das culturas antigas, Israel possuía tais estórias. Se perguntássemos “Qual a probabilidade de as narrativas da criação da antiga Israel conterem informações cientificamente exatas?”, a resposta seria “Quase zero”. E mesmo se contivessem, não passaria de coincidência. Tendo dito isto, entretanto, quero acrescentar que eu penso que as narrativas da criação da antiga Israel são profundamente verdadeiras – mas verdadeiras como narrativas metafóricas ou simbólicas, não como contos literalmente factuais.

Minha terceira ilustração concerne às leis da Bíblia. Se pensamos na Bíblia como um produto divino, então as leis da Bíblia são as leis de Deus. Para ilustrar isso com uma controvérsia cristã contemporânea, a única lei na Bíblia Hebraica que proíbe o comportamento homossexual entre homens é encontrada em Levítico: “Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação”(18:22). A pena (morte) se encontra dois capítulos depois (Levítico 20:13).

Se vemos a Bíblia como um produto divino, então esta é uma das leis de Deus. A questão ética, então, se torna: “Como alguém justifica o abandono de uma das leis de Deus?” É desta forma, ao menos, como os fundamentalistas e muitos cristãos conservadores vêem a questão.

Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, então as leis da Bíblia Hebraica são as leis da antiga Israel, e a proibição do comportamento homossexual nos diz que tal comportamento era considerado inaceitável na antiga Israel. A questão ética, então, se torna: “Qual seria a justificativa para continuar vendo o comportamento homossexual como a antiga Israel o fazia?”.

A questão se torna ainda mais crítica quando nos damos conta de que esta lei está embutida em uma coleção de leis que, entre outras coisas, proíbem plantar dois tipos de sementes no mesmo campo, e proíbem o uso de vestes feitas de dois tipos de pano (Levítico 19:19). nós não nos preocupamos com isso; a maioria de nós usa roupas feitas de misturas de tecidos, sem pensar duas vezes. Nós prontamente reconhecemos algumas dessas proibições como as leis de uma cultura antiga, que não estamos obrigados a seguir. Por que, então, apontarmos algumas como sendo “as leis de Deus”?

Minha quarta ilustração é uma pequena e estranha narrativa em Êxodo, envolvendo Moisés, Séfora (sua esposa), e seu filho (Êxodo 4:24-26). Eles estão retornando ao Egito, em obediência ao comissionamento de Moisés como o libertador de Israel. “Durante a viagem, em um lugar onde passaram a noite, o Senhor foi ao encontro de Moisés e procurava matá-lo”. Séfora então, circuncisa seu filho e toca Moisés com o prepúcio de seu filho. O resultado: Deus o deixa em paz; o intento divino de matar Moisés desaparece.

Se vemos a Bíblia como um produto divino, a questão se torna: “Por que Deus quereria matar Moisés – já que Moisés foi escolhido por Deus e está fazendo o que Deus o ordenou?” A pergunta é impossível de responder. Ela sugere um Deus perturbativamente caprichoso e malévolo. Apelar para o familiar “os caminhos de Deus não são nossos caminhos” seria um sofisma, não uma resposta adequada.

Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, percebemos que esta é uma narrativa contada pela antiga Israel. A questão, então, se torna: “Por que Israel contaria esta narrativa?” A resposta pode ainda não ser muito clara (presumivelmente, tem algo a ver com a importância da circuncisão), mas ao menos não somos deixados com o dilema de vê-la como uma história verdadeira a respeito de Deus.

Por as últimas três ilustrações terem sido tiradas da Bíblia Hebraica, eu concluo com uma do Novo Testamento. A passagem é de 1 Timóteo (2:9-15), uma carta atribuída a Paulo, mas quase que certamente não escrita por ele:

“Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes e se enfeitem com pudor e modéstia. Não usem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; pelo contrário, enfeitem-se com boas obras, como convém a mulheres que dizem ser piedosas. Durante a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade.”

Essa é uma passagem extraordinária. Não apenas as mulheres não devem ensinar ou ter autoridade sobre homens, mas elas não devem trançar seus cabelos, usar pérolas ou ouro ou roupas caras. Além do mais, elas são responsabilizadas pela origem do pecado no mundo: foi a mulher que foi enganada, não o homem. As “boas novas” é que as mulheres podem ser salvas – sendo mães.

Se a Bíblia é vista como um produto divino, então estas são as restrições de Deus aos comportamentos e papéis das mulheres. Na verdade, para aquelas igrejas protestantes que continuam a proibir a ordenação de mulheres, esta é a maneira como esta passagem é vista (mesmo sendo as outras restrições comumente ignoradas). Para eles, a ordenação de mulheres é contrária à “Palavra de Deus” (esta não é a razão pela não ordenação de mulheres no catolicismo).

Entretanto, se a Bíblia é vista como um produto humano, então esta passagem nos diz como um antigo escritor cristão – um homem – via as coisas. Como mencionado, Paulo quase certamente não escreveu essas palavras. O autor é comumente visto como um seguidor de Paulo de terceira ou quarta geração, escrevendo em seu nome. Mas é igualmente possível que o autor não seja um seguidor de Paulo, mas um “corretor” tentando negar a remarcável igualdade de gênero do movimento cristão primitivo. Quando a Bíblia é vista como um produto humano, o contraste entre este texto e outros textos no Novo Testamento requer que reconheçamos mais de uma voz no cristianismo primitivo, falando sobre o papel das mulheres e que busquemos discernir que voz honraremos.

Sendo assim, muito está em jogo em como vemos a Bíblia – seja como um produto humano ou um produto divino. Quando não somos completamente claros e cândidos sobre a Bíblia ser um produto humano e não um produto divino, criamos a possibilidade de uma enorme confusão.

Por Que Nossa Perspectiva Precisa Ser De Ou...Ou?

Antecipando uma possível objeção: Por que ver a questão como uma escolha de ou-ou? Por que não ver a Bíblia tanto como divina quanto humana? Em minha experiência, que seja ambos apenas aumenta a confusão.

Quando a Bíblia é vista tanto como divina quanto humana, nós temos duas opções. Uma é dizer que seja completamente divina e completamente humana. Isso pode parecer bom, mas nos deixa com o dilema de tratar toda a escritura como revelação divina. Mais tipicamente em minha experiência, afirmar que a Bíblia seja tanto divina quanto humana leva à tentativa de separar as partes divinas das partes humanas – como se uma parte viesse de Deus e outra parte fosse um produto humano. Às partes que vêm de Deus são, então, dadas autoridade, e não às outras. Mas as partes que nós pensamos virem de Deus são normalmente as partes que vemos como importantes, e então simplesmente conferimos autoridade divina ao que nos importa, sejamos nós conservadores ou liberais.

Para usar um exemplo: a maioria dos cristãos que pensam ser a Bíblia tanto um produto divino quanto humano, diria que os Dez Mandamentos estão entre as partes que vêm de Deus. Eles parecem importantes de uma forma que a proibição contra o uso de roupas feitas de dois tipos de tecido não parecem ser.

Mas um momento de ponderação sugere que os Dez Mandamentos são também um produto humano. Eles foram escritos de uma perspectiva masculina: por exemplo, eles proíbem a cobiça da esposa do próximo, mas não dizem nada sobre a cobiça do esposo do próximo (Êxodo 20:17; Deuteronômio 5:21). Os mandamentos contra o roubo, o adultério, o assassínio, a prestação de falso testemunho, etc, são simplesmente regras que tornam possível para os humanos viverem juntos em comunidade. O gênero divino não é uma exigência para se criarem leis como essas. O ponto não é que os Dez Mandamentos não sejam importantes. O ponto é, na verdade, que sua origem humana é evidente.

Assim, as lentes que estou defendendo não vêem a Bíblia em seu todo como tendo origem divina, ou algumas partes como divinas e outras como humanas. A Bíblia é completamente humana, apesar de haver sido gerada em resposta a Deus. Como tal, ela contém as idéias da antiga Israel do que a vida com Deus envolve, assim como também contém as idéias do primitivo movimento cristão.

Dessa forma, somos nós que devemos discernir como ler e interpretar, como ouvir e valorizar, suas várias vozes. A Bíblia não vêm com notas de roda-pé (ao menos não escritas por seus escritores originais) que digam: “Esta passagem reflete a vontade de Deus; a próxima passagem não”.; ou: “Esta passagem é valida para todas as eras; a anterior não era”. A Bíblia também não vem com notas de roda-pé que digam: “Esta passagem deve ser lida literalmente; aquela não”. Ler as narrativas da criação ou as narrativas do nascimento de Jesus literalmente envolve uma decisão interpretativa (ou seja, uma decisão de lê-las literalmente), da mesma forma que acontece com a decisão de lê-las metaforicamente.

Assim, toda afirmação sobre o que uma passagem de escritura significa, envolve interpretação. Não existe leitura não-interpretativa da Bíblia, a não ser que nossa leitura consista simplesmente de fazer sons no ar. Enquanto lemos a Bíblia, então, não deveríamos perguntar, “O que Deus está dizendo?”, mas “O que o antigo autor ou comunidade está dizendo?”. (UMA NOTA: Não estou dizendo com isso que o significado de um texto bíblico esteja confinado ou restrito ao que o autor ou comunidade tenha dito. Como direi na próxima aula, uma leitura metafórica da Bíblia produz significados que vão além da antiga intenção histórica do texto.)

A BÍBLIA COMO ESCRITURA SAGRADA

Apesar de a Bíblia ser um produto humano, ela é também sagrada escritura para três tradições religiosas. A Bíblia Hebraica é sagrada para o judaísmo, a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento são sagrados para o cristianismo, e ambos são sagrados para o islamismo (apesar de à nenhum ser dado o mesmo status sagrado do Corão).

Status Sagrado

O que significa referir-se à Bíblia como escritura sagrada? Eu começo por dizer que os livros da Bíblia não eram sagrados quando foram escritos. Paulo, por exemplo, teria se surpreendido se soubesse que suas cartas às suas comunidades se tornariam escritura sagrada. As várias partes da Bíblia se tornaram sagradas através de um processo que levou alguns séculos.

O processo pelo qual a Bíblia se tornou sagrada é conhecido como “canonização”. Até onde sabemos (e não sabemos muito), o processo de canonização não envolveu concílios oficiais que se reuniram e tomaram decisões. Ao contrário, foi gradual, tendo acontecido em etapas. Os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica (a Lei, também conhecidos como a Torá ou o Pentateuco) foram aparentemente considerados como sagrados por volta de 400 a.C.. A segunda parte da Bíblia Hebraica (os Profetas) alcançou status sagrado por volta de 200 a.C.. A terceira parte (os Escritos) se tornou canônica por volta do ano 100 da era cristã. O cânon da Bíblia Hebraica estava, então, completo.

Para os vinte e sete livros do Novo Testamento, o processo levou cerca de três séculos. Apesar de a maioria dos documentos agora presentes no Novo Testamento terem sido escritos antes do ano 100 da era cristã, a primeira lista que menciona todos os vinte e sete deles como tendo um status especial é do ano de 367 d.C..

A percepção de que a Bíblia tornou-se escritura sagrada durante um período de séculos tem implicações para nossa compreensão de sua origem, status, e autoridade. Falar da Bíblia como sagrada trata-se não de sua origem mas de seu status dentro de uma comunidade religiosa. Qualquer documento é sagrado apenas porque é sagrado para uma comunidade particular. Confundir status com origem leva ao tipo de confusão que eu descrevi na seção anterior.

Para os cristãos, o status da Bíblia como escritura sagrada significa que ela é a coleção mais importante de escritos que nós conhecemos. Estes são os escritos básicos que definem quem nós somos em relação a Deus e quem nós somos como uma comunidade e como indivíduos. Este é o livro que nos modelou e que continuará a nos modelar.

Por causa da importância deste ponto, eu o enfatizarei de outra forma. Em comum com muitos estudiosos da religião, eu vejo cada uma das religiões do mundo como um “mundo cultural-lingüístico”. Esta frase um pouco abstrata significa coisas. Primeiro, cada religião emerge dentro de uma cultura particular e usa linguagens e símbolos daquela cultura (mesmo que também subverta ou desafie os valores e compreensões centrais daquela cultura). Sendo assim, as religiões nascem dentro de um mundo cultural-lingüístico existente.

Segundo, se a nova religião sobrevive com o passar do tempo, ela se torna um mundo cultural-lingüístico aparte. Como tal, ela provê um mundo no qual seus seguidores vivem. Suas narrativas e práticas, seus ensinamentos e rituais, tornam-se as lentes através das quais seus membros vêem a realidade e suas próprias vidas. Torna-se a base primária de identidade e visão.

Dentro desta estrutura de compreensão, a Bíblia como escritura sagrada é a base do mundo cultural-lingüístico cristão. A Bíblia é a “constituição” do mundo cristão, não no sentido de ser uma coleção de leis mas no sentido de ser sua base.

A Autoridade da Bíblia

Ver a Bíblia como sagrada em status e não em origem também leva a uma forma também diferente de ver a autoridade da Bíblia. A maneira antiga, convencional, de ver a Bíblia, baseava a autoridade da escritura em sua origem: a Bíblia era sagrada porque ela vinha de Deus. O resultado era um modelo monárquico de autoridade bíblica. Como um monarca antigo, a Bíblia está acima de nós, nos dizendo o que crer e o que fazer. Mas ver a Bíblia como sagrada em seu status leva a um modelo diferente de autoridade bíblica. Em vez de ser uma autoridade acima de nós, a Bíblia é a base do mundo no qual os cristãos vivem.

O resultado: o modelo monárquico de autoridade bíblica é substituído por um modelo dialogal de autoridade bíblica. Em outras palavras, o cânon bíblico nomeia a coleção básica de documentos antigos com os quais devem estar em constante diálogo. Esta conversa contínua é definitiva e constitutiva da identidade cristã. Se o diálogo cessa ou torna-se falho, então deixamos de ser cristãos e nos tornamos outra coisa. Então a autoridade da Bíblia é seu status como nosso básico e antigo parceiro de conversação.

Ainda assim, por a Bíblia ser um produto humano além de escritura sagrada, o contínuo diálogo precisa ser uma conversa crítica. Há partes na Bíblia que nós decidiremos que não precisam ou não devam ser honradas, ou porque discernimos que elas eram relevantes para tempos antigos mas não o são para o nosso próprio tempo, ou porque nós discernimos que elas nunca foram a vontade de Deus. (Não quero me estender muito em listagens, mas um exemplo de cada pode ser de ajuda. (1) O conselho de Paulo sobre se é permissível comer sobras de carne de sacrifícios pagões era relevante para o seu tempo, apesar de hoje não ser mais. (2) Não posso crer que alguma vez tenha sido a vontade de Deus que as mulheres e filhos dos inimigos de alguém em guerra devessem ser mortos, para usar um exemplo da Bíblia Hebraica; ou que seja a vontade de Deus que a maioria da população da Terra seja destruída na segunda vinda de Cristo, para usar um exemplo do Novo Testamento.)

Mas diálogo crítico com a Bíblia implica não simplesmente que façamos julgamentos discernidos sobre os textos. Também significa que permitimos que os textos nos moldem e nos julguem. Enquanto lemos a Bíblia, devemos não apenas trazer nossa inteligência crítica conosco, mas também ouvir. Sempre digo a meus alunos que ler bem envolve ouvir bem – buscar ouvir o que o texto está nos dizendo e não simplesmente absorver o texto no que nós já pensamos.

Ser cristão significa viver dentro do mundo criado pela Bíblia. Nós temos de ouví-la bem e permitir que suas narrativas centrais formem nossa visão de Deus, nossa identidade, e nosso senso do que fidelidade a Deus significa. Deve dar forma a nossa imaginação, aquela parte de nossa psique na qual nossas imagens básicas da realidade e da vida residem. Devemos ser uma comunidade formada pela escritura. O propósito de nosso diálogo contínuo com a Bíblia como escritura sagrada é nada menos que isso.

A BÍBLIA COMO SACRAMENTO DO SAGRADO

Sendo assim, uma principal função da Bíblia é a formação da visão e identidade cristãs. A Bíblia também tem outra função primária, e é um outro aspecto da relação entre a Bíblia e Deus: a Bíblia é um sacramento do sagrado.

Na tradição cristã, a palavra “sacramento” freqüentemente refere-se a um dos sacramentos específicos: para os protestantes, os dois sacramentos de batismo e da eucaristia; para os católicos, aqueles dois mais cinco outros. Central para a definição de “sacramento” neste sentido particular é o de que algo sacramental seja “um meio da graça”.

A palavra “sacramento” também tem um significado mais amplo. No estudo da religião, um sacramento é comumente definido como um mediador do sagrado, um veículo pelo qual Deus torna-se presente, um meio através do qual o Espírito é experimentado. Este significado inclui os dois (ou sete) Sacramentos Cristãos, mesmo sendo mais amplo. Virtualmente qualquer coisa pode tornar-se sacramental: natureza, música, oração, nascimento, morte, sexualidade, poesia, pessoas, peregrinações, até mesmo participação em esportes, etc. Coisas são sacramentais quando elas se tornam ocasiões para a experiência de Deus, momentos quando o Espírito torna-se presente, tempos quando o sagrado torna-se uma realidade experimentável.

A Bíblia freqüentemente funciona desta forma sacramental nas vidas de cristãos. Ela funcionou assim, por exemplo, nas experiências de conversão de muitas das figuras centrais da história cristã. A experiência de conversão de Agostinho aconteceu quando ele ouviu uma criança cantando “Toma e lê”, o que fez com que ele lesse uma passagem na carta de Paulo aos Romanos, que mudou sua vida. A experiência da graça de Martinho Lutero, assim como o movimento do Espírito no coração de John Wesley, aconteceram por meio da imersão na escritura. Em cada caso, eles experimentaram a Bíblia como um meio por meio do qual o Espírito se dirigia a eles no presente.

O uso sacramental da Bíblia está também entre as práticas espirituais tanto de judeus quanto de cristãos. A meditação na Torá é uma antiga prática judaica. Na tradição cristã, uma prática espiritual arquitetada por Ignácio de Loyola envolve a meditação nas imagens de um texto bíblico até que elas se tornem animadas pelo Espírito. Uma outra prática, a lectio divina, envolve entrar em um estado contemplativo e ouvir uma passagem de escritura ser lida em alta voz algumas vezes, com períodos de silêncio entre cada leitura. Nestes exemplos, o propósito da prática não é ler ou ouvir a Bíblia para informação ou conteúdo. Ao contrário, o propósito é ouvir o Espírito de Deus falar através das palavras do texto bíblico.

Para muitos cristãos, a Bíblia às vezes torna-se sacramental em leituras devocionais privadas. Assim como as práticas mencionadas anteriormente, o propósito da leitura devocional não é a aquisição de conteúdo. É, antes, abertura à experiência de Deus dirigindo-se ao leitor por meio de uma frase ou verso, abertura à sensação do Espírito presente no interior. Em tais momentos a Bíblia se torna sacramental, um instrumento da graça e mediadora do sagrado. Deus “fala” através das palavras do texto bíblico.

Ver a Bíblia como um sacramento do sagrado também conecta-nos de volta à Bíblia como um produto humano. O pão e o vinho do sacramento cristão da eucaristia são evidentemente produtos humanos. Alguém fez o pão, e alguém fez o vinho. Não pensamos no pão e no vinho como sendo “perfeitos” (seja lá o que essa palavra signifique). Ao contrário, afirmamos que por meio de ou nestes produtos evidentemente humanos de pão e vinho, Cristo torna-se presente para nós. Então, também por meio de ou nas palavras humanas da Bíblia, o Espírito de Deus se dirige a nós.

Nas liturgias de muitas denominações, as seguintes palavras são ditas após a leitura de uma passagem da Bíblia: “Palavra do Senhor.” Com minha ênfase na Bíblia como um produto humano, eu às vezes brinco que deveríamos dizer: “Pensamentos da antiga Israel”, ou “Pensamentos do movimento cristão primitivo”. Mas quando quero ser sério em vez de exibir meu bom humor, acho serem as palavras usadas no Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana da Nova Zelândia exatamente corretas: “Ouçam o que o Espírito está dizendo à Igreja.” O Espírito de Deus fala através das palavras humanas destes antigos documentos: a Bíblia é um sacramento do sagrado.

A BÍBLIA COMO A PALAVRA DE DEUS

A função sacramental da escritura leva a uma observação final sobre a relação entre Deus e a Bíblia: a Bíblia como sendo “a Palavra de Deus”. Como já mencionado, falar da Bíblia como “a Palavra de Deus” tem freqüentemente levado os cristãos a verem a Bíblia como tendo vindo de Deus. A este ponto já é óbvio que as lentes que eu estou prescrevendo para ler a Bíblia não a vêem desta forma.

O que significa chamar a Bíblia de “a Palavra de Deus”? È importante enfatizar que a tradição cristã através de sua história tem falado da Bíblia como sendo a Palavra de Deus (P maiúsculo e singular), e não como sendo as palavras de Deus (p minúsculo e plural). Se tivesse usado a segunda forma, então alguém poderia, com razão, afirmar que crer nas palavras da Bíblia como sendo as palavras de Deus seria indispensável para ser cristão.

Mas o uso de um P maiúsculo e do singular sugere um significado diferente: “Palavra” está sendo usado num sentido metafórico e não-literal. Como com metáforas em geral, esta ressoa com mais de uma nuança de significado. Uma palavra é um meio de comunicação, envolvendo tanto o falar quanto o ouvir. Uma palavra é um meio de manifestação; nós nos manifestamos ou nos revelamos por meio de palavras. Palavras encurtam a distância entre nós e outros: nos comunicamos e nos tornamos íntimos por meio de palavras.

Chamar a Bíblia de a Palavra de Deus é vê-la de todas essas formas. A Bíblia é um instrumento de auto-revelação do divino. A expressão teológica tradicional para isto é “a Bíblia como revelação de Deus”. Na Bíblia, como fundamento do mundo cultural-lingüístico cristão, os cristãos encontram a revelação de Deus – não por ser a Bíblia as palavras de Deus, mas porque a Bíblia contém as narrativas e tradições primárias que revelam o caráter e vontade de Deus.

Ver a Bíblia como a Palavra de Deus também sublinha sua função sacramental: as palavras da Bíblia às vezes se tornam um mediador do sagrado pelo qual o Espírito dirige-se a nós no presente. Em resumo, chamar a Bíblia de a Palavra de Deus refere-se não à sua origem mas a seu status e função.

METÁFORAS FINAIS PARA A NOSSA VISÃO DA BÍBLIA

No período moderno, os cristãos têm freqüentemente enfatizado a crença na Bíblia. Eu concluo esta parte de nosso curso com três metáforas, todas sugerindo uma maneira muito diferente de ver a relação entre os cristãos e a Bíblia.

Um Dedo Apontando Para a Lua

A primeira metáfora vem da tradição budista. Os budistas geralmente falam dos ensinamentos do Buda como sendo “um dedo apontando para a lua”. A metáfora ajuda a proteger contra o erro de pensar que ser um budista significa crer nos ensinos budistas – ou seja, crer no dedo. Como a metáfora infere, alguém deve ver (e prestar atenção em) aquilo que o dedo aponta.

Para aplicar a metáfora à Bíblia, a Bíblia é como um dedo apontando para a lua. Os cristãos às vezes, cometem o erro de pensar que ser cristão seja crer no dedo, em vez de ver a vida cristã como um relacionamento com aquilo para o qual o dedo aponta.

A Bíblia Como Lente

Até agora tenho falado das lentes através das quais vemos a Bíblia. Agora estou aplicando a metáfora da lente à própria Bíblia: a Bíblia como uma lente. A Bíblia é como uma lente através da qual vemos Deus, mas algumas pessoas pensam que seja extremamente importante crer na lente.

Como na metáfora do dedo que aponta para a lua, há uma grande diferença entre crer na lente e usar a lente como uma forma de ver aquilo que está além da lente.

A Bíblia Como Sacramento

Como uma metáfora final, volto à Bíblia como sacramento. Agora, entretanto, eu estendo a metáfora para que possa incluir a tradição cristã como um todo: a Bíblia, assim como os credos cristãos, liturgias, rituais, práticas, hinos, músicas, arte, etc. Quando se vê o cristianismo como um sacramento do sagrado, ser cristão não se trata de crer no cristianismo. Isto seria como crer no pão e vinho da eucaristia, em vez de deixar o pão e o vinho desempenharem seu papel sacramental de mediar a presença de Cristo. Seria como crer no dedo ou na lente.

Entretanto, ser cristão trata-se de um relacionamento com o Deus que é mediado pela tradição cristã como sacramento. Ser cristão é viver dentro da tradição cristã como um sacramento e deixá-la realizar sua obra dentro de nós e entre nós.

LIÇÃO 1 - UMA "RE-VISÃO" DA BÍBLIA

Um grande conflito divide os cristãos protestantes nos dias de hoje. O conflito de como ver e ler a Bíblia são o grande divisor de águas no cristianismo protestante. De um lado estão os cristãos fundamentalistas e muitos evangélicos conservadores. Do outro lado estão os cristãos moderados e liberais, a maioria deles em denominações mais antigas do mundo protestante (com quem a Igreja Católica Romana, em sua visão da Bíblia, tem mais coisas em comum). Os dois grupos possuem duas maneiras muito diferentes de ver três questões fundamentais sobre a Bíblia: questões sobre sua origem, sua autoridade, e sua interpretação.

O primeiro grupo, muitas vezes chamado “cristãos bíblicos”, tipicamente vêem a Bíblia como a infalível Palavra de Deus. Esta convicção se origina na forma como eles vêem a origem da Bíblia: ela vem de Deus. Como um produto divino, ela é a verdade de Deus, e sua origem divina é a base de sua autoridade. Para estes cristãos, a Bíblia deve ser interpretada literalmente, a não ser que a linguagem de uma dada passagem seja claramente metafórica. De seu ponto de vista, permitir interpretações não-literais abre a porta para burlar a autoridade da Bíblia e fazer ela dizer o que queremos que ela diga. Eles tipicamente se vêem como pessoas que tomam a Bíblia seriamente, e freqüentemente criticam os cristãos moderados e liberais por diminuírem e evitarem a autoridade da mesma. Eles também comumente se vêem como os que afirmam “a religião tradicional” – ou seja, o cristianismo como era antes do período moderno. Na verdade, entretanto, sua abordagem é que é moderna, sendo principalmente o produto de uma teologia protestante dos séculos XIX e XX. Além do mais, em vez de permitir à Bíblia sua voz plena, essa abordagem na verdade confina a Bíblia dentro de uma estreita estrutura teológica.

O segundo grupo de cristãos, a maioria dos quais está nas igrejas históricas, são menos claros sobre a forma como vêem e não vêem a Bíblia. Eles estão fortemente convencidos que muitas partes da Bíblia não podem ser interpretadas literalmente, nem como historicamente factuais nem como expressão da vontade de Deus. Algumas pessoas que chegam a esta conclusão deixam a igreja. Mas muitas continuam na igreja, e estão buscando uma forma de ver a Bíblia que mova além do literalismo bíblico e que seja atrativo e persuasivo. Apesar de estes cristãos saberem com certeza que não podem apoiar o literalismo bíblico, eles estão menos certos de como exatamente vêem a origem e autoridade da Bíblia. Eles freqüentemente estão incertos do que significa dizer que a Bíblia é “a Palavra de Deus” ou “inspirada por Deus”. Apesar de rejeitarem a base da autoridade da Bíblia em sua infalibilidade, eles não estão muito seguros sobre o que “autoridade bíblica” possa significar. Assim, não é uma surpresa que mesmo entre as denominações históricas do cristianismo protestante, haja conflito sobre como ver e ler a Bíblia.

O conflito sobre a Bíblia é mais publicamente visível em discussões sobre três assuntos. Primeiro, em alguns círculos cristãos, “criação versus evolução” se tornou o teste primário de lealdade à Bíblia. O segundo assunto é a homossexualidade: Pode gays e lésbicas praticantes ser membros plenos da igreja? Podem os relacionamentos de gays e lésbicas ser abençoados? Podem gays e lésbicas ser ordenados? Este debate é freqüentemente lançado na forma de aceitação ou rejeição da autoridade bíblica. Um terceiro assunto é o estudo contemporâneo sobre o Jesus histórico. Nos últimos tempos, a busca pelo Jesus histórico tem atraído muita atenção da mídia e o interesse público, especialmente entre os membros das igrejas históricas; mas também tem gerado uma forte reação negativa entre os cristãos fundamentalistas e evangélicos conservadores (do ponto de vista destes, questionar a factualidade histórica dos evangelhos, desafia os fundamentos do cristianismo).

As Raízes do Conflito

Os limites entre cristãos fundamentalistas e evangélicos conservadores é difícil de demarcar. Um fundamentalista já foi definido como sendo “um evangélico que está com raiva de algo” (atribuído a Jerry Falwell por George M. Marsden). Mas alguns evangélicos conservadores não são fundamentalistas e não têm interesse em defender, por exemplo, a factualidade literal do relato da Criação na Bíblia ou a completa exatidão histórica de todas as palavras atribuídas a Jesus. Mas o que eles compartilham é uma compreensão comum da autoridade da Bíblia baseada em sua origem: é verdade porque vem de Deus.

O próprio fundamentalismo – seja ele cristão, judaico, ou muçulmano – é moderno. É uma reação à cultura moderna. O fundamentalismo cristão como um movimento religioso identificável originou-se em princípios do século XX nos Estados Unidos, com suas raízes imediatas na segunda metade do século XIX. Ele enfatizava a infalibilidade e inerrância da Bíblia em todos os seus aspectos, especialmente contra o Darwinismo e o que chamava de “o alto criticismo” (o estudo acadêmico da Bíblia que tinha se desenvolvido principalmente na Alemanha no século XIX).

As raízes da compreensão evangélica da Bíblia são mais antigas, residindo na Reforma Protestante do século XVI. A Reforma substituiu a autoridade da igreja e da tradição da igreja, pela autoridade única da Bíblia. João Calvino e Martinho Lutero, os dois maiores líderes da Reforma, tinham uma forte convicção da autoridade bíblica. Mas foi na segunda e terceira gerações da Reforma que clamores pela verdade infalível da Bíblia foram feitos. “Inspiração plenária” - a noção de que as palavras da Bíblia foram ditadas por Deus, e que estão, assim, livres de erro – foi enfatizada por reformadores de épocas posteriores, como o luterano Johann Quenstedt (1617-88).

A compreensão de que estes desenvolvimentos são relativamente recentes é importante. A descrição explícita da Bíblia como inerrante e infalível por fundamentalistas e alguns evangélicos conservadores não pode ser afirmada como sendo a voz primitiva e tradicional da igreja. Entretanto, o fundamentalismo e a noção da Bíblia com sendo a “verdade de Deus” (e, assim, sem erro) têm suas raízes em uma maneira mais antiga e convencional de ver a Bíblia, amplamente compartilhada pela maior parte dos cristãos por um longo tempo.

Uma Velha Forma de Ver a Bíblia

Pessoas comuns não liam a Bíblia até tempos relativamente recentes. Até cerca de quinhentos anos atrás, a Bíblia podia ser lida apenas pelos pouquíssimos que conheciam latim, grego, ou hebraico, e que tinham acesso a manuscritos, que eram de produção cara e, assim, relativamente raros. Dois desenvolvimentos mudaram isto. Em meados do século XV a impressão foi inventada. Menos de cem anos mais tarde, principalmente em decorrência da Reforma Protestante, a Bíblia foi traduzida das antigas línguas “sacras” para as línguas contemporâneas.

A acessibilidade da Bíblia a qualquer um que possa ler tem sido uma benção confusa. Positivamente, resultou em uma democratização do cristianismo. As riquezas da Bíblia não são mais conhecidas apenas por uma elite educada. Mas também resultou em conseqüências negativas. Tornou possível interpretações individualistas da Bíblia; e isto, junto com o elevado status dado à Bíblia pela Reforma Protestante, levou à fragmentação do cristianismo em uma multidão de denominações e movimentos sectários, cada um baseado em diferentes interpretações da Bíblia.

Além disso, antes da invenção da imprensa, virtualmente ninguém havia visto os livros da Bíblia juntos em um único volume. Ao contrário, a Bíblia era mais comumente vista como uma coleção de manuscritos separados. Na realidade, durante a Antiguidade e as Idades Médias, referia-se à Bíblia freqüentemente usando-se o plural “escrituras” - ou seja, uma coleção de livros. Após a Bíblia começar a ser impressa em um único volume, tornou-se mais fácil pensar nela como se fora um único livro com um único autor (nomeadamente, Deus).

Desde então e até recentemente, a maioria dos cristãos (especialmente protestantes) compartilhavam uma forma de ver e ler a Bíblia. Na realidade, aquela forma era tão difundida que a maioria dos cristãos não se davam conta dela.

Esta forma mais antiga de ver a Bíblia tem sido chamada de “literalismo natural”. Em um estado de literalismo natural, a Bíblia é lida e aceita literalmente, sem esforço. Porque alguém neste estado não tem nenhuma razão para pensar diferentemente, uma leitura literal da Bíblia não representa um problema.

Literalismo natural é muito diferente de “literalismo consciente”, uma forma moderna de literalismo que se tornou consciente dos problemas criados por uma leitura literal da Bíblia, mas que mesmo assim insiste nela. Enquanto o literalismo natural existe sem esforço, o literalismo consciente é trabalhoso. Ele exige “fé”, entendida como a crença em coisas difíceis de acreditar. Mas o literalismo natural não insiste na interpretação literal. Ao contrário, ele o toma por certo, e não requer “fé” para tal.

Fundamentalistas e muitos evangélicos são literalistas conscientes. Mas sua forma de ver a Bíblia está em considerável continuidade com o literalismo natural de séculos passados. Ver a Bíblia através das lentes do literalismo natural leva os leitores às seguintes conclusões sobre a origem, autoridade, e interpretação da Bíblia – conclusões que são similares àquelas do literalismo consciente:

1) ORIGEM. A Bíblia é um produto divino. Tal é o significado natural ou imediato de como os cristãos têm falado da Bíblia através dos séculos. A Bíblia é a Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo; é escritura sagrada. A Bíblia, assim, não é um produto humano, mas vem de Deus, diferentemente de qualquer outro livro.

2) AUTORIDADE. A Bíblia é, assim, verdadeira e possui autoridade. A verdade e autoridade da Bíblia baseiam-se em sua origem. Como um produto divino, possui a garantia divina de ser verdadeira e deve ser tomada seriamente como a autoridade final sobre o que crer e como viver.

3) INTERPRETAÇÃO. A Bíblia é historicamente e factualmente verdadeira. Em um estado de literalismo natural, toma-se por certo que o que a Bíblia diz que aconteceu realmente aconteceu. As únicas exceções são manifestamente a linguagem metafórica (por exemplo, “montanhas batendo suas mãos de alegria”). Literalistas naturais podem reconhecer e apreciar metáforas. Mas quando a Bíblia parece estar contando algo que realmente aconteceu, então aquilo realmente aconteceu. Além disso, crer na factualidade da Bíblia não exige esforço; em um estado de literalismo natural, não há razão para crer diferentemente.

Apesar de, talvez, a maioria dos leitores deste texto não virem a Bíblia desta forma, a perspectiva, no entanto, é familiar. Sua familiaridade emana, em parte, da posição convencional que manteve até recentemente no cristianismo. Na realidade, essa é uma visão ainda bem viva nas expressões cristãs do Brasil.

Esta velha forma de ver a Bíblia anda de mãos dadas com uma velha forma de ver o cristianismo. A razão para a conexão é óbvia: a Bíblia tem sido fundamental para o cristianismo através dos séculos. A visão de alguém da Bíblia e sua visão do cristianismo andam de mãos dadas.

Uma Velha Forma de Ver o Cristianismo

Esta velha compreensão do cristianismo era o cristianismo convencional até tão recentemente quanto um século atrás. Ainda é a compreensão comum entre fundamentalistas e muitos cristãos conservadores. Eu a descreverei com seis adjetivos, explicando cada um brevemente.

Primeiro, como já mencionado, esta velha forma de ver o cristianismo era literalista.

Segundo, era dogmática. Ser um cristão significava crer nos ensinos doutrinários cristãos. Em igrejas que usavam ou o Credo Apostólico ou o Credo Niceno regularmente, você seria um cristão verdadeiro se pudesse dizer o credo sem cruzar os dedos ou ficar calado durante qualquer das frases.

Terceiro, era muito moralista. Com isto quero dizer duas coisas. Primeiro, ser cristão significava tentar ser bom, e ser bom significava tentar viver de acordo com os ensinos éticos da Bíblia, entendidos como a “lei de Deus”. O segundo aspecto do moralismo visto nesta velha forma de se encarar o cristianismo emergiu do fato de que não somos bem sucedidos em sermos bons. Esta velha forma de ser cristão era centrado na dinâmica do pecado, culpa, e perdão.

Quarto, esta velha forma de ver o cristianismo era patriarcal. Não apenas usava uma linguagem predominantemente masculina para Deus e para as pessoas, mas também legitimava hierarquias dominadas por homens na igreja, na sociedade, e na família.

Quinto, era exclusivista. Em uma forma radical, o exclusivismo cristão é a insistência de que Jesus seja o único caminho à salvação, e que o cristianismo seja a única religião verdadeira. Há também uma forma menos radical abraçada por cristãos que se sentem desconfortáveis com o exclusivismo radical, mas que temem em abandonar a crença tradicional do exclusivismo cristão para não parecerem não-cristãos.

Sexto e finalmente, esta velha forma de ver o cristianismo era preocupada com a vida após a morte. No cristianismo que muitos de nós aprendemos na infância, o significado primário de salvação era “ir para o céu”. O “céu” era a própria razão de ser cristão. Expressando esta mesma noção de forma diferente: “Creia no cristianismo hoje para ir para o Céu mais tarde”. E a ênfase sempre esteve no “crer” - crer que tudo isso seja verdade.

Mas esta maneira de ver a Bíblia e o cristianismo se desfez para a maioria das pessoas na cultura ocidental. O literalismo natural de nossos ancestrais, de muitas maneiras, desapareceu. O literalismo consciente, é claro, permanece. Mas para muitos de nós, não é uma opção.

É importante notar que esta velha visão é percebida como o cristianismo tradicional tanto por cristãos quanto por não-cristãos, e tanto por conservadores (que a defendem) quanto por liberais (que a rejeitam). Mas esta velha maneira de ver a Bíblia e o cristianismo não é a “tradição cristã”. Ao contrário, é uma forma historicamente condicionada de ver a tradição (incluindo a Bíblia) que tem sido formatada pelas circunstâncias dos últimos séculos. Sendo assim, a questão não é de manter-se ou abandonar-se a tradição cristã, mas uma transição de uma forma de ver para outra. A questão concerne às lentes através das quais vemos e lemos a Bíblia e a tradição cristã como um todo.

NOSSO CONTEXTO CULTURAL

Por que esta velha forma de ver e ler a Bíblia deixou de ser persuasivo? Por que as velhas lentes não mais funcionam? A razão básica: quem nós nos tornamos. Quando digo “nós”, quero dizer a maioria de nós na moderna cultura ocidental no início deste século XXI. Descreverei quem nos tornamos com quatro afirmações. Apesar de não representarem uma descrição muito ampla de quem nós somos, estas afirmações nomeiam quatro fatores que afetam a forma como vemos a Bíblia, o cristianismo, e a religião de forma mais ampla.

Pluralismo Religioso

Estamos conscientes do pluralismo religioso. Estamos cientes das religiões do mundo de formas que a maioria das pessoas não foram durante a maior parte da história humana, tão recentemente quanto um século atrás. Sabemos sobre outras religiões de diferentes maneiras; é simplesmente parte de nossa crescente consciência global.

Assim, muitos de nós vemos as afirmações exclusivistas da tradição cristã como impossíveis de aceitar. Isto ocorre por razões de bom senso e por razões teológicas. Faz algum sentido dizer que o criador de todo o universo tenha escolhido ser conhecido em apenas uma tradição religiosa, que por sorte é a nossa?

Há, ainda, uma razão especificamente cristã para se rejeitar o exclusivismo cristão: a clássica ênfase cristã na “graça”. Se alguém tem de ser cristão para ter um relacionamento correto com Deus, então há um requerimento, e não estaríamos mais falando em “graça”, mesmo que estivéssemos usando a linguagem da “graça”. Se nosso relacionamento com Deus é baseado na graça, então não é baseado em requerimentos, nem mesmo o requerimento de ser cristão.

Relativismo Histórico e Cultural

Estamos cientes do relativismo histórico e cultural. Nós sabemos a respeito dos condicionamentos históricos e culturais. Estamos cientes que nossos pensamentos são universalmente moldados pelo tempo e lugar nos quais vivemos, além de nossas classes sociais e econômicas.

Isto se aplica não apenas às pessoas de outros tempos e outros lugares, mas se aplica a nós também. Nossos conceitos, imagens, linguagens, conhecimentos, crenças – até mesmo nossos processos de pensamento – são todos profundamente moldados pela cultura. Eles são todos condicionados por e relativos ao tempo e lugar no qual se originam.

Modernidade

Somos pessoas modernas. Com isso quero dizer que vivemos naquele período da história cultural ocidental conhecido como “modernidade”. A modernidade é o pensamento cultural que começou com o Iluminismo do século XVII e continua até hoje. A modernidade é um fenômeno complexo, com conquistas impressionantes e também com importantes limitações. Para os nossos propósitos, mencionarei dois de seus traços centrais, que estão interligados.

Primeiro, a modernidade é caracterizada pelo conhecimento científico. Na realidade, o surgimento da ciência moderna representou o surgimento da modernidade. Com a ciência moderna surgiu uma nova epistemologia (a teoria filosófica do conhecimento; de como nós sabemos): diferentemente de pessoas de eras mais antigas, sabemos que alguma é verdade hoje através de experimentação e verificação.

Segundo, a modernidade é marcada pelo que às vezes é chamado de “a moderna visão de mundo” ou a “a visão de mundo newtoniana”. Uma “visão de mundo” é uma imagem da realidade – uma compreensão do que seja real e do que seja possível. A moderna visão de mundo é baseada em modos científicos de saber: o que é real é aquilo que pode ser conhecido através dos métodos da ciência. A epistemologia (como nós sabemos) se tornou ontologia (o que é real).

A moderna visão de mundo produz uma compreensão material da realidade. O que é real é o mundo do espaço-tempo da matéria e da energia. A realidade é formada por pequenos pedaços de “coisas”, todos eles interagindo com os outros de acordo com “leis naturais”. O resultado é uma imagem do universo como um sistema fechado de causa e efeito. Apesar de esta visão de mundo já ter sido superada pela física teórica, ela continua a operar em nossas mentes.

A modernidade produziu muitas coisas valiosas. Suas conquistas mais óbvias estão nas ciências, tecnologia, e medicina. Mas suas conquistas se estendem além desses territórios e avançam sobre sistemas de governo, direitos humanos, o estudo do passado, a consciência empática sobre outras culturas, e muito mais. Eu aprecio muito a modernidade, mesmo sendo forçado a mencionar, a partir de agora, dois de seus efeitos destrutivos sobre a religião em geral, e sobre o cristianismo e a Bíblia em particular.

O primeiro desses efeitos: a modernidade nos tornou céticos sobre a realidade espiritual. A compreensão material de realidade da modernidade tornou a realidade de Deus problemática para muitos de nós. Não é acidental que a teologia da “morte de Deus” tenha emergido no período moderno. É o resultado lógico de se tornar absoluta a visão de mundo moderna.

Segundo, a modernidade nos tornou preocupados com factualidade – com fatos cientificamente verificáveis e historicamente confiáveis. Na realidade, a cultura moderna ocidental é a única cultura na história humana que tem identificado verdade com factualidade. Nós somos “fundamentalistas do fato”: se uma declaração não for cientificamente ou historicamente fatual, não é verdadeira.

Na igreja, tanto fundamentalistas bíblicos quanto cristãos liberais são freqüentemente fundamentalistas do fato. Para os primeiros, a Bíblia deve ser factualmente verdadeira para que seja verdadeira (assim, eles enfatizam a factualidade literal e histórica dos textos bíblicos). Os liberais têm tido a tendência a seguir uma estratégia diferente, tentando resgatar alguns fatos do fogo. Mas fundamentalistas e liberais concordam: fatos são o que importa.

A preocupação moderna com factualidade tem tido um efeito penetrante e pervertedor na maneira como vemos a Bíblia e o cristianismo. Durante a maior parte dos séculos XIX e XX, muitos cristãos e grande parte da teologia cristã se prenderam a duas escolhas estéreis de literalismo e reducionismo. O primeiro tentava defender a exatidão factual e imparidade da Bíblia e do cristianismo. O segundo tendia a reduzir a Bíblia e o cristianismo ao que fazia sentido na visão de mundo moderna. Ambos são posições completamente modernas.

Um resultado adicional: o cristianismo no período moderno se tornou preocupado com a dinâmica do crer ou do não-crer. Para muitas pessoas, crer que certas afirmações sejam verdadeiras tornou-se o significado central da fé cristã. É uma noção curiosa – como se o que Deus mais quisesse de nós fosse a crença de que afirmações muito problemáticas sejam factualmente verdadeiras; e se alguém não pode acreditar nelas, então não tem fé e não é cristão.

O caráter completamente moderno desta noção de fé pode ser visto ao se comparar ao que fé significava nas Idades Médias cristãs. Durante aqueles séculos, basicamente todos na cultura cristã pensavam ser a Bíblia verdadeira. Eles não tinham nenhuma razão para pensarem diferentemente; as estórias da Bíblia da criação até o fim do mundo eram parte da sabedoria convencional do tempo. Aceitá-las não exigia “fé”. Fé tinha a ver com o relacionamento de alguém com Deus, não com se alguém pensava ser a Bíblia verdadeira.

Pós-modernidade

Vivemos na fronteira da pós-modernidade. Não somos apenas pessoas modernas; estamos vivendo na fronteira de um novo período da história cultural. As características centrais e definidoras deste novo período ainda não se tornaram claras, então ainda não sabemos como chamá-lo. Então simplesmente o chamamos de pós-modernidade: é o que vem a seguir.

Como a modernidade, a pós-modernidade é um fenômeno grande e complexo. Sendo assim, não tentarei descrever amplamente ou definir a pós-modernidade, mas simplesmente enfatizarei três características de importância fundamental para nossos propósitos.

Primeiro, a pós-modernidade é caracterizada pela percepção de que a modernidade é uma construção histórica culturalmente condicionada e relativa. A visão de mundo moderna não é a palavra final sobre a realidade, da mesma forma que as prévias visões de mundo não o foram. A pós-modernidade sabe que um dia a visão de mundo newtoniana será tão estranha e arcaica quanto a visão ptoloméica o é para os modernistas, algo que já acontece entre os teóricos físicos.

Segundo, a pós-modernidade é caracterizada por uma virada em direção à experiência. Em um tempo no qual os ensinamentos religiosos tradicionais tornaram-se suspeitos, tendemos a confiar naquilo que conhecemos por meio de nossa própria experiência. Esta busca pela experiência é vista no notável ressurgimento de interesse pela espiritualidade nas igrejas históricas. A espiritualidade é a dimensão experimental (empírica) da religião.

Terceiro, a pós-modernidade é caracterizada por um movimento além do fundamentalismo do fato para uma percepção de que estórias podem ser verdadeiras sem serem literalmente e factualmente verdadeiras. Isto é refletido em muito da ênfase da teologia contemporânea em teologia metafórica. Um ponto óbvio que tem freqüentemente sido esquecido durante o período da modernidade: metáforas e narrativas metafóricas podem ser profundamente verdadeiras mesmo que não sejam literalmente ou factualmente verdadeiras. Esta percepção é central para a forma que estarei sugerindo em nosso curso de vermos e lermos a Bíblia.

Dado quem nos tornamos, uma das necessidades imperativas de nosso tempo é a re-visão da Bíblia e do cristianismo. Eu deliberadamente hifenizo a palavra “re-visão” para distinguir o que quero dizer do significado comum de “revisão” (sem um hífen). Geralmente usamos a palavra “revisão” para descrever a melhoria de algo que foi mal feito – por exemplo, um manuscrito ou uma dissertação. Mas isso não é o que quero dizer.

Ao contrário, “re-visar” significa “ver novamente”. A ênfase em “ver novamente” também nos lembra que a velha forma de cristianismo não é o “cristianismo tradicional”, mas foi uma velha maneira de ver a Bíblia e a tradição cristã. O que é necessário em nosso tempo é uma forma de ler a Bíblia que leve a sério as formas importantes e legítimas nas quais diferimos de nossos antepassados.

A forma de ver e ler a Bíblia que eu descrevo no resto deste curso leva a uma maneira de ser cristão que tem pouco a ver com crença. Ao contrário, o que emergirá será uma compreensão relacional e sacramental da vida cristã. Ser cristão, argumentarei, não tem nada a ver com crer na Bíblia ou crer no cristianismo. Tem a ver com um relacionamento aprofundante com o Deus ao qual a Bíblia nos aponta, vivido dentro da tradição cristã como um sacramento do sagrado.